São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
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PONTO DE FUGA

O espírito e o bezerro

JORGE COLI
em Nova York

Uma inflexão romântica prolonga-se na música de Schoenberg. Ao contrário da perfeição rarefeita de Webern e da polifonia liricamente expressionista de Berg, Schoenberg mantém sempre, apesar de seus princípios de ruptura, um grande e misterioso sentimento destinado a arrebatar platéias. A "Met", em NY, apresenta pela primeira vez na sua história "Moses und Aaron", ópera inacabada, cuja música foi escrita entre 1930 e 1932. A obra traz uma questão espiritual, de cunho religioso: como é possível nomear Deus, como é possível comunicá-lo aos mortais comuns sem desfigurar o caráter inaccessível de sua natureza? Moisés é o contemplativo. Mas recebeu a mensagem do Deus invisível para conduzir o povo de Israel à liberdade. Aarão é aquele que fala, porém de modo enganoso, porque a natureza da palavra é falha. Ele inventa o bezerro de ouro, falso ídolo. Os românticos imaginavam que a música seria mais própria para chegar ao incompreensível. "Moses und Aaron" indica alguns desses caminhos. A ópera do século passado cruzou teatro e templo, com frequência e com sucesso: basta pensar em "Parsifal". Não é estapafúrdio, assim, aproximar "Moses und Aaron" de "Samson et Dalila", de Saint-Saëns: ambas possuem o mesmo recorte solene, um pouco estático, de oratório, trazido pelo tema bíblico, ambas empregam grandes massas corais e desenvolvem uma sensualidade que explode numa cena orgíaca de balé, de fabuloso efeito orquestral.

CENA - Ópera sobre o divino, "Moses und Aaron" é diabolicamente arrebatadora. O público nova-iorquino ficou tomado e suspenso até o fim, como na "Bohème" ou no "Trovatore". Foi, até agora, e de longe, o melhor espetáculo da temporada de óperas. James Levine regeu de modo enfático e superficial, mas revelou uma superfície sonora de efeitos rutilantes. Contudo a profundidade da obra manteve-se também, em grande parte, graças a John Tomlinson -o maior Wotan dos nossos dias-, que encarnou o papel de Moisés. Schoenberg surgiu voluptuoso, muito distante da concepção austera e mental de sua música, traçada por Adorno. A dança do bezerro de ouro é pulsante de erótica barbárie, a fraternidade entre Moisés e Aarão, feita de equívocos, exprime-se de modo caloroso e veemente. Em 1930, isto é, no momento do retorno à ordem, quando um Stravinsky buscava a contenção neoclássica, Schoenberg entrega-se ao fervor de uma inspiração que vibra. Interrompido pelo exílio ao qual o nazismo o condenou, Schoenberg nunca mais pôde reencontrar o clima criador inicial para completar o último ato de sua obra.

PERDIDO NO ESPAÇO - "Soldier" encontra-se entre o videogame -o filme de estréia de seu diretor Paul Anderson foi "Mortal Kombat"- e a space-opera, com reminiscências do western, de "Rambo", de "Mad Max", insistindo em situações simplistas e explorando a violência. É narrado como uma história infantil, de uma ingenuidade desconcertante. Porém, depois de "Formiguinhaz" e de "The Siege", "Soldier" bate na tecla do antimilitarismo, do horror às sociedades totalitárias e do apelo a um humanismo primário.

MESTRE - "The DC Archive Editions" é uma coleção que reedita, com cuidados de bibliófilo, em excelente papel e capa dura, as aventuras de históricos personagens dos quadrinhos. Na virada do ano, um espesso volume foi consagrado a "Plastic Man", no Brasil o "Homem-Borracha", super-herói estranho e original. Ele foi criado em 1941, por Jack Cole, que escrevia e desenhava as histórias bizarras com um traço inconfundível e uma concepção habilíssima do espaço. Cole suicidou-se em 1958.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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