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Bem me quer, mal me quer
O sociólogo Jorge Castañeda explica sua divisão entre esquerda boa, como Chile e Brasil, e ruim, como Bolívia e Venezuela, e fala das eleições na Colômbia, hoje, e no Peru, no dia 4
JORGE CASTAÑEDA
Com tudo o que se
vem falando sobre a
virada da América
Latina à esquerda,
poucos observadores
notam que, na verdade, existem duas esquerdas na região.
Uma delas tem raízes radicais, mas hoje está moderna e
aberta, enquanto a outra é fechada e fortemente populista.
Em lugar de se preocupar com
a ascensão da esquerda de maneira geral, o resto do mundo
deveria pensar em fomentar a
primeira esquerda, em vez da
segunda -porque é exatamente disso que a América Latina
precisa.
Pouco mais de dez anos
atrás, sob a égide de um grupo
crescente de governos tecnocráticos centristas, a América
Latina parecia estar prestes a
dar início a um círculo virtuoso
de progresso econômico e governança democrática aperfeiçoada. No México, fortalecido
pela aprovação do Acordo de
Livre Comércio da América do
Norte (Nafta), o presidente
Carlos Salinas de Gortari
[1988-94] se preparava para
ver seu sucessor escolhido a
dedo vencer a próxima eleição
presidencial.
O ex-ministro da Fazenda
Fernando Henrique Cardoso
estava prestes a derrotar o líder
trabalhista radical Luiz Inácio
Lula da Silva na disputa pela
Presidência do Brasil. O presidente argentino Carlos Menem
tinha atrelado o peso ao dólar e
deixado para trás o legado populista do peronismo.
Que diferença a passagem de
dez anos é capaz de fazer! Embora a região tenha acabado de
desfrutar dois anos do maior
crescimento econômico em
muito tempo e embora as
ameaças reais ao governo democrático sejam poucas e espaçadas, a paisagem atual está
totalmente transformada.
A América Latina está se desviando para a esquerda, e percebem-se reações inconfundíveis contra as tendências predominantes nos últimos 15
anos: reformas de livre mercado, convergência com os EUA
em relação a diversas questões
e consolidação da democracia
representativa.
Começando com a vitória de
Hugo Chávez na Venezuela, oito anos atrás, e provavelmente
culminando na possível eleição
de Andrés Manuel López Obrador no pleito presidencial mexicano marcado para 2/7, uma onda de líderes, partidos e movimentos que se enquadram no
rótulo genérico de "esquerdistas" vem chegando ao poder
em um país latino-americano
depois do outro.
Depois de Chávez, foi a vez
de Lula e do PT no Brasil, depois de Néstor Kirchner na Argentina e de Tabaré Vázquez
no Uruguai, e, neste ano, de
Evo Morales na Bolívia.
Tsunami de esquerda
Se Ollanta Humala vencer o
segundo turno [em 4/6] no Peru e López Obrador sair vencedor no México, a impressão que
se terá é que a região terá sido
atingida por um verdadeiro
tsunami de esquerda. A Colômbia e a América Central são as
únicas exceções, mas, mesmo
na Nicarágua, não se pode excluir a possibilidade de vitória
do líder sandinista Daniel Ortega [em novembro].
Para compreender as razões
que estão por trás desses fatos,
é preciso reconhecer que não
existe uma esquerda latino-americana hoje, mas duas.
Uma delas é moderna, de
mentalidade aberta, reformista
e internacionalista e, paradoxalmente, tem suas raízes na
esquerda de linha dura do passado. A outra, nascida da grande tradição do populismo latino-americano, é nacionalista,
estridente e de mentalidade fechada. A primeira tem plena
consciência de seus erros passados e se modificou em razão
dessa consciência. A segunda,
infelizmente, não fez o mesmo.
