São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
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LIVROS
Em "Sobre Schmidt", Louis Begley dá tratamento leve e irônico à vida de um advogado em fim de carreira
Comédia de outono

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Sobre Schmidt" -um advogado aposentado de 60 anos, passando a viuvez no luxo de uma mansão em Long Island, exercitando os prazeres ambíguos do romance familiar e os preconceitos discretos de um branco-anglo-saxão-protestante- o que se pode dizer? Tudo e nada: desde as lições de Flaubert e Henry James, a minúcia e a nuança, o quase-nada da experiência são o campo prioritário para o quase-tudo da literatura. E é justamente sobre a personagem improvável, até certo ponto desagradável, desse homem sem grandes aventuras e sem grandes paixões que Louis Begley vem construir seu quarto livro, uma comédia de outono.
Depois de "Infância de Mentira" (1991), um relato extraordinário (em boa medida autobiográfico) de como um menino polonês sobrevive ao nazismo, nada poderia ser mais inesperado do que o segundo romance do autor. "O Homem Que Se Atrasava" (1992) se volta para o mundo sofisticado das elites nova-iorquina e parisiense, que Begley, advogado bem-sucedido e estreante tardio na ficção, conhece de perto. Um e outro livro, na verdade, têm temas em comum, em que pesem as diferenças de tratamento e circunstância. O tempo e a passagem do tempo, a duplicidade e a divisão, a perda inexplicável de pessoas, afetos, sentidos; e aquilo que Schmidt descreve como "um tormento infindável, distribuído ao acaso, mas sem deixar ninguém de fora".
O banqueiro Ben, no segundo romance, era o homem que chegava tarde demais nas principais questões de sua existência. "O Olhar de Max" (1994) elabora de outra perspectiva -um amor homossexual- essa elegia pelos sentimentos abandonados e oportunidades desprezadas. A paixão é a grande educadora de todos esses homens perdidos na ininteligibilidade da vida. Revelações e transformações só são possíveis sob a pressão dos afetos; mas chegam sempre cedo demais ou tarde demais, e o milagre de uma coincidência amorosa parece isso mesmo, um milagre: falhado no passado, entrevisto no futuro, fulgurante.
Sobre Schmidt e em torno a Schmidt (o título original, "About Schmidt", permite as duas interpretações), o livro tece mais uma vez essa trama contraditória de atos, crenças e emoções que definia as indefinições dos outros romances. Da dissonância inicial -uma notificação do casamento da filha de Schmidt com um jovem advogado judeu, o que não agrada ao pai- o romance extrai energia suficiente para vários movimentos. Pequenas indignidades infligidas sobre o recém-viúvo e traições maiores sobre o recém-aposentado compõem um contraponto ao amor difícil entre pai e filha, que traz à lembrança desde Jane Austen e Trollope (homenageado no livro) até a referência última, em "Rei Lear".
Na rica rede de alusões da prosa de Begley uma simples frase pode ser o bastante para receber o espírito de Henry James, outro grande dramaturgo das posses e do capital. Até uma expressão solta -"The problem"s beautiful complexity" ("A linda complexidade do problema")-, infelizmente transformada em uma complexidade "extraordinária" e pouco jamesiana na tradução (pág. 83). Luzes e sombras do estilo tão cuidadoso de Begley vão revelando os livros perdidos e guardados por trás desse, que tem em Proust outro ancestral. "The magic of involuntary memory" ("a mágica da memória involuntária") comemora em tons indubitáveis -perdidos na "lembrança involuntária" e sem "mágica" da versão brasileira (pág. 220)- o maior romancista moderno, que não é só um narrador das temporalidades, mas também das idas e vindas de judeus refinados pelo mundo cristão-secular. Todos esses fantasmas são vertidos por Begley, nem sempre com a mesma confiança, para a paisagem social e moral americana deste fim de século.
Ao contrário de tantos filmes e livros que começam bem e vão perdendo força, "Sobre Schmidt" merece um voto de confiança de leitores muito apressados ou muito cuidadosos: o livro melhora em tudo, à medida que vai descobrindo seus meios. A retomada, em boa parcela, da voz do banqueiro Ben, reeditada no advogado Schmidt, não chega a ser desconfortável, embora trace os limites da imaginação tonal do romancista. Uma visita ao Amazonas também traz à lembrança, voluntária mais do que involuntária, as peripécias brasileiras do segundo romance. Pouco importa: é um prazer inesperado visitar a consciência desse anti-semita leve, apaixonado pela mulher que, mesmo assim, traía e frustrado na relação com a filha que ele perdeu a chance de bem criar, e descobrir recursos latentes de autoconhecimento e mudança. Latência não vira potência por nada. A paixão erótica (a princípio) e amorosa (em consequência) de Schmidt por uma garçonete porto-riquenha, mais moça do que sua própria filha, tem lugar de destaque entre os amores difíceis que Begley vem desfiando livro após livro, sempre com enorme empatia.
O fim do livro é um presente do romancista para sua personagem. Depois de tantas dúvidas, tantos acertos, tantos cálculos, tantos atrasos, depois de tantas violações da dignidade, um pouco de lucidez é o mínimo que sobra. Que isso corresponda, ainda, à aceitação caótica das contingências e ao bem-humorado descontrole do coração é só mais uma coisa "sobre Schmidt" que todos nós sabemos, mas temos de aprender de novo, romance após romance, na literatura e fora dela.


A OBRA

Sobre Schmidt - Louis Begley. Tradução de Anna Olga Lemos de Barros Barreto. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 240 págs. R$ 26,00.




Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), autor de "Ironias da Modernidade - Ensaios sobre Literatura e Música" (Ática), entre outros.
E-mail: nestro@uol.com.br




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