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História da carochinha
Especialista em Grécia e Roma antigas, o francês Paul Veyne diz que sua disciplina é assunto de "pura curiosidade" e não é mais importante que a astrologia
John Moore - 6.fev.04/Associated Press
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Turista caminha por ruínas romanas em Leptis Magna, na Líbia |
MARTINE FOURNIER
Especialista na Antiguidade greco-romana,
grande erudito e leitor
insaciável, Paul Veyne
não fica limitado a
fronteiras acadêmicas e nunca
permanece dentro das correntes constituídas, como testemunham suas difíceis relações
com a Escola dos Annales.
Em 1976, publicou sua tese
"Le Pain et le Cirque" (O Pão e
o Circo, ed. Seuil), um estudo
fascinante sobre a sociedade
romana, que lhe valeu uma cadeira no Collège de France.
Desde então escreveu várias
obras que unem reflexão epistemológica sobre o conhecimento histórico e análise do
mundo greco-romano.
Com Michel Foucault, Paul
Veyne afirmou que a história é
a história das práticas e das
crenças. Ele repudia qualquer
ideia de racionalidade da história, de ser movida por fatores
profundos como progresso ou
luta de classes.
Sua reflexão sobre o estatuto
da verdade o leva a demonstrar
a dificuldade da explicação histórica: no máximo o historiador pode tentar explicitar fatos
e historicizar noções (o Estado,
o poder, a religião etc.).
Para Paul Veyne, "não se pode tirar nenhuma lição da história". Ele afirma a subjetividade de toda narrativa histórica e
coloca em xeque o estatuto da
verdade.
PERGUNTA - Em "O Pão e o Circo", o
sr. propõe um estudo inovador do
funcionamento político da cidade
romana por meio da prática do evergetismo, ou seja, as doações públicas que os notáveis faziam à cidade.
Por que escolheu essa abordagem?
PAUL VEYNE - A doação ocupava
um lugar muito importante na
sociedade romana: pão (sob a
forma da distribuição de trigo),
circo (organização de lutas de
gladiadores) e festins públicos
para o povo, mas também distribuição de terras, presentes
para marcar o início do ano,
presentes para o imperador e
seus funcionários etc.
A maioria dos monumentos
públicos das cidades greco-romanas (anfiteatros, basílicas,
termas etc.) foi oferecida por
notáveis.
Eu estava convencido de que
essas doações não guardavam
relação nenhuma com uma
tentativa de despolitização e de
manobra dos poderosos para
afastar o povo da política.
Na sociedade romana, os notáveis não eram senhores que
viviam em seus castelos, mas
nobres que viviam na cidade
-como, aliás, aconteceria mais
tarde, na Itália medieval-, e essa nobreza enxergava a cidade
como sua propriedade, que ela
governava.
Em lugar de embelezar seus
castelos, os nobres embelezavam a própria cidade, com o
mecenato: construíam monumentos públicos e assim, com
sua generosidade, mostravam
que eram ricos e poderosos.
Essas doações ostentatórias
também eram destinadas a
mostrar que a cidade não podia
viver senão graças a eles.
Não se trata de uma despolitização dos espíritos, mas de
um cálculo político mais sábio.
Essa minha tese foi inspirada
por "Ensaio sobre a Dádiva", de
Marcel Mauss.
PERGUNTA - Apesar de sua prevenção com relação às ciências sociais, o
sr. faz referências frequentes a Max
Weber em sua obra. Qual foi a contribuição desse sociólogo?
VEYNE - A obra de Max Weber,
justamente, mostra que toda
noção é historicizada. Sua sociologia "abrangente" não procura formular leis. Ela reúne e
classifica os casos particulares
de um mesmo tipo de acontecimento ao longo dos séculos.
Seus tipos ideais são um instrumento de interpretação, de
hermenêutica dentro de uma
problemática em que a história
é concebida como conhecimento da individualidade.
