São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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Práticas e artes do cotidiano


Dominando várias áreas do saber, Michel de Certeau se tornou um dos principais teóricos culturais do século 20 ao estudar como as pessoas inovam em atividades como ler, cozinhar e assistir à TV


Peter Burke

O jesuíta Michel de Certeau (1925-86) foi um dos teóricos culturais mais criativos do século 20, um polímata que poderia ser igualmente descrito como sociólogo, antropólogo, historiador, psicólogo, filósofo ou teólogo. Na minha opinião, pelo menos, suas idéias foram e continuam sendo tão importantes, esclarecedoras e estimulantes quanto as de seu mais famoso contemporâneo, Michel Foucault.
Relativamente desconhecido fora dos círculos jesuítas antes de 1968, Certeau adquiriu uma reputação considerável na França por seus comentários sobre os acontecimentos de maio daquele ano. Embora tivesse 43 anos na época em que o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit disse a seus seguidores para não confiar em ninguém com mais de 30, Certeau simpatizou com os rebeldes contra o sistema e descreveu a tomada da Sorbonne como um ato de libertação semelhante à tomada da Bastilha em 1789.
Em 1968, segundo Certeau, os estudantes rebeldes subverteram o discurso político tradicional e o transformaram conforme seus objetivos. Essa análise dos eventos de maio daquele ano utiliza um conceito ao qual Certeau está intimamente associado, o conceito de apropriação, reinterpretação ou "ré-emploi" ("reemprego"). Esse conceito é absolutamente central em seu mais famoso livro, "A Invenção do Cotidiano" [dois volumes, ed. Vozes], de 1980, um estudo que lançou uma moda de obras com a palavra "invenção" no título. Esse livro foi um relato sobre pesquisas coletivas da cultura popular contemporânea financiadas pelo governo francês que abordaram, entre outros temas, habitação, lazer, culinária, consumo, leitura e o público de televisão. Os estudos sociológicos anteriores sobre cultura popular -ou "cultura de massa", como costumava ser chamada nas décadas de 50 e 60- tendiam a enfatizar a passividade do consumidor, eleitor, leitor ou espectador comuns. Em contraste, Certeau e seus colegas enfatizaram o que ele chamou de "criatividade" das pessoas comuns em suas vidas cotidianas. O consumo, ele gostava de dizer, é uma forma de produção. Diante de um mundo cheio de objetos produzidos em massa, as pessoas demonstram sua criatividade pela maneira como escolhem e combinam os diversos elementos do repertório disponível. De modo semelhante, elas dão sua própria interpretação ao que lêem nos jornais ou vêem na televisão. Enquanto sociólogos anteriores estudaram o que chamavam de "comportamento", Certeau preferia o termo "práticas" ou mesmo "artes". Ele foi otimista no sentido de rejeitar o determinismo econômico e de ter consciência da resistência popular. Mas foi um otimista moderado, já que distinguia entre as "estratégias" mais amplas disponíveis às classes governantes e as "táticas" mais limitadas a que se confinam as pessoas comuns, tirando o melhor proveito de situações que não criaram e dando novos usos a "ready-mades". Essa idéia teve extrema influência nos estudos culturais e poderia ser ilustrada pelos livros e artigos escritos sobre a recepção do seriado americano "Dallas" e sobre os diferentes significados que lhe deram os espectadores de diferentes partes do mundo, de Israel a Fiji. A idéia do reemprego também foi influente na história da leitura: Roger Chantier, um dos mais conhecidos historiadores das práticas de leitura, é um admirador da obra de Certeau e reconhece sua influência. Os livros e artigos dedicados à exposição e interpretação do pensamento de Certeau tendem a colocá-lo no contexto da teoria cultural do final do século 20, especialmente a teoria cultural francesa. Eles comparam e contrastam suas idéias com as de Michel Foucault, Pierre Bourdieu ou Jacques Lacan (cujos seminários sobre psicanálise Certeau frequentou durante 16 anos). Apresentar um pensador em diálogo com seus contemporâneos é um procedimento frutífero. No caso da idéia do reemprego, por exemplo, é esclarecedor compará-la com o conceito de habitus ou mesmo com a noção de "apropriação", de Paul Ricoeur, ou a bricolagem discutida por Claude Lévi-Strauss.

