São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
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MACHADO DE ASSIS - O ENIGMA DO OLHAR DE ALFREDO BOSI

Trecho do ensaio "O Enigma do Olhar"

O romance burguês do século 19 multiplicou histórias de adultério. Às vezes consumado (Virgília), às vezes negaceado ou fantasiado (Sofia), mas raramente ou nunca introjetado como autodeterminação, escolha, mudança de eixo que pusesse em risco a integração social da personagem.
Capitu, inculpada por Bentinho, e percebendo que a convicção deste era inabalável, nega e pede a separação, que se fará sem escândalo nem prejuízo econômico algum para ela. Capitu viverá na Suíça até o seu último dia e criará o filho como uma rica dama sul-americana, dando-lhe educação refinada a ponto de torná-lo um arqueólogo orientalista. Bento não a desampara e cuida de salvar as aparências viajando regularmente para a Europa. Para os "mores" de uma sociedade machista e patriarcal, temos que admitir que o arreglo final valeu à acusada um atestado público de respeitabilidade com todos os benefícios decorrentes. Receio apenas que essa leitura pareça demasiado economicista, coisa que o autor destas linhas professa não ser, bastando-lhe um realismo aberto que não decrete "a priori" a exclusão de qualquer aspecto do real.
De todo modo, é à imaginação metafórica que cabe iluminar os meandros das diferenças individuais. Capitu é uma personagem mais densa que Virgília ou Sofia. É verossímil que a filha dos Pádua lute para obter um lugar melhor no regime paternalista do tempo, cujas peças-chaves encadeadas eram o matrimônio e o patrimônio; no entanto, a primeira natureza nela transborda do leito cavado pelos interesses, como a vida transborda, quando pode, da compostura social que a limita e represa.
Na menina e moça pulsam a "força" e o "viço", qualidades intrínsecas da Natureza que já se haviam mostrado a Brás Cubas em delírio. Nela também dá-se a "explosão" da "fúria", expressões literais do narrador quando lembra a violência súbita da namorada que vê contrariado o seu desejo de casar com ele. "Cerrava os dentes, abanava a cabeça (...)" Que esta reação de mulher frustrada ceda logo depois a um jeito sério, atento, "sem aflição", apenas confirma um dos movimentos daquela mesma Natureza, que era o de "encerrar no coração" as suas raivas, quando as tinha.
Capitu, com a tímida conivência de um Bentinho bisonho e maleável, urde táticas de aliciar uns, driblar outros, cooptando os fortes e constrangendo os fracos. Leiam-se os seus conselhos a Bento em relação a José Dias, no capítulo "Um Plano": "Mostre que há de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor" -recomendação que será tudo menos índice de sentimentos democráticos. Capitu dava ao ainda inexperto Bentinho lições de como ser perfeito proprietário e futuro "paterfamilias".
Toda essa arte de disfarçar e manipular será moderna apenas na acepção que à palavra lhe dava o probo Jacó, conhecido de Brás Cubas, a quem ensinou que "a veracidade absoluta era incompatível com um estado social adiantado". Sentença que, se não é uma cortante denúncia do par mentira-modernidade, tampouco chega a ser um elogio. Digamos: será a aceitação de que a mascarada social se faz cada vez mais necessária, logo desculpável; mas para bem representá-la, não será preciso sair do círculo da nossa família burguesa ampliada, mestra nas manhas de trapacear com ou sem encanto. Foi este o palco que Machado conheceu.
Da ilustração européia Machado extraiu menos a crença no progresso da razão do que a suspeita bem voltairiana de que os homens de todas as épocas foram vítimas complacentes das suas ilusões e de toda sorte de paixões cristalizadas em um conceito que é, ao mesmo tempo, natural e social: o interesse. "Se o universo físico está submetido às leis do movimento, o universo moral está submetido às leis do interesse. O interesse é, na Terra, o mago poderoso que muda aos olhos de todas as criaturas, a forma de todos os objetos."
Mas o tipo da vizinha de extração mediana se aprofunda e humaniza visto nos aspectos vários da pessoa diferenciada e singular. É desta pessoa única que fala o romancista; dela falaria o historiador social se pudesse traçar a quadratura do círculo que é resolver o problema do discurso individual.
Ainda que termos de modos de conhecimento, é significativo que, na figuração de Capitu, o narrador recorra à tautologia, desistindo de dar à namorada uma definição estreita e quadrada: "Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem".
O singular em estado puro -Capitu era Capitu- casa-se com o universal feminino (mulher), e daí nasce este "mui particular", intensivo, que leva ao extremo possível a recusa à classificação. A crítica literária, como pensava Croce, não consegue habitar esse lugar único e inconfundível da figuração poética: contenta-se com tecer uma caracterização nuançada, o mais contígua possível à intuição do artista, mas sempre assintótica quando confrontada com esta.
Capitu era Capitu. E, ao lado da tautologia, há o papel de relevo que tem a metáfora na construção da personagem singular. O narrador o admite e nos instrui quando, por exemplo, ao flagrar o verdadeiro sentimento de Pádua (pai de Capitu), humilhado na procissão porque só lhe coubera portar uma tocha, e não a vara do pálio, assim o exprime: "Palha roía a tocha amargamente". E nos explica, usando de um giro metalinguístico: "É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho". "Roer a tocha" é metáfora, e "amargamente" a qualifica de perto. A forma viva, que solda a intuição à palavra, plasma-se na figura. Trata-se de um procedimento estético arcano, mas sempre aberto a surpresas no trabalho do conhecimento das pessoas; e difere da mera categorização que tende a estancar o dinamismo do sentido, como fazia a alegoria fixada na exemplaridade. O narrador circunspecto sabe o momento em que deve apenas mimetizar o tipo que a convenção já lhe deu pronto (é a hora de olhar para baixo ou por baixo) e o momento em que se depara com seres originais: é a hora de tirar os olhos do chão.
Perseguir o imaginário que enforma uma personagem como Capitu é refazer o caminho que a leitura estilística já fez no seu período fecundo entre os anos 40 e 50. Estudos precisos de Augusto Meyer e de Eugênio Gomes valorizaram o papel da linguagem metafórica em Machado. A imaginação do nosso narrador produziu perfis singularizantes e já não meramente remissivos, o que teria feito se houvesse obedecido à regra pela qual a forma narrativa nada mais é do que forma estratificada da convenção social. A imaginação, mesmo quando parece mimética, é heurística: descobre na personagem de ficção virtualidades e modos de ser que a cosia empírica não entrega ao olhar supostamente realista e, na verdade, apenas rotulador.


Trecho de "Machado de Assis - O Enigma do Olhar", de Alfredo Bosi, a ser lançado pela Editora Ática nesta semana. Reproduzido com a autorização da editora.



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