Voltemos ao exemplo do mecenato na Antiguidade. Podemos enxergar a doação como
uma espécie de invariável ao
longo dos séculos e especular
sobre categorias gerais: doação,
imposto, troca...
Ou podemos nos espantar
pelo fato de os nobres romanos
terem dado pão e circo ao povo.
A cidade era, de certo modo,
seu castelo coletivo. Em nossos
tempos, se um bilionário francês quisesse pagar parte do orçamento do Estado, ele seria
rapidamente suspeito de ter
desígnios obscuros.
Como se explica que o mecenato de Estado, público, fosse
admitido na Antiguidade e seja
impensável em nossa época?
Em lugar de procurar invariáveis, passamos então a procurar nuanças, à maneira de
Weber.
O cidadão romano não é visto
como um sujeito abstrato, como o é o cidadão de direito da
Revolução Francesa, mas como
um personagem que contribui
concretamente para a cidade,
pelo fato de fazer parte dela.
A cidade é o próprio grupo de
notáveis.
Cada exemplo é específico,
porque faz parte de um momento da história e, portanto,
nos convida a raciocinar em
termos concretos.
O caso mais extremo é o da
democracia antiga: como estabelecer um conceito geral que
postule uma continuidade entre a democracia moderna e a
dos gregos? Elas têm em comum apenas a palavra.
PERGUNTA - Poderíamos dizer, então, que a história serve apenas para
contar belas histórias?
VEYNE - De um lado, eu responderia que todo trabalho histórico é parcial e subjetivo. Não
existe uma narrativa canônica
única da história da França, e
seria impossível fazê-la.
Somos obrigados a escolher
um ângulo de apresentação, o
da estruturação do espaço francês ou o da vida cotidiana dos
franceses, a história da nação
ou da sucessão dos poderes etc.
Existe necessariamente um
corte. E, se você quiser fazer
uma "história total", perceberá
muito rapidamente que não fez
mais do que reunir esses diferentes capítulos -e mais: que
se esqueceu da história das mulheres e que isso não tem fim.
Por outro lado, penso que a
história não tem mais utilidade
que a astrologia. É um assunto
de pura curiosidade ou, pelo
menos, é preciso tratá-la como
tal. A história não demonstra
nada e não permite tirar lições
eternas.
Algumas pessoas a utilizam
para encontrar raízes fundadoras: é o caso da Sérvia atualmente, que está reconstruindo
sua história a partir de todos os
pedaços, enquanto os jovens
historiadores israelenses desconstroem a história do Estado
de Israel.
Vamos visitar ruínas que podem ser informes: é o caso da
maioria das ruínas de Roma.
Não visitamos esses monumentos por suas qualidades de
relíquia nem por seu valor estético, mas porque são um pedaço do passado. Existe um interesse pelo passado humano,
simplesmente por ele próprio.
A que se deve esse fascínio?
Todos nós temos a tendência
a imaginar uma natureza humana que teria necessidade de
religião ou de uma atitude de
piedade em relação aos ancestrais ou de ideais grandiosos
como verdade, justiça etc.
Nesse caso, o culto ao passado seria uma transformação da
pulsão religiosa. Mas a partir
disso podemos dizer tudo -ou
seja, nada.
PERGUNTA - Em "Les Grecs Ont-Ils
Cru à Leurs Mythes?" (Teriam os
Gregos Acreditado em Seus Mitos?),
o sr. mostra que a própria noção de
verdade é historicizada. Existe, o sr.
diz, "uma pluralidade de programas
de verdade ao longo dos séculos".
VEYNE - Os gregos acreditavam
muito firmemente em seus
deuses. Por exemplo, ninguém
punha em dúvida a existência
do deus Baco.
Mas Baco era cercado de figuras fantásticas -as bacantes,
os sátiros- em quem ninguém
acreditava e cujas histórias
eram consideradas fantasias
que as babás contavam às
crianças para distraí-las. Para
nós, seria impossível dissociar
essas crenças.