Não é difícil discernir as razões da virada à esquerda na
América Latina. Ao lado de
muitos outros comentaristas e
intelectuais públicos, comecei
há quase 15 anos a detectar essas razões, que registrei em
meu livro "A Utopia Desarmada", que apresentou vários
pontos fundamentais. O primeiro foi que a queda da União
Soviética ajudaria a esquerda
latino-americana, ao livrá-la de
seu estigma geopolítico.
Pobreza abismal
O segundo ponto foi que a desigualdade extrema reinante
no subcontinente, a miséria e a
concentração de riqueza, renda, poder e oportunidades significavam que a região teria que
ser governada por regimes situados à esquerda do centro.
Em terceiro lugar, o advento
da democratização ampla e a
consolidação de eleições democráticas como único caminho
que conduz ao poder iriam, cedo ou tarde, resultar em vitórias da esquerda.
Essa previsão se tornou ainda mais certeira a partir do momento em que ficou claro que
as reformas econômicas, sociais e políticas implementadas
na América Latina a partir de
meados da década de 1980 não
haviam cumprido aquilo ao
qual se propunham.
Com a exceção do Chile, que
desde 1989 é governado por
uma coalizão de centro-esquerda, a região vem apresentando índices de crescimento
pouco notáveis.
Os baixos índices de crescimento implicam persistência
da pobreza abismal, desigualdade, desemprego, falta de
competitividade e infra-estrutura deficiente. E, apesar das
esperanças de uma melhora
nas relações com os EUA, elas
hoje estão piores do que em
qualquer outro momento da
memória recente.
Bom e velho populismo
Entretanto muitos de nós
que traçamos previsões acertadas sobre a volta da esquerda
nos equivocamos, pelo menos
em parte, em relação ao tipo de
esquerda que iria emergir. Uma
razão de nosso equívoco foi que
a queda da União Soviética não
provocou o desabamento de
sua equivalente latino-americana, Cuba, como muitos esperavam que acontecesse. Mas
uma explicação mais fundamental está relacionada às origens de muitos dos movimentos que hoje estão no poder.
Uma esquerda nasceu da Internacional Comunista e da revolução bolchevique e seguiu
um caminho semelhante ao da
esquerda no resto do mundo.
Os partidos comunistas chileno, uruguaio, brasileiro, salvadorenho e -antes da revolução de Fidel Castro- cubano
conquistaram parcelas significativas do voto popular em um
momento ou outro, participaram de governos de "frente popular" ou "união nacional" nas
décadas de 1930 e 40, criaram
uma presença sólida no movimento sindical organizado e
exerceram influência importante nos meios acadêmicos e
intelectuais.
A outra esquerda é peculiar à
América Latina. Ela nasceu da
estranha contribuição feita pela região à ciência política: o
bom e velho populismo.
Ele reivindica como seus
fundadores ícones históricos
de grande estatura mítica, desde o peruano Victor Raúl Haya
de La Torre e o colombiano
Jorge Gaitán (nenhum dos
quais chegou a ocupar o poder)
até o mexicano Lázaro Cárdenas e o brasileiro Getúlio Vargas, ambos figuras de alicerce
da história de seus países no século 20, além de Juan Perón, na
Argentina, e José Maria Velasco Ibarra no Equador.
Esses populistas são representativos de uma esquerda
muito diferente da primeira
-com freqüência virulentamente anticomunista, sempre
autoritária de uma maneira ou
outra e muito mais interessada
nos programas políticos como
instrumento para alcançar e
conservar o poder do que como
ferramenta para forjar programas de governo.
Eles fizeram coisas pelos pobres mas também criaram as
estruturas corporativistas que
desde então se tornaram os flagelos dos sistemas políticos de
seus países e também de seus
movimentos sindicais e camponeses. O corolário ideológico
desse misto bizarro de inclusão
dos excluídos, desvario macroeconômico e poder de permanência política foi o nacionalismo estridente e virulento.
