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"DAS TRIPAS CORAÇÃO" E "ARTES E OFÍCIOS DE CURAR NO BRASIL" RECONTAM A EVOLUÇÃO DA MEDICINA, DAS PRÁTICAS POPULARES DE PAJÉS E CURANDEIROS E DE SUAS IMPLICAÇÕES SOCIAIS
A INDÚSTRIA ANSIOSA CONTRA O CORPO SANTO
Moacyr Scliar
Colunista da Folha
History is bunk", história é papo-furado, disse Henry Ford. A
arrogante declaração provavelmente reflete uma concepção
comum entre pessoas pragmáticas,
aquelas pessoas que, se não ganham milhões como Ford, pelo menos sonham
com isso e acham que não podem perder
tempo lendo sobre o passado. A verdade,
porém, é que textos sobre história têm
um público cada vez mais amplo; várias
revistas sobre o tema foram lançadas recentemente no Brasil. Mais: a historiografia se diversifica, se especializa.
Exemplo disso é a história da medicina, disciplina que conquistou seu lugar
no currículo de muitas universidades,
inclusive no Brasil, como parte das humanidades médicas: ética, antropologia,
literatura e medicina.
Trata-se de neutralizar um pouco o excessivo viés tecnológico da profissão,
viés esse que está prejudicando a relação
médico-paciente e pode até ser um fator,
ao menos coadjuvante, no crescente
conflito que leva pessoas a processar judicialmente os doutores. Além disso, a
visão histórica da medicina resulta numa
lição de sóbria humildade; não foram
poucos os erros cometidos, no passado,
por profissionais bem-intencionados,
erros esses que, como diz o provérbio, a
terra escondeu. E não apenas os médicos
ou os estudantes de medicina precisam
conhecer essa história; ela deve ser levada ao público em geral.
O meio editorial brasileiro não tem sido particularmente pródigo em livros do
gênero; por isso, o aparecimento de duas
importantes obras deve ser saudado com
entusiasmo. Ambas obedecem ao mesmo enfoque -a visão da medicina como
um fenômeno social-, ambas se completam; uma diz respeito à medicina no
mundo, a outra à medicina no Brasil.
A primeira delas é "Das Tripas Coração" ("Blood and Guts"), que tem como
subtítulo "Uma História Social da Medicina". Seu autor, o historiador Roy Porter (1946-2002), foi professor no prestigioso Instituto Wellcome para a História
das Ciências, em Londres, um centro
voltado para a história da medicina. Prolífico autor (escreveu ou editou mais de
uma centena de livros), Porter reúne
aqui as palestras dadas em um curso; são
textos amenos, bem ilustrados, que se
caracterizam não apenas pelo conhecimento, como também pelo humor, não
raro irônico.
A medicina hoje
Na organização do
volume, Porter deixou de lado a seqüência cronológica e preferiu dividir o assunto em vários temas, provavelmente
mais compatíveis com a forma de curso e
com o foco atual de atenções do público.
"Corpo", por exemplo, é palavra da moda e, dito e feito, a terceira parte é dedicada ao corpo. Nas outras, aborda a doença, os médicos, o laboratório, terapias, cirurgia, o hospital, a medicina na sociedade moderna. Estes temas obviamente
não são excludentes nem seqüenciais, de
modo que podem dificultar um pouco o
uso da obra para pesquisas. Mas há um
índice remissivo (e também uma bibliografia recomendada).
Particularmente interessante é o último capítulo, em que Porter faz uma análise da medicina na atualidade. Não é um
quadro animador, segundo ele, a começar pelos custos: "A moderna assistência
médica transformou-se numa colossal
indústria", que absorve uma parcela do
PIB proporcionalmente maior que a de
qualquer outra área, mas que nem por isso resulta em satisfação do público: "O
toque pessoal, tão essencial à cura, se
perdeu". Os médicos hoje são basicamente empregados no setor público ou
privado. É verdade que a medicina preventiva se desenvolveu muito e que os
benefícios da ciência foram estendidos à
população, atendendo inclusive a "desejos ligados ao estilo de vida" (cirurgia estética, por exemplo). Mas, "passada a era
dourada de algumas gerações, o clima
público não é de otimismo, mas de ansiedade". Ansiedade faz parte da condição humana, mas, quando se olham os
números, inclusive os do Brasil, as evidências são animadoras: a mortalidade
infantil caiu, a expectativa de vida aumentou, doenças transmissíveis foram
erradicadas ou estão em via de controle.
Divergências à parte, fica a conclusão:
o livro de Porter é uma excelente introdução à história da medicina, para médicos, estudantes e público em geral.
A evolução das "artes e ofícios de curar", no Brasil, tem atraído a atenção de
muitos historiadores. Há um excelente
grupo na Fundação Oswaldo Cruz, do
Ministério da Saúde; a este, juntam-se
agora os autores do livro organizado por
Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão
Marques, Gabriela dos Reis Sampaio e
Carlos Roberto Galvão Sobrinho, todos
ligados ao Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Essa
origem comum ajuda a explicar a notável homogeneidade de "Artes e Ofícios
de Curar no Brasil", que, como o de Roy
Porter, divide o tema em várias áreas:
ciência e ideologia, teorias médicas, remédios, religiosidades, curadores.