O fato de contos pueris e falsos serem associados à história
de Baco contaminaria a crença
nesse deus.
Os gregos abordavam seus
deuses como um leitor de "Os
Três Mosqueteiros" que zomba
da realidade histórica e mergulha no romance de Alexandre
Dumas sem se preocupar em
saber se D'Artagnan, Athos,
Porthos e Aramis existiram
realmente.
Eu quis mostrar nesse ensaio
que, ao longo dos séculos, as
pessoas acreditaram firmemente em "verdades" que não
eram verdades -a tal ponto
que podemos enxergar a história do passado como uma sequência de crenças falsas.
Nas ciências exatas, porém,
desde Isaac Newton, poderíamos dizer, as verdades são cientificamente embasadas.
O estatuto da física não é o da
astrologia e, em dado momento, a alquimia virou química, e a
astrologia, astronomia. Por volta de 1800, a medicina começou
a se tornar séria, quando antes
não passava de uma série de
crenças estarrecedoras.
A mesma coisa aconteceu
com as ciências humanas por
volta de 1860. Esse momento
corresponde à contestação radical do cristianismo.
A partir desse corte, descobrimos que tudo é histórico, e é
a partir daí que as ciências humanas se desenvolvem, libertando-se de todos os preconceitos de nossos antepassados.
Essa mudança é marcada pelo filósofo Friedrich Nietzsche
[1844-1900]. Ele foi o primeiro
a mostrar que as noções ditas
eternas tinham, na verdade,
uma história.
PERGUNTA - Qual foi a importância
de Foucault para os historiadores?
VEYNE - Foucault demonstrou
que as convicções, por mais fortes que possam ser, devem ser
analisadas dentro de seus contextos históricos.
Se você me perguntar qual é a
"verdadeira" democracia, não
poderei lhe responder. Posso
lhe dizer o que eu entendo por
democracia, o que desejo e no
que voto, aquilo que não estou
disposto a colocar em dúvida.
Os trabalhos de Foucault sobre a prisão e a loucura são uma
demonstração cabal da historicidade das convicções; para os
historiadores, foram uma revelação. Foucault descreve as
práticas e analisa os discursos.
Ele não procura definir o que
seria a "verdadeira" loucura,
mas descreve concepções diferentes que dominaram no passado. A verdade está, portanto,
nessa descrição da maneira como a loucura foi vista e tratada
segundo as diferentes épocas.
PERGUNTA - O sr. questionou o estatuto da verdade. Ao mesmo tempo, em cada um de seus livros, o sr.
se distancia da corrente relativista,
para a qual, na história, tudo é questão de ponto de vista. Suas posições
não são contraditórias?
VEYNE - Sobre esse ponto, os
historiadores sociológicos se
safam muito bem: para eles, a
verdade é mostrar as crenças e
as representações que o homem construiu ao longo do
tempo.
É evidente que a história séria não pode colocar em dúvida
a existência dos campos de concentração ou o desaparecimento de famílias judias nas câmaras de gás. Existe uma verdade
do passado.
Mas não existe uma vocação
humana para ater-se à verdade:
com a exceção dos historiadores que exercem sua profissão
seriamente, as pessoas são capazes de negar as câmaras de
gás ou de zombar delas ou, ainda, de inventar outras que não
existiram.
PERGUNTA - Isso é assustador.
VEYNE - Não é sem inquietude
que nos dizemos que é possível
que dentro de cem anos os direitos humanos aos quais damos tanta importância não façam mais sentido nenhum para
as pessoas.
Imagine um homem que lutou na Primeira Guerra, que se
fez matar por sua pátria, mas
que descobre, 66 anos mais tarde, que é visto como vítima ou
como alguém que se deixou enganar. É de fato uma ideia muito angustiante. Mas -felizmente ou infelizmente?- a
percepção da fragilidade da
verdade não abala os homens
em suas convicções.
A íntegra desta entrevista saiu na revista
"Sciences Humaines".
Tradução de Clara Allain.
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