São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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"DAS TRIPAS CORAÇÃO" E "ARTES E OFÍCIOS DE CURAR NO BRASIL" RECONTAM A EVOLUÇÃO DA MEDICINA, DAS PRÁTICAS POPULARES DE PAJÉS E CURANDEIROS E DE SUAS IMPLICAÇÕES SOCIAIS

A INDÚSTRIA ANSIOSA CONTRA O CORPO SANTO

Moacyr Scliar
Colunista da Folha

History is bunk", história é papo-furado, disse Henry Ford. A arrogante declaração provavelmente reflete uma concepção comum entre pessoas pragmáticas, aquelas pessoas que, se não ganham milhões como Ford, pelo menos sonham com isso e acham que não podem perder tempo lendo sobre o passado. A verdade, porém, é que textos sobre história têm um público cada vez mais amplo; várias revistas sobre o tema foram lançadas recentemente no Brasil. Mais: a historiografia se diversifica, se especializa. Exemplo disso é a história da medicina, disciplina que conquistou seu lugar no currículo de muitas universidades, inclusive no Brasil, como parte das humanidades médicas: ética, antropologia, literatura e medicina. Trata-se de neutralizar um pouco o excessivo viés tecnológico da profissão, viés esse que está prejudicando a relação médico-paciente e pode até ser um fator, ao menos coadjuvante, no crescente conflito que leva pessoas a processar judicialmente os doutores. Além disso, a visão histórica da medicina resulta numa lição de sóbria humildade; não foram poucos os erros cometidos, no passado, por profissionais bem-intencionados, erros esses que, como diz o provérbio, a terra escondeu. E não apenas os médicos ou os estudantes de medicina precisam conhecer essa história; ela deve ser levada ao público em geral. O meio editorial brasileiro não tem sido particularmente pródigo em livros do gênero; por isso, o aparecimento de duas importantes obras deve ser saudado com entusiasmo. Ambas obedecem ao mesmo enfoque -a visão da medicina como um fenômeno social-, ambas se completam; uma diz respeito à medicina no mundo, a outra à medicina no Brasil. A primeira delas é "Das Tripas Coração" ("Blood and Guts"), que tem como subtítulo "Uma História Social da Medicina". Seu autor, o historiador Roy Porter (1946-2002), foi professor no prestigioso Instituto Wellcome para a História das Ciências, em Londres, um centro voltado para a história da medicina. Prolífico autor (escreveu ou editou mais de uma centena de livros), Porter reúne aqui as palestras dadas em um curso; são textos amenos, bem ilustrados, que se caracterizam não apenas pelo conhecimento, como também pelo humor, não raro irônico.

A medicina hoje
Na organização do volume, Porter deixou de lado a seqüência cronológica e preferiu dividir o assunto em vários temas, provavelmente mais compatíveis com a forma de curso e com o foco atual de atenções do público. "Corpo", por exemplo, é palavra da moda e, dito e feito, a terceira parte é dedicada ao corpo. Nas outras, aborda a doença, os médicos, o laboratório, terapias, cirurgia, o hospital, a medicina na sociedade moderna. Estes temas obviamente não são excludentes nem seqüenciais, de modo que podem dificultar um pouco o uso da obra para pesquisas. Mas há um índice remissivo (e também uma bibliografia recomendada). Particularmente interessante é o último capítulo, em que Porter faz uma análise da medicina na atualidade. Não é um quadro animador, segundo ele, a começar pelos custos: "A moderna assistência médica transformou-se numa colossal indústria", que absorve uma parcela do PIB proporcionalmente maior que a de qualquer outra área, mas que nem por isso resulta em satisfação do público: "O toque pessoal, tão essencial à cura, se perdeu". Os médicos hoje são basicamente empregados no setor público ou privado. É verdade que a medicina preventiva se desenvolveu muito e que os benefícios da ciência foram estendidos à população, atendendo inclusive a "desejos ligados ao estilo de vida" (cirurgia estética, por exemplo). Mas, "passada a era dourada de algumas gerações, o clima público não é de otimismo, mas de ansiedade". Ansiedade faz parte da condição humana, mas, quando se olham os números, inclusive os do Brasil, as evidências são animadoras: a mortalidade infantil caiu, a expectativa de vida aumentou, doenças transmissíveis foram erradicadas ou estão em via de controle. Divergências à parte, fica a conclusão: o livro de Porter é uma excelente introdução à história da medicina, para médicos, estudantes e público em geral. A evolução das "artes e ofícios de curar", no Brasil, tem atraído a atenção de muitos historiadores. Há um excelente grupo na Fundação Oswaldo Cruz, do Ministério da Saúde; a este, juntam-se agora os autores do livro organizado por Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão Marques, Gabriela dos Reis Sampaio e Carlos Roberto Galvão Sobrinho, todos ligados ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa origem comum ajuda a explicar a notável homogeneidade de "Artes e Ofícios de Curar no Brasil", que, como o de Roy Porter, divide o tema em várias áreas: ciência e ideologia, teorias médicas, remédios, religiosidades, curadores. Nos trabalhos, um característico comum, a postura eminentemente crítica em relação ao estabelecimento médico do passado e sua contraposição à medicina popular, praticada por pajés e curandeiros. Assim, Sidney Chalhoub, baseando-se em Machado de Assis, satiriza a visão de cientistas europeus do século 19, "(...) tão meditabundos quanto Brás Cubas". Magali Engel fala-nos de outro escritor, Lima Barreto, diagnosticado como louco, e sua sombria passagem pelo hospício, domínio dos alienistas que "monopolizavam a "verdadeira razão'".

