São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Fora. do eixo

O brasilianista inglês Kenneth Maxwell rebate a tese das duas esquerdas defendida pelo mexicano Jorge Castañeda e afirma que a Bolívia vive hoje um "terremoto" político e social

Jorge Araújo - 9.dez.2005/Folha Imagem
Os presidentes Hugo Chávez (Venezuela), Néstor Kirchner (Argentina) e Luiz Inácio Lula da Silva durante a 29ª Cúpula do Mercosul, em Montevidéu (Uruguai)


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A Bolívia é um terremoto, o peronismo, uma criatura que não morre nem com uma estaca no peito, e a América Latina como um todo hoje lhe surge como um mosaico de respostas específicas a estruturas políticas decadentes.
Não se pode negar que o historiador Kenneth Maxwell seja bom de imagens. A seus olhos, nosso continente pode estar à beira de um momento de virada e renovação tanto da ação quanto do discurso político.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o brasilianista, autor de "A Devassa da Devassa" (ed. Paz e Terra), concedeu à Folha, por e-mail.  

FOLHA - Existe uma impressão generalizada na mídia internacional de que a América Latina vem se voltando para a esquerda. O que acha? KENNETH MAXWELL - É verdade. Mas é também um modo preguiçoso de pensar. Pessoalmente, creio que "esquerda" não é uma categoria que possa ser muito útil ou adequada. A idéia de que há uma esquerda "certa" e uma esquerda "errada", descritas por Jorge Castañeda em artigo na revista "Foreign Affairs" [leia na página ao lado] é uma visão puramente instrumental.
Em muitos aspectos, essa é uma versão mais sofisticada da velha idéia de "eixo do mal", mas servida de modo tão delicado que os gringos liberais a podem engolir de uma vez só -algo que, aliás, eles já fizeram.
Lembre-se de que muitos desses colocaram Lula na categoria de esquerda "errada" antes de ele assumir e, agora, ele é o herói da esquerda "certa".
Mas é verdade que existe hoje uma crise política de governabilidade na América Latina. E não é fácil colocar nessa crise um rótulo. Na verdade, nós podemos estar testemunhando um daqueles momentos de virada histórica, quando novas coalizões e novos discursos políticos emergem.

FOLHA - Como o sr. diferencia essas esquerdas? MAXWELL - Existem muito poucos socialistas utópicos à moda antiga na América Latina hoje, mesmo em Cuba. Castañeda estava certo sobre isso em seu "A Utopia Desarmada" (1994, editado no Brasil pela Cia. das Letras). A visão marxista foi enterrada no final da Guerra Fria.
Em parte porque ficou impossível achar que algo da experiência soviética pudesse se salvar. Mas também porque, de uma perspectiva latino-americana, o poder soviético serviu de contrapeso aos EUA.
E muitos intelectuais latino-americanos de classe média, de aspirações nacionalistas profundas, mas de convicções superficiais de esquerda, se agarraram à União Soviética.
Mas é preciso ter em vista que também é verdade que as alternativas mágicas prometidas pelo "mercado" também não funcionaram no continente. Pelo menos a maioria da população da América Latina, e certamente a maior parte da população da Bolívia, parece acreditar fortemente que essas políticas faliram. E quem pode dizer que estão errados? Eles devem saber. Tiveram de viver as conseqüências de políticas falidas no seu dia-a-dia.

