São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A pulga no cachorro

ROBERTO SCHWARZ

Os contos de Machado de Assis são uma grande coisa da literatura e do pensamento brasileiros. Acho razoável dizer que, lendo e relendo esses contos, nós realmente poderíamos nos educar sobre quase todos os assuntos centrais da cultura brasileira.
O potencial educativo dos contos é realmente muito grande, no sentido exigente da palavra: os problemas morais da sociedade brasileira estão lá de modo muito aprofundado, muito real. Esse aspecto foi muito pouco visto pela crítica até agora, ou pelo menos não foi explorado na sua devida envergadura.
Para que se possa fazer isso, seria preciso ver os contos de Machado de Assis no seu conjunto, o que não é fácil. Em primeiro lugar, os contos são obras-primas e convidam a um mergulho particular em cada um deles isoladamente. E, de fato, a maior parte do esforço intelectual, sobretudo em salas de aula, é de interpretação de contos isolados. Mas há também um outro problema: como ver esses contos em conjunto? (...) Há uma grande diversidade de formas e, se se coloca a questão de como pensar uma unidade de coisas tão diversas, elas realmente parecem não ter nada a ver umas com as outras. (...)
De certo modo, são formas que não nascem da própria matéria. São formas que o Machado de Assis chapou em cima de maneira humoristicamente arbitrária. É como se, de repente, uma pulga do meu cachorro me mordesse, eu fico irritado com o meu cachorro e invento um capítulo bíblico a respeito. Então, não há nada nem no meu cachorro, nem na pulga, que me empurre para a Bíblia, mas o Machado vai para a Bíblia. Então, nesse passo da pulga e do cachorro para a Bíblia, há um elemento de total arbitrariedade.
Como isso acontece em boa parte dos contos, logo vamos nos dando conta de que essas formas são brincadeiras. Brincadeira não é a palavra bem apropriada, mas vamos começar por aí: elas não são para valer. Em outras palavras, são enquadramentos, por meio dos quais o Machado opera alguma coisa literária sobre a qual é preciso pensar. (...)
Os contos não são unificados por uma personagem só. São 200 situações diferentes sem um narrador que unifique tudo. E também não há uma intriga que unifique tudo, cada conto é um conto. Entretanto, olhando o conjunto, nós sentimos que eles pertencem a alguma coisa em comum, que no caso não pode ser nem o narrador nem o personagem, mas que é a sociedade brasileira a construir. Quer dizer, examinando o conjunto dos contos, vamos percebendo que há ali dentro uma extraordinária diversidade de registros, técnicas literárias, formas. Atrás de tudo isso há um conjunto de relações sociais que vai se impondo devagarinho, por meio dessa diversidade das formas, que, mal ou bem, vamos explorando.
E, de fato, eu penso que, enfim, essa é uma proposta de maneira de encaminhar o estudo dos contos no seu conjunto. Se nós formos por aí, vai nos aparecer -essa seria enfim minha hipótese- que os contos de Machado de Assis são uma grande exploração, muito sistematizada, extremamente poderosa, da experiência histórica brasileira. E, quando digo experiência histórica brasileira, não estou querendo ser nacionalista nem pitoresco, não quero dizer que sejam contos que apanham as cores da baía da Guanabara ou o colorido dos nossos passarinhos. Não é isso.
Trata-se de uma experiência -no ângulo que o Machado de Assis explora- do sistema das relações sociais brasileiras, que é um grande problema, que é o problema de uma sociedade escravista inserida no mundo moderno. Isso tem consequências até hoje, como todos nós sabemos. Então, nesse sentido, o conjunto dos contos de Machado de Assis pode ser visto como uma vasta e poderosa exploração de um aspecto importante do mundo moderno, que era a configuração extremamente desastrada e dolorosa da sociedade brasileira.


Os textos acima são reproduções de trechos das falas de John Gledson, Nicolau Sevcenko e Roberto Schwarz no debate promovido pela Folha e pela Companhia das Letras.



Texto Anterior: Nicolau Sevcenko: Novos olhos
Próximo Texto: Machado de Assis: O enigma do olhar de Alfredo Bosi
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.