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A pulga no cachorro
ROBERTO SCHWARZ
Os contos de Machado de Assis
são uma grande coisa da literatura
e do pensamento brasileiros. Acho
razoável dizer que, lendo e relendo esses contos, nós realmente
poderíamos nos educar sobre
quase todos os assuntos centrais
da cultura brasileira.
O potencial educativo dos contos é realmente muito grande, no
sentido exigente da palavra: os
problemas morais da sociedade
brasileira estão lá de modo muito
aprofundado, muito real. Esse aspecto foi muito pouco visto pela
crítica até agora, ou pelo menos
não foi explorado na sua devida
envergadura.
Para que se possa fazer isso, seria
preciso ver os contos de Machado
de Assis no seu conjunto, o que
não é fácil. Em primeiro lugar, os
contos são obras-primas e convidam a um mergulho particular em
cada um deles isoladamente. E, de
fato, a maior parte do esforço intelectual, sobretudo em salas de aula, é de interpretação de contos
isolados. Mas há também um outro problema: como ver esses contos em conjunto? (...) Há uma
grande diversidade de formas e, se
se coloca a questão de como pensar uma unidade de coisas tão diversas, elas realmente parecem
não ter nada a ver umas com as
outras. (...)
De certo modo, são formas que
não nascem da própria matéria.
São formas que o Machado de Assis chapou em cima de maneira
humoristicamente arbitrária. É
como se, de repente, uma pulga
do meu cachorro me mordesse, eu
fico irritado com o meu cachorro
e invento um capítulo bíblico a
respeito. Então, não há nada nem
no meu cachorro, nem na pulga,
que me empurre para a Bíblia,
mas o Machado vai para a Bíblia.
Então, nesse passo da pulga e do
cachorro para a Bíblia, há um elemento de total arbitrariedade.
Como isso acontece em boa parte dos contos, logo vamos nos
dando conta de que essas formas
são brincadeiras. Brincadeira não
é a palavra bem apropriada, mas
vamos começar por aí: elas não
são para valer. Em outras palavras, são enquadramentos, por
meio dos quais o Machado opera
alguma coisa literária sobre a qual
é preciso pensar. (...)
Os contos não são unificados
por uma personagem só. São 200
situações diferentes sem um narrador que unifique tudo. E também não há uma intriga que unifique tudo, cada conto é um conto.
Entretanto, olhando o conjunto,
nós sentimos que eles pertencem a
alguma coisa em comum, que no
caso não pode ser nem o narrador
nem o personagem, mas que é a
sociedade brasileira a construir.
Quer dizer, examinando o conjunto dos contos, vamos percebendo que há ali dentro uma extraordinária diversidade de registros, técnicas literárias, formas.
Atrás de tudo isso há um conjunto
de relações sociais que vai se impondo devagarinho, por meio
dessa diversidade das formas, que,
mal ou bem, vamos explorando.
E, de fato, eu penso que, enfim,
essa é uma proposta de maneira
de encaminhar o estudo dos contos no seu conjunto. Se nós formos por aí, vai nos aparecer -essa seria enfim minha hipótese-
que os contos de Machado de Assis são uma grande exploração,
muito sistematizada, extremamente poderosa, da experiência
histórica brasileira. E, quando digo experiência histórica brasileira,
não estou querendo ser nacionalista nem pitoresco, não quero dizer que sejam contos que apanham as cores da baía da Guanabara ou o colorido dos nossos passarinhos. Não é isso.
Trata-se de uma experiência
-no ângulo que o Machado de
Assis explora- do sistema das relações sociais brasileiras, que é um
grande problema, que é o problema de uma sociedade escravista
inserida no mundo moderno. Isso
tem consequências até hoje, como
todos nós sabemos. Então, nesse
sentido, o conjunto dos contos de
Machado de Assis pode ser visto
como uma vasta e poderosa exploração de um aspecto importante
do mundo moderno, que era a
configuração extremamente desastrada e dolorosa da sociedade
brasileira.
Os textos acima são reproduções de trechos das
falas de John Gledson, Nicolau Sevcenko e Roberto Schwarz no debate promovido pela Folha
e pela Companhia das Letras.
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