FOLHA - Como o sr. vê o continente politicamente, então? MAXWELL - Trata-se de um mosaico de respostas específicas a estruturas políticas decadentes, cada vez mais altos níveis de desigualdade e exclusão social, tendências crescentes de migração interna e externa, tudo misturado a uma impressionante capacidade de comunicação através de regiões geográficas e de classes e etnias. O colunista do "New York Times" Thomas Friedman chama isso de horizontalização do planeta.
É justo. Mas acho que essa interpretação deixa de lado uma dimensão importante. A terra plana é, na verdade, um solo plano que tem portas escondidas para porões planos, e esses porões, por sua vez, são interconectados também.
Nos níveis mais altos, existe comércio, fluxo de capitais, troca de conhecimento e o poder da internet para comunicações transnacionais e nacionais.
Nos níveis mais baixos, anéis de prostituição infantil, pedofilia, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Além disso, celulares que podem provocar levantes nas prisões e colocar bombas em carros.
E, no meio, existe a imigração clandestina, garçons brasileiros em restaurantes de Boston, mexicanos colhendo uvas e alface na Califórnia.
Então, alguns dos efeitos desse complexo de mundos horizontalizados são bons. Mas alguns não são tão bons.
E os países não estão tão bem organizados para lidar com esse novo mundo de pisos planos, especialmente com Estados fracos ou corruptos ou, ainda, Estados que não podem controlar grandes áreas de seu próprio território.

FOLHA - O sr. acha que as novas versões de populismo surgidas no continente são uma resposta a isso? MAXWELL - Em alguns aspectos, sim. Álvaro Uribe [presidente da Colômbia] não é de esquerda, mas tem muito de um líder populista na prática, ainda que não em sua performance pública. E os colombianos também sabem como manipular os EUA a seu favor.
Quanto a Ollanta Humala [candidato à Presidência peruana], é difícil saber em que vai se transformar, se for eleito. Chamá-lo de "nacionalista" seria caridoso demais. Já [a presidente do Chile, Michelle] Bachelet tem um estilo de governante social-democrata europeu. Já [o presidente da Venezuela, Hugo] Chávez sempre me causou a impressão de ser um tipo de líder latino-americano muito antigo, uma espécie de caudilho modernizado.

FOLHA - E Lula? MAXWELL - E Lula? Bem, o esquerdismo de Lula estava fora do mercado todo o tempo. Lula nunca foi um ideólogo. Seu "modus operandi" me parece similar, na prática, ao dos chefes que emergiram dos sindicatos nos EUA. Onde havia -e há, ainda- muito desse papo de "irmão" isso, "irmão" aquilo.
Eles derramam muitas lágrimas quando as greves do passado são mencionadas, mas, hoje, fazem barganhas por trás da cena, negociações com chefes e manipulam fundos de pensão.

FOLHA - E Néstor Kirchner (presidente da Argentina)? MAXWELL - Bem, Kirchner é um peronista. O que mais pode ser dito? Os peronistas são de esquerda? Depende da estação e do que é necessário em cada momento particular para se manter no poder.
No final do mistério do peronismo, pode estar o mistério da política latino-americana. Que, diferentemente do Drácula, mesmo com uma estaca cravada no peito, não morre.

FOLHA - E Evo Morales (presidente boliviano)? MAXWELL - Pensar no que Evo Morales representa apenas como um fenômeno de esquerda é equivocado. O que está acontecendo na Bolívia é um verdadeiro terremoto. Isso realmente é algo novo e imprevisível. Não há absolutamente nenhum exagero em dizer que, pela primeira vez em 500 anos, a maioria está governando aquela região dos Andes.
E essa é uma maioria indígena que vem sendo sistematicamente, e às vezes brutalmente, excluída do poder por séculos. Uma maioria que sabe disso e se lembra disso.
Será uma tendência na América Latina como um todo? Não, com certeza não. Mas terá grandes conseqüências na região andina, onde existem grandes populações indígenas que vêm sendo exploradas por séculos. E que podem agora se comunicar e se conscientizar de seu poder.

FOLHA - Que solução vê para os problemas latino-americanos hoje? MAXWELL - Não há uma resposta fácil para essa pergunta. Eu certamente não tenho uma. O que é necessário é pensar muito e com criatividade.

E de uma coisa eu tenho certeza. Classificações binárias e simplistas de uma "boa" e uma "má" esquerda são politicamente impróprias. Se fosse apenas a palavra, seria simples. Mas a realidade é muito mais complicada e, infelizmente, muito menos previsível.


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