Nos casos em que a esquerda
comunista reformada chegou
ao poder nos últimos anos, suas
políticas econômicas têm sido
notavelmente semelhantes às
de seus predecessores imediatos, e o respeito que ela manifesta pela democracia tem se
mostrado sincero e total. O antiamericanismo da velha escola
é abrandado por anos de exílio,
realismo e resignação.
Os melhores exemplos da esquerda reconstruída, ex-radical, podem ser vistos no Chile,
no Uruguai e, em grau um pouco menor, no Brasil. Essa esquerda enfatiza as políticas sociais -educação, programas de
combate à pobreza, saúde e habitação-, mas dentro de uma
estrutura de mercado mais ou
menos ortodoxa.
Populismo
Já os líderes esquerdistas
nascidos do passado populista e
nacionalista e dotados de poucas bases ideológicas -Chávez,
com seu pano de fundo militar,
Kirchner, com suas raízes peronistas, Morales, com sua militância e propaganda política
cocaleira, López Obrador, com
suas origens no PRI- vêm se
mostrando muito menos abertos às influências modernizadoras. Para eles, a retórica é
mais importante do que o conteúdo, e o fato do poder vale
mais do que seu emprego responsável.
Lançar desafios aos EUA vale
mais do que promover os interesses reais de seus países no
mundo.
Os líderes populistas de esquerda que aguardam no segundo plano dão a impressão
de se preparar para seguir o
mesmo modelo. Na Bolívia,
Evo Morales já chegou ao poder. No México, López Obrador
está perto disso. Embora Ollanta Humala, no Peru, ainda seja
uma aposta cujas chances são
pequenas, ele com certeza não
pode ser menosprezado.
O que fazer?
A administração Bush poderia fazer alguma diferença nesse estado de coisas se cumprisse as promessas (sobre questões como imigração e comércio) feitas aos governantes que
ocupam o poder atualmente na
região, com isso apoiando a
continuidade sem interferir no
processo eleitoral.
Mas existe uma possibilidade
de ação muito mais ousada,
uma abordagem mais estadista,
que fomentaria a "esquerda
certa" em lugar de trabalhar no
sentido de subverter o ressurgimento de qualquer esquerda.
Essa estratégia envolveria o
apoio ativo e substantivo à esquerda certa quando ela se encontra no poder: assinando
acordos de livre comércio com
o Chile, levando o Brasil a sério
como interlocutor comercial,
engajando-se com esses países
em questões que envolvem países terceiros (tais como Colômbia, Cuba e Venezuela) e admitindo seus líderes e intelectuais
públicos.
A comunidade internacional
também deveria deixar claro o
que espera da "esquerda errada", visto que esta existe. O primeiro ponto a enfatizar é que
os governos latino-americanos
de qualquer tendência precisam cumprir os compromissos
assumidos por seus países com
relação aos direitos humanos e
à democracia. O segundo é que
todos os governos precisam
continuar a contribuir para o
esforço multilateral para a
construção de uma nova ordem
legal internacional.
Para concluir, Washington e
outros governos devem evitar
os erros do passado e sob circunstância nenhuma os EUA
devem aceitar a divisão do hemisfério em dois campos -pró
e contra os EUA.
Então, em lugar de discutir
sobre se devemos saudar ou lamentar o advento da esquerda
na América Latina, seria mais
sábio distinguir entre a esquerda mais sensata e a irresponsável, apoiar a primeira e conter a
segunda.
Se isso for feito corretamente, ajudará em muito a região a
finalmente encontrar seu norte
e, como Gabriel García Márquez talvez dissesse, pôr fim a
seus cem anos de solidão.
JORGE G. CASTAÑEDA é professor de política e
estudos latino-americanos na Universidade de
Nova York e autor de "A Utopia Desarmada"
(Cia. das Letras). Foi ministro das Relações Exteriores do México (2000-2003). A íntegra deste texto foi publicada na revista "Foreign Affairs".
Tradução de Clara Allain.
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