Empirismo
Mas Luiz Otávio Ferreira mostra que, apesar da suposta hegemonia da medicina científica, "os médicos se viam obrigados a dialogar com a tradição médica popular". E por que isso acontecia? Porque a medicina, em realidade, era muito pouco científica, e não só no Brasil. Roy Porter mostra que, até o começo da modernidade, os médicos não sabiam como era o corpo humano por dentro. Tanto o diagnóstico como o tratamento eram basicamente empíricos, e a medicina provavelmente matava tanto quanto curava, uma situação que só começou a mudar com a revolução científica no final do século 19 e que permitiu, entre outras coisas, a identificação de germes causadores de doenças.
O progresso não foi imediato. Marta de Almeida enfatiza a resistência de muitos médicos à, então nova, idéia de que a febre amarela é transmitida por mosquitos, uma resistência que custou caro a Oswaldo Cruz e Emílio Ribas; este último, junto com Adolfo Lutz, deixou-se picar por mosquitos infectados, uma experiência que já havia sido feita por médicos militares americanos em Cuba.
Se os médicos discutiam entre si, não é de admirar que as pessoas tivessem desconfiança em relação à medicina dita oficial, mesmo porque a população indígena já tinha seus doutores, os pajés, cujo papel é discutido por Maria Leônia Chaves de Resende e Aldrin Moura de Figueiredo. Os escravos negros também haviam trazido da África práticas curativas, às quais as pessoas freqüentemente recorriam, como mostra Tânia Salgado Pimenta. No Brasil setecentista, diz Vera Regina Beltrão Marques, proliferaram os remédios secretos, como era o caso da "jurema", bebida que curava infecções, provocava abortos e proporcionava visões do mundo dos espíritos.

Remédio milagroso
A ansiedade da população crescia em situações de epidemia. Regina Xavier fala da aflição dos campinenses com a varíola, doença muito contagiosa. Já existia uma vacina, mas era precária, e, apesar da indignação de médicos, as pessoas buscavam outros recursos, entre eles a ajuda de um "professor de magnetismo e homeopatia". O mesmo aconteceu, diz Liane Maria Bertucci, quando da epidemia da gripe espanhola. Até cigarros eram recomendados como profilaxia: "Nada de pânico: fumem Sudan", dizia um anúncio.
No surto de cólera que atingiu Recife em 1856, conta Ariosvaldo da Silva Diniz, surgiu um curandeiro que anunciava um remédio milagroso contra a doença e que chegou a atender no hospital da Marinha, o que provocou a renúncia coletiva da Comissão de Higiene Pública de Pernambuco. Gabriela dos Reis Sampaio fala-nos de outro feiticeiro famoso, Juca Rosa, que, no entanto, acabou preso: o poder de grupos médicos não deve ser subestimado.
Fica evidente, em todos os trabalhos, uma duplicidade: de um lado, a medicina oficial, de outro, a medicina exercida por curandeiros, pajés e outros. Uma duplicidade que continua presente, não só no Brasil como em países ditos adiantados, sob a forma da chamada medicina alternativa. Por quê? A palavra-chave é acessibilidade. Um curandeiro estava mais próximo da população, comunicava-se melhor com esta, tinha mais tempo, era mais tolerante -e menos arrogante. Uma lição que a medicina penosamente aprendeu. E aprendeu inclusive por causa das ações judiciais movidas por pacientes inconformados. A relação médico-paciente passou a ser valorizada; a humanização da profissão, de que falamos no início, está na ordem do dia.
Igualmente importante, a prática médica já não se apóia mais na pura e simples autoridade do doutor, mas sim na evidência científica. A história -e os textos desses autores são exemplares nesse sentido- mostra que é possível, sim, aprender com a experiência.


Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha. É médico especializado em saúde pública e autor de "A Paixão Transformada - História da Medicina na Literatura" e "Os Leopardos de Kafka" (Companhia das Letras), entre outros.


Das Tripas Coração
240 págs., R$ 34,90 de Roy Porter. Trad. Vera Ribeiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).

Artes e Ofícios de Curar no Brasil
428 págs., R$ 44,00 Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão Marques, Gabriela dos Reis Sampaio e Carlos Roberto Galvão Sobrinho (orgs.). Ed. Unicamp (r. Caio Graco Prado, 50, Unicamp, caixa postal 6.074, CEP 13083-892, Campinas, São Paulo, tel. 0/xx/19/ 3788-7728).



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