São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crepúsculo dos deuses


"O Mau e o Belo", que está saindo na Inglaterra, mostra como a TV, nos anos 50, escancarou a vida pessoal de astros como Gary Cooper e Joan Crawford e ajudou Hollywood a mergulhar na maior crise de sua história


J.G. Ballard
especial para a "New Statesman"

A principal função de Hollywood é salvar os americanos da necessidade de crescer? O resto do mundo tem angústia, desespero, gênio e genocídio. Eles têm o cinema de Hollywood, uma ditadura benigna de otimismo, sentimentalismo e finais felizes em que todos acreditamos secretamente, até que as luzes se acendem e vemos o tapete gasto sob nossos pés. A influência de Hollywood permeia quase todos os aspectos de nossas vidas, e suas tramas cordiais delineiam nossas próprias falhas. O novo projeto trabalhista de Blair-Mandelson parece uma comédia de Frank Capra sobre uma cura milagrosa, inicialmente adotada e depois rejeitada por um público dócil. Os comícios em estilo Vegas de Jacques Chirac foram puro "Onze Homens e um Segredo" [filme de Lewis Milestone de 1960, com remake por Steven Soderbergh em 2001", eficazes até que um feio europeu abriu caminho e ameaçou os cofres.
Os turistas que viajam pelos EUA logo percebem uma dimensão ausente, uma lacuna no espaço psicológico a seu redor. As sensações de pessimismo e preocupação que em qualquer outro lugar parecem inatas ao ser humano foram apagadas da psique americana, supostamente pelo etos de Hollywood, absorvido desde a infância. As pessoas que encontramos, mesmo os mendigos que vagueiam na saída dos aeroportos, são agradáveis, alegres e amistosos, como se o país inteiro tivesse sido recrutado para o remake de um filme de Rock Hudson (1925-1985) dos anos 50.
Mas ninguém deveria ser tão agradável ou amistoso. Suspeito de que um dos motivos para a reação européia fora de sincronia ao 11 de setembro é que, depois de um ataque semelhante, nós ficaríamos amortecidos e virtualmente nada faríamos, enquanto os americanos ficam ferozmente abalados, mas de uma maneira otimista, enquanto aquecem os caças F-16.
Uma das coisas enervantes sobre Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, é que ele se funde perfeitamente no tipo de comandante naval superpatriota interpretado por Gene Hackman em "Atrás das Linhas Inimigas" [John Moore, 2001", disposto a desestabilizar totalmente os Bálcãs e desencadear a Terceira Guerra Mundial para resgatar um piloto abatido.
E por que não? Já que Hollywood redefiniu a realidade, podemos nos sentar e esperar confiantemente o Armagedon. Qualquer sonho tão duradouro deve obter sua força dos mais profundos instintos de sobrevivência. O poderoso espetáculo da luz brilhante projetada numa parede alta toca em alguma coisa impressa em nossos cérebros -memórias, talvez, da primeira aurora. A televisão, por contraste, é uma visão do mundo por um buraco de fechadura, despida de glamour e eternamente enfocada no mundano.
"The Bad and the Beautiful" [O Mau e o Belo, W.W. Norton, 352 págs., 19,10 libras", que adota o título do melodrama luxuriantemente paranóico de Vincent Minelli [lançado no Brasil como "Assim Estava Escrito"", descreve Hollywood na década de 50, quando estava no auge do poder, mas prestes a entrar na maior crise de sua história.
Pessoas que hoje nunca vão ao cinema -ou que apenas assistem a vídeos em casa- não fazem muita idéia da aura divina que cercava os astros gigantes como Clark Gable e Gary Cooper, Joan Crawford e Carole Lombard. No entanto, quase nada sabíamos sobre suas vidas privadas. Muitos astros eram casados com estrelas, mas pareciam produzir poucos filhos, como se a gravidez e o parto fossem sórdidos e físicos demais para seres exaltados, e eles só existissem no éter eletrificado acima de nossas cabeças.
Então, nos anos 50, tudo mudou. A televisão começou a roubar o público de Hollywood, e a ruptura do sistema dos estúdios deixou as estrelas por conta própria. Motoristas contrariados e garçons bisbilhoteiros alimentavam as novas revistas de escândalos com rumores sobre violência doméstica, abuso de drogas e homossexualidade. A televisão tinha transformado o mundo numa sala de estar suburbana, e agora o público queria ver o que as estrelas faziam quando estavam em casa. O realismo era um novo sabor picante, alimentado pelo relatório Kinsey e a investigação do Congresso sobre o crime organizado. A revista "Confidential", que liderava o bando dos tablóides, revelou os segredos de Lizabeth Scott, Tab Hunter e Noel Coward.
Um maravilhoso compêndio de sujeira e fofocas, "O Mau e o Belo" deixa claro que muitas estrelas eram bem mais interessantes fora das telas que dentro. Assim como o público que as admirava, sua principal recreação era álcool ou adultério. Lana Turner (1921-1995) era uma atriz linda, mas rígida, cuja compulsiva caça aos homens a levou de um namorado abusivo para outro. Ela terminou com um horrível gângster de segunda chamado Johnny Stompanato. Visitando a Inglaterra com Turner, esse rufião de sapatos de jacaré foi derrubado pelo astro do filme, Sean Connery.
As violências e as mãos buliçosas de Stompanato foram demais para a filha de Turner, Cheryl, que o matou com uma faca, provocando um enorme escândalo. A história apareceu em diversos filmes, mas nenhum deles alcançou a misteriosa personalidade de Turner, um mito se desmantelando perpetuamente, de uma maneira que lembra a princesa Diana.
Burt Lancaster (1913-1994) foi outra estranha figura, tão brutal e ameaçador na vida cotidiana quanto o vicioso colunista de fofocas que interpretou em "Sweet Smell of Success" [A Embriaguez do Sucesso], 1957, dirigido por Alexander Mackendrick". O renomado roteirista Ernest Lehman conta que na primeira vez em que viu Lancaster ele entrou numa sala de reuniões, vindo de outra sala, abotoando a braguilha e comentando: "Ela engoliu".
Os comentários mais ásperos sobre a Hollywood dos anos 50 foram feitos por um cadáver, o do roteirista fracassado Joe Gillis [interpretado por William Holden] em "Crepúsculo dos Deuses" [Billy Wilder, 1950], deitado de rosto para baixo na piscina da perturbada atriz Norma Desmond [interpretada por Gloria Swanson". Ele tinha percebido tarde demais que o sonho de Hollywood era um pesadelo que devorava o sonhador. Nos anos 70, Lucas e Spielberg mudaram a direção do cinema de Hollywood, provavelmente salvando-o da morte lenta por negligência que dominou o cinema europeu.
O cinema retornou a suas raízes, o que nunca é uma má decisão em tempos de dúvida, atualizando os cavalos a galope e os trens velozes dos dias pioneiros do cinema. Os efeitos especiais tornaram-se os verdadeiros astros. Os atores, mesmo Tom Cruise e Nicole Kidman, são pouco mais que extras glorificados. Mais uma vez Hollywood retomou sua tarefa histórica de transformar todos nós em adolescentes.


James Graham Ballard é escritor, autor de "Sombras do Império" e "Crash" (ambos pela Record), entre outros.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: Leminskino: (um filme para ser lido)
Próximo Texto: + autores: Práticas e artes do cotidiano
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.