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"Armas e Varões" estuda a obra de Arquíloco, um dos principais autores gregos
Fragmentos de uma poética
TRAJANO VIEIRA
especial para a Folha
Se houver futuro para a pesquisa
acadêmica entre nós, a tese de
doutorado de Paula da Cunha
Corrêa, publicada agora em livro,
deverá se tornar referência importante para quem trabalha com literatura grega em geral, e não só
com Arquíloco, tema central do
estudo. Destaca-se, desde logo, a
discussão inteligente que a autora
mantém com a crítica internacional, dando conta de bibliografia
vasta. A erudição do trabalho não
se restringe a esse ponto: aspectos
intricados de métrica, comentários antigos, elementos culturais
da época são examinados com minúcia e apresentados com clareza.
Muitas vezes Arquíloco (século 8
a.C.) é lembrado pelos acidentes
de sua vida incomum. O alvo principal de suas sátiras teria sido Licambes, contrário ao casamento
do poeta com a filha Neobule. A
vingança de Arquíloco estaria registrada em fragmentos que falam
de sua vida sexual, responsáveis
pelo suicídio dos humilhados Licambes e Neobule. Questões biográficas, contudo, importam pouco para Paula, que, depois de discutir, na introdução, teorias sobre
a evolução lírica, submete a exegese rigorosa os textos de Arquíloco
com temática guerreira. Nessa
parte, a autora faz uso de seu conhecimento sólido para analisar o
ritmo, a sintaxe e a semântica de
fragmentos que se revelam obras
integrais. Entretanto, como costuma ocorrer com estudos dessa envergadura, várias indagações são
suscitadas, dando margem a outras interpretações.
Indico, a seguir, alguns dos pontos que admitem, a meu ver, abordagem diversa da apresentada em
"Armas e Varões". Paula entende
que os fragmentos de Arquíloco
trazem à luz noções poéticas tradicionais, partilhadas por Homero.
Observa que os comentadores da
lírica grega neste século sofreram
influência exagerada do livro clássico de Bruno Snell, "A Descoberta do Espírito", particularmente
de seu conceito de história, que
muitos classificam de evolutivo-linear. Para o helenista alemão, o
"sujeito" na lírica grega exibe dimensões novas e mais complexas
do que na épica homérica. Não é o
caso de retomar aqui interpretações que rediscutem a teoria de
Snell de um ângulo diferente daquele em que Paula baseia sua crítica. Aceitemos a inexistência de
ruptura entre a representação do
homem homérico e do lírico.
Isso não anula, porém, a possibilidade de a relação entre Homero e
os poetas posteriores ser mais dinâmica do que propõe a autora.
Paula fundamenta sua posição em
estudos arqueológicos, segundo
os quais a grande revolução institucional na Grécia teria ocorrido
no século 8 a.C. (época de Homero),com o surgimento da cidade-Estado, e não nos séculos 7-6
a.C. (período lírico). Todavia um
dos aspectos principais dessa revolução foi justamente a repercussão pan-helênica da épica homérica, que, ao lado dos Jogos Olímpicos e do oráculo de Delfos, conferiu certa unidade a noções culturais gregas (não por acaso é dessa
época o termo "panellenes",
"todos os gregos", cunhado por
Hesíodo).
Mesmo admitindo que a "Ilíada" só tenha sido fixada, na forma
como a conhecemos, alguns séculos depois da morte de Homero,
desde muito cedo autor e obra foram identificados, sendo possível
imaginar que, a partir do século 8
a.C., houvesse variações sobre o
tema, e não obras diferentes. A autora recorre também à conclusão
de estudos recentes sobre métrica
clássica: o metro lírico talvez seja
anterior ao épico. Nesse sentido,
menciona um ensaio de Kenneth
Dover, em que o helenista define
elementos genéricos da lírica
pré-literária. Eu observaria apenas
que a origem arcaica da lírica não
elimina traços específicos que tanto a lírica quanto a épica ganharam no período histórico. O próprio Dover destaca a mudança
profunda por que passaria a lírica
clássica em decorrência do uso da
escrita, fato que tem sido estudado
da perspectiva da teoria da comunicação (Bruno Gentili), da enunciação (Claude Calame) e da poética diacrônica (Gregory Nagy).