Nos trabalhos, um característico comum, a postura eminentemente crítica
em relação ao estabelecimento médico
do passado e sua contraposição à medicina popular, praticada por pajés e curandeiros. Assim, Sidney Chalhoub, baseando-se em Machado de Assis, satiriza
a visão de cientistas europeus do século
19, "(...) tão meditabundos quanto Brás
Cubas". Magali Engel fala-nos de outro
escritor, Lima Barreto, diagnosticado como louco, e sua sombria passagem pelo
hospício, domínio dos alienistas que
"monopolizavam a "verdadeira razão'".
Empirismo
Mas Luiz Otávio Ferreira
mostra que, apesar da suposta hegemonia da medicina científica, "os médicos
se viam obrigados a dialogar com a tradição médica popular". E por que isso
acontecia? Porque a medicina, em realidade, era muito pouco científica, e não só
no Brasil. Roy Porter mostra que, até o
começo da modernidade, os médicos
não sabiam como era o corpo humano
por dentro. Tanto o diagnóstico como o
tratamento eram basicamente empíricos, e a medicina provavelmente matava
tanto quanto curava, uma situação que
só começou a mudar com a revolução
científica no final do século 19 e que permitiu, entre outras coisas, a identificação
de germes causadores de doenças.
O progresso não foi imediato. Marta de
Almeida enfatiza a resistência de muitos
médicos à, então nova, idéia de que a febre amarela é transmitida por mosquitos, uma resistência que custou caro a
Oswaldo Cruz e Emílio Ribas; este último, junto com Adolfo Lutz, deixou-se
picar por mosquitos infectados, uma experiência que já havia sido feita por médicos militares americanos em Cuba.
Se os médicos discutiam entre si, não é
de admirar que as pessoas tivessem desconfiança em relação à medicina dita oficial, mesmo porque a população indígena já tinha seus doutores, os pajés, cujo
papel é discutido por Maria Leônia Chaves de Resende e Aldrin Moura de Figueiredo. Os escravos negros também
haviam trazido da África práticas curativas, às quais as pessoas freqüentemente
recorriam, como mostra Tânia Salgado
Pimenta. No Brasil setecentista, diz Vera
Regina Beltrão Marques, proliferaram os
remédios secretos, como era o caso da
"jurema", bebida que curava infecções,
provocava abortos e proporcionava visões do mundo dos espíritos.
Remédio milagroso
A ansiedade
da população crescia em situações de
epidemia. Regina Xavier fala da aflição
dos campinenses com a varíola, doença
muito contagiosa. Já existia uma vacina,
mas era precária, e, apesar da indignação
de médicos, as pessoas buscavam outros
recursos, entre eles a ajuda de um "professor de magnetismo e homeopatia". O
mesmo aconteceu, diz Liane Maria Bertucci, quando da epidemia da gripe espanhola. Até cigarros eram recomendados
como profilaxia: "Nada de pânico: fumem Sudan", dizia um anúncio.
No surto de cólera que atingiu Recife
em 1856, conta Ariosvaldo da Silva Diniz,
surgiu um curandeiro que anunciava um
remédio milagroso contra a doença e
que chegou a atender no hospital da Marinha, o que provocou a renúncia coletiva da Comissão de Higiene Pública de
Pernambuco. Gabriela dos Reis Sampaio
fala-nos de outro feiticeiro famoso, Juca
Rosa, que, no entanto, acabou preso: o
poder de grupos médicos não deve ser
subestimado.
Fica evidente, em todos os trabalhos,
uma duplicidade: de um lado, a medicina oficial, de outro, a medicina exercida
por curandeiros, pajés e outros. Uma duplicidade que continua presente, não só
no Brasil como em países ditos adiantados, sob a forma da chamada medicina
alternativa. Por quê? A palavra-chave é
acessibilidade. Um curandeiro estava
mais próximo da população, comunicava-se melhor com esta, tinha mais tempo, era mais tolerante -e menos arrogante. Uma lição que a medicina penosamente aprendeu. E aprendeu inclusive
por causa das ações judiciais movidas
por pacientes inconformados. A relação
médico-paciente passou a ser valorizada;
a humanização da profissão, de que falamos no início, está na ordem do dia.
Igualmente importante, a prática médica já não se apóia mais na pura e simples autoridade do doutor, mas sim na
evidência científica. A história -e os
textos desses autores são exemplares
nesse sentido- mostra que é possível,
sim, aprender com a experiência.
Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha. É
médico especializado em saúde pública e autor de
"A Paixão Transformada - História da Medicina na
Literatura" e "Os Leopardos de Kafka" (Companhia
das Letras), entre outros.
Das Tripas Coração
240 págs., R$ 34,90
de Roy Porter. Trad. Vera Ribeiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, tel.
0/xx/21/ 2585-2000).
Artes e Ofícios de Curar no Brasil
428 págs., R$ 44,00
Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão Marques,
Gabriela dos Reis Sampaio e Carlos Roberto Galvão Sobrinho (orgs.). Ed. Unicamp (r. Caio Graco
Prado, 50, Unicamp, caixa postal 6.074, CEP
13083-892, Campinas, São Paulo, tel. 0/xx/19/
3788-7728).
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