Visão católica
De todo modo, eu gostaria de argumentar que essa abordagem a Certeau é insuficiente por si só. Se desejarmos compreender como ele chegou a suas idéias mais originais, precisamos recuar para antes de Foucault e dos outros. Em minha visão pessoal, as raízes de sua teoria cultural eram religiosas, um ponto que costuma escapar aos comentaristas não familiarizados com a cultura católica, mais especialmente a cultura católica francesa da década de 1950, quando Certeau se uniu aos jesuítas, e de 1960, quando trabalhava na história do misticismo do século 17.
Suas visitas à América hispânica e ao Brasil, que começaram em meados dos anos 60, o tornaram mais consciente das críticas à Igreja Católica como instituição burocrática, distante das pessoas.
Em uma frase, eu gostaria de sugerir que a conquista de Certeau no domínio dos estudos culturais, aos quais seu nome é hoje intimamente associado, foi reempregar toda uma série de idéias religiosas, que ele expôs nos anos 60 em jornais católicos franceses como "Etudes" e "Esprit". Esses conceitos foram mais tarde "deslocados", como diria Freud, ou "transpostos", como dizem os músicos, para ser utilizados em um novo contexto, o dos estudos culturais.
Um exemplo menor pode ilustrar o processo utilizado. Certeau frequentemente usou a metáfora da "excomunhão" para se referir aos processos de exclusão ou expulsão, como quando escreveu sobre os favelados do Rio de Janeiro (em sua primeira visita, nos anos 60) como excomungados da cidade. Importantes conceitos de Certeau têm origens semelhantes. Sua preocupação com a ausência, o silêncio e o "outro", por exemplo, faz eco a escritores da tradição mística que ele estudou minuciosamente.
Seu interesse pelo declínio da fé política foi posterior a -e é moldado em- seus artigos sobre o declínio da fé religiosa. Seu interesse pela pluralidade e a diferença foi primeiramente articulado num contexto eclesiástico, alguns anos antes de ele escrever sobre as culturas seculares dessa maneira.
Novamente, a conhecida ênfase de Certeau nas práticas culturais, o tema central de "A Invenção do Cotidiano", faz eco a seus artigos anteriores, em que ele falou em termos católicos tradicionais da "pratique chrétienne" ou "pratique sacramentelle", enquanto a idéia de "práticas de leitura" foi emprestada do autor místico jesuíta Jean-Joseph Surin. Mesmo o termo "cotidiano" ocorre primeiramente, nos textos de Certeau, no contexto do misticismo.
Finalmente, o conceito de "reemprego" é um exemplo desse tipo de reemprego. Certeau certa vez sonhou em se tornar um missionário e estava extremamente interessado na história das missões. O exemplo dos indígenas americanos, da Nova Inglaterra ao Brasil, escutando a mensagem dos missionários, mas interpretando-a de maneira própria, é recorrente em sua teoria cultural.
É possível ser ainda mais preciso. Os Pais da Igreja, notadamente Jerônimo e Agostinho, tinham grande preocupação sobre se era lícito os cristãos estudarem autores pagãos como Cícero ou Platão. A resposta de Agostinho foi citar o Antigo Testamento e dizer que os cristãos podiam "saquear" os clássicos para seus propósitos, assim como os israelitas saquearam os bens dos egípcios na época do êxodo, argumento repetido por Ignácio de Loyola para justificar o estudo dos clássicos nos colégios jesuítas. Em "A Invenção do Cotidano", Certeau também se refere a certa altura aos leitores "ravissant les biens d'Egypte". É revelador que ele pareça ter certeza de que seus leitores identificarão a referência a Agostinho.
Em suma, o teórico cultural aproveitou o capital intelectual que os jesuítas acumularam, secularizando e transmutando aquilo de que se apropriou. É dessa maneira que a criatividade costuma funcionar -e talvez sempre funcione. O que chamamos de "originalidade" é um reemprego ou uma adaptação que alcança um êxito incomum. Em todo caso, Certeau, que poderia ser descrito, entre outras coisas, como um teórico da criatividade, também foi um dos teóricos mais criativos.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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