São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
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"Armas e Varões" estuda a obra de Arquíloco, um dos principais autores gregos
Fragmentos de uma poética

TRAJANO VIEIRA
especial para a Folha

Se houver futuro para a pesquisa acadêmica entre nós, a tese de doutorado de Paula da Cunha Corrêa, publicada agora em livro, deverá se tornar referência importante para quem trabalha com literatura grega em geral, e não só com Arquíloco, tema central do estudo. Destaca-se, desde logo, a discussão inteligente que a autora mantém com a crítica internacional, dando conta de bibliografia vasta. A erudição do trabalho não se restringe a esse ponto: aspectos intricados de métrica, comentários antigos, elementos culturais da época são examinados com minúcia e apresentados com clareza.
Muitas vezes Arquíloco (século 8 a.C.) é lembrado pelos acidentes de sua vida incomum. O alvo principal de suas sátiras teria sido Licambes, contrário ao casamento do poeta com a filha Neobule. A vingança de Arquíloco estaria registrada em fragmentos que falam de sua vida sexual, responsáveis pelo suicídio dos humilhados Licambes e Neobule. Questões biográficas, contudo, importam pouco para Paula, que, depois de discutir, na introdução, teorias sobre a evolução lírica, submete a exegese rigorosa os textos de Arquíloco com temática guerreira. Nessa parte, a autora faz uso de seu conhecimento sólido para analisar o ritmo, a sintaxe e a semântica de fragmentos que se revelam obras integrais. Entretanto, como costuma ocorrer com estudos dessa envergadura, várias indagações são suscitadas, dando margem a outras interpretações.
Indico, a seguir, alguns dos pontos que admitem, a meu ver, abordagem diversa da apresentada em "Armas e Varões". Paula entende que os fragmentos de Arquíloco trazem à luz noções poéticas tradicionais, partilhadas por Homero. Observa que os comentadores da lírica grega neste século sofreram influência exagerada do livro clássico de Bruno Snell, "A Descoberta do Espírito", particularmente de seu conceito de história, que muitos classificam de evolutivo-linear. Para o helenista alemão, o "sujeito" na lírica grega exibe dimensões novas e mais complexas do que na épica homérica. Não é o caso de retomar aqui interpretações que rediscutem a teoria de Snell de um ângulo diferente daquele em que Paula baseia sua crítica. Aceitemos a inexistência de ruptura entre a representação do homem homérico e do lírico.
Isso não anula, porém, a possibilidade de a relação entre Homero e os poetas posteriores ser mais dinâmica do que propõe a autora. Paula fundamenta sua posição em estudos arqueológicos, segundo os quais a grande revolução institucional na Grécia teria ocorrido no século 8 a.C. (época de Homero),com o surgimento da cidade-Estado, e não nos séculos 7-6 a.C. (período lírico). Todavia um dos aspectos principais dessa revolução foi justamente a repercussão pan-helênica da épica homérica, que, ao lado dos Jogos Olímpicos e do oráculo de Delfos, conferiu certa unidade a noções culturais gregas (não por acaso é dessa época o termo "panellenes", "todos os gregos", cunhado por Hesíodo).
Mesmo admitindo que a "Ilíada" só tenha sido fixada, na forma como a conhecemos, alguns séculos depois da morte de Homero, desde muito cedo autor e obra foram identificados, sendo possível imaginar que, a partir do século 8 a.C., houvesse variações sobre o tema, e não obras diferentes. A autora recorre também à conclusão de estudos recentes sobre métrica clássica: o metro lírico talvez seja anterior ao épico. Nesse sentido, menciona um ensaio de Kenneth Dover, em que o helenista define elementos genéricos da lírica pré-literária. Eu observaria apenas que a origem arcaica da lírica não elimina traços específicos que tanto a lírica quanto a épica ganharam no período histórico. O próprio Dover destaca a mudança profunda por que passaria a lírica clássica em decorrência do uso da escrita, fato que tem sido estudado da perspectiva da teoria da comunicação (Bruno Gentili), da enunciação (Claude Calame) e da poética diacrônica (Gregory Nagy).
Ao acentuar o caráter tradicional da lírica de Arquíloco, "Armas e Varões" talvez construa um quadro demasiado estável da evolução poética grega. Num ponto os gregos foram parecidos conosco: mantiveram acesas suas disputas literárias. Hesíodo criticou Homero pela tendência de fazer passar mentira por verdade ("Teogonia" 27-8); Píndaro também atacou Homero, retomando os termos da crítica hesiódica (Homero "sedutor" e "mentiroso", cfe. "Neméia" 7). O mesmo Píndaro não poupou seu rival Baquílides, comparando-o a um "macaco", por imitar-lhe os versos (cf. "Pítica" 2: "Belo parece às crianças o macaco, sempre belo"), recebendo, de Baquílides, um troco à altura: "A poesia de um nasce da poesia de outro, antigamente como hoje".
Também na "Pítica" 2, Píndaro compara sua carreira de poeta rico com a de Arquíloco, reduzido à miséria por sua verve implacável (importante distinção entre dois gêneros líricos: o encomiástico e o de censura). Calímaco inventou um epíteto para Arquíloco ("golpeado pela bebida") com o intuito de atingir seu contemporâneo e inimigo Apolônio Ródio, admirador do poeta lírico. Poetas da "Antologia Palatina", por sua vez, não perderam a oportunidade de investir contra seguidores do elegante Calímaco ("bebedores de água"). Embora a tradição não seja necessariamente incorporada de modo polêmico, ela sempre se reconfigura sob o signo da diferença. Lembro o uso que Baquílides faz de epítetos homéricos, que ganham valor específico em sua obra: o epíteto homérico de Aurora, "rododáktylos", "dedirrósea", irá qualificar Io, a "novilha dourada" perseguida por Zeus.
Particularmente sobre a relação de Arquíloco com Homero, creio que ela é, em alguns casos, menos pacífica do que entende Paula. Restrinjo-me a uma passagem, a título de exemplo. No fragmento nº 1 ("sou servo do senhor Eniálio e/ das Musas o amável dom conheço"), a dupla atividade do poeta, contra a especialização do aedo homérico, é expressa ironicamente: a ambiguidade sintática de "das Musas" (assinalada por Paula), que, por um momento, refere-se a "servo" e a "dom", sugere que a relação do poeta com as Musas é, a um só tempo, de "servo" e de "conhecedor" de um dom que elas possuem, um dom talvez mais forte do que "amável", um dom "erótico", pois se, por um lado, como aponta a autora, Homero só emprega uma vez o adjetivo "eratós" (como epíteto de Afrodite), cabe acrescentar, por outro, que ele aparece três vezes no "Hino a Hermes", com sentido forte de "despertar desejo", caracterizando o canto e a música executados pelo deus inventor da lira.
Essas observações não são formuladas em tom de crítica, mas como registro da possibilidade de abordagens diversas. Difícil permanecer indiferente diante de um livro que defende tão bem seus pontos de vista e que merece ocupar lugar de destaque na estante de quem lê poesia.


A OBRA

Armas e Varões - A Guerra na Lírica de Arquíloco - Paula da Cunha Corrêa. Ed. Unesp (av. Rio Branco, 1.210, CEP 01206-904, SP, tel. 011/232-7171). 363 págs. R$ 35,00.




Trajano Vieira é professor de língua e literatura gregas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).



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