Ao acentuar o caráter tradicional
da lírica de Arquíloco, "Armas e
Varões" talvez construa um quadro demasiado estável da evolução
poética grega. Num ponto os gregos foram parecidos conosco:
mantiveram acesas suas disputas
literárias. Hesíodo criticou Homero pela tendência de fazer passar
mentira por verdade ("Teogonia" 27-8); Píndaro também atacou Homero, retomando os termos da crítica hesiódica (Homero
"sedutor" e "mentiroso", cfe.
"Neméia" 7). O mesmo Píndaro
não poupou seu rival Baquílides,
comparando-o a um "macaco",
por imitar-lhe os versos (cf. "Pítica" 2: "Belo parece às crianças o
macaco, sempre belo"), recebendo, de Baquílides, um troco à altura: "A poesia de um nasce da poesia de outro, antigamente como
hoje".
Também na "Pítica" 2, Píndaro
compara sua carreira de poeta rico
com a de Arquíloco, reduzido à
miséria por sua verve implacável
(importante distinção entre dois
gêneros líricos: o encomiástico e o
de censura). Calímaco inventou
um epíteto para Arquíloco ("golpeado pela bebida") com o intuito
de atingir seu contemporâneo e
inimigo Apolônio Ródio, admirador do poeta lírico. Poetas da
"Antologia Palatina", por sua
vez, não perderam a oportunidade
de investir contra seguidores do
elegante Calímaco ("bebedores
de água"). Embora a tradição não
seja necessariamente incorporada
de modo polêmico, ela sempre se
reconfigura sob o signo da diferença. Lembro o uso que Baquílides faz de epítetos homéricos, que
ganham valor específico em sua
obra: o epíteto homérico de Aurora, "rododáktylos", "dedirrósea", irá qualificar Io, a "novilha
dourada" perseguida por Zeus.
Particularmente sobre a relação
de Arquíloco com Homero, creio
que ela é, em alguns casos, menos
pacífica do que entende Paula.
Restrinjo-me a uma passagem, a
título de exemplo. No fragmento
nº 1 ("sou servo do senhor Eniálio
e/ das Musas o amável dom conheço"), a dupla atividade do poeta,
contra a especialização do aedo
homérico, é expressa ironicamente: a ambiguidade sintática de
"das Musas" (assinalada por
Paula), que, por um momento, refere-se a "servo" e a "dom", sugere que a relação do poeta com as
Musas é, a um só tempo, de "servo" e de "conhecedor" de um
dom que elas possuem, um dom
talvez mais forte do que "amável", um dom "erótico", pois se,
por um lado, como aponta a autora, Homero só emprega uma vez o
adjetivo "eratós" (como epíteto
de Afrodite), cabe acrescentar, por
outro, que ele aparece três vezes
no "Hino a Hermes", com sentido forte de "despertar desejo",
caracterizando o canto e a música
executados pelo deus inventor da
lira.
Essas observações não são formuladas em tom de crítica, mas
como registro da possibilidade de
abordagens diversas. Difícil permanecer indiferente diante de um
livro que defende tão bem seus
pontos de vista e que merece ocupar lugar de destaque na estante de
quem lê poesia.
A OBRA
Armas e Varões - A Guerra na Lírica de Arquíloco - Paula da Cunha Corrêa. Ed. Unesp (av. Rio Branco, 1.210, CEP 01206-904, SP, tel. 011/232-7171). 363 págs. R$ 35,00.
Trajano Vieira é professor de língua e literatura
gregas na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
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