São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
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Novos olhos

NICOLAU SEVCENKO

Agora podemos ver Machado de Assis como nunca vimos antes. Ver a sua obra como um todo articulado e poder perceber com clareza, então, temas dominantes, recursos de composição e processos criativos que antes era difícil de ver concentrados em apenas alguns textos, os mais conhecidos, os mais estudados, os mais comentados e aqueles nos quais se concentravam, sobretudo, a nossa formação na escola e na universidade.
Obviamente, nesse nosso limite de tempo não dá para compor esse painel. Eu vou tentar caracterizar só por meio de um exemplo o modo como essa abertura de perspectiva dos estudos mais recentes sobre o Machado acabou permitindo que se veja com novos olhos algo que, de forma concentrada, nunca seria visto. Por exemplo, o modo como o Machado trabalha com três fórmulas clássicas, que são: os apólogos, as fábulas e as parábolas. Elas se espalham por igual. Se ficamos apenas nos romances, não fica tão claro como esse é o instrumento com o qual ele compõe a sua ficção, por assim dizer, os tijolos com que ele faz a arquitetura das suas obras. Mas, se consideramos tudo ao mesmo tempo -os romances, os contos, as crônicas e os textos poéticos e traduções poéticas-, vai ficando imensamente claro como a sua ficção, a sua produção literária, se organiza em função desses pequenos fragmentos, desses pequenos textos que são os apólogos, as fábulas e as parábolas.
Essa forma é bastante antiga na tradição literária ocidental. Ela, de fato, vem da cultura greco-romana, por uma caracterização bastante superficial. A distinção entre elas é mais ou menos essa: o apólogo se concentra em seres inanimados que conversam entre si. As fábulas, em animais que dialogam entre si, e as parábolas, em pessoas, seres humanos. Se pegarmos qualquer texto de Machado, veremos que ele se organiza por um processo narrativo todo ele apoiado em parábolas, que são o ponto-chave, o ponto que dá a notação crítica, a notação irônica e que produz o efeito que aponta para a dimensão conclusiva. (...)
De qualquer forma, então, o que vemos é como esses três recursos -o apólogo, a fábula e a parábola- são uma característica básica dos textos de Machado, e podemos então entender como é que eles operam. Eles são, antes de mais nada, fragmentos completos, no sentido de que têm princípio, meio e fim. São uma micronarrativa dentro da narrativa, sempre de natureza anedótica, sempre baseado num elemento contingente, num fato básico e simples. Têm uma estrutura dramática bem definida, na medida em que criam uma situação de tensão narrativa e desenvolvem um enredo que aponta para um desfecho, e esse desfecho tem um fundo moralizante, um fundo ético, o que dá ao apólogo, à fábula ou à parábola o seu cunho alegórico, simbólico. Essa é a maneira como ele faz cintilar o seu texto e faz com que ele repercuta no campo amplo da cultura.


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