|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Autores
Quase memória
Relação do brasileiro com seu passado é mais tênue do que aquela construída nos países europeus e mesmo nas demais nações latino-americanas
|
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Na última geração,
os europeus experimentaram um
"boom de memória", uma onda de
interesse, tanto acadêmico
quanto popular, pelas lembranças; não apenas memórias
individuais, mas também coletivas -em outras palavras,
imagens compartilhadas do
passado.
Essa onda de interesse foi ao
mesmo tempo expressada e incentivada pela série de sete livros de enorme sucesso lançada pelo estudioso-editor Pierre
Nora entre 1984 e 1993, sob o
título "Les Lieux de Mémoire"
[Os Lugares de Memória].
A idéia central de Nora foi
pedir a seus colaboradores que
se concentrassem em lugares
associados a memórias coletivas do passado francês - lugares geográficos, como Versalhes ou o Panteão, mas também lugares metafóricos, como
a "Enciclopédia Larousse" ou
mesmo a "Marselhesa".
A série foi imitada em outros
países europeus, como a Alemanha e a Itália. Poderia ou deveria ser imitada também no
Brasil?
Poder-se-ia afirmar que no
Brasil ou em outros lugares do
Novo Mundo um empreendimento como o de Nora seria
inadequado, pois, em comparação com a Europa, nas Américas um edifício é considerado
antigo quando data da década
de 1930, e a população de muitos países é relativamente jovem e mais voltada para o futuro do que para o passado.
Na verdade, os brasileiros
parecem ainda menos preocupados com o passado do que as
populações de outros países latino-americanos, especialmente a Argentina.
De todo modo, o Brasil tem
seus próprios "lugares de memória". Os nomes de muitas localidades, de Iguaçu a Paraíba,
têm um significado em tupi e
assim nos lembram, ou deveriam lembrar, os tupinambás e
outros "primeiros povos".
Cidades, pessoas
As cidades, por outro lado,
muitas vezes evocam memórias da Europa. Os imigrantes
tentaram recriar nas Américas
um mundo conhecido, batizando suas cidades de Belém, Nova
Friburgo, Nova Odessa e assim
por diante.
Em comparação, os escravos
africanos que foram trazidos
para o Brasil contra a sua vontade não tiveram a oportunidade de impor nomes familiares à
paisagem estranha. No entanto
tentaram a reconstrução simbólica do espaço africano nos
terreiros de candomblé.
As memórias locais também
são importantes. Os nomes de
algumas cidades e muitas ruas
se referem a líderes e acontecimentos locais -João Pessoa,
avenida Nove de Julho etc. Nomes como esses foram conseqüência de iniciativas oficiais.
Um testemunho mais direto
de memórias populares ou atitudes em relação ao passado
vem dos nomes pessoais.
Para um visitante europeu, é
uma espécie de surpresa descobrir quantos brasileiros têm
nomes de heróis culturais como Edison, Milton, Newton ou
Washington.
O único problema é descobrir se esses nomes foram escolhidos pelos pais por sua sonoridade ou por sua associação
com o Reino Unido, os EUA, a
ciência ou a democracia.
Um equivalente brasileiro a
"Os Lugares de Memória", se
fosse publicado, como espero
que um dia o seja, naturalmente incluiria as comemorações
oficiais de eventos como a descoberta do Brasil pelos portugueses ou a expulsão dos portugueses da Bahia em 1823.
Como no caso da Europa, os
locais de memória incluiriam
museus e monumentos (embora os visitantes europeus possam se surpreender ao ver monumentos aos imigrantes no
Brasil).
Também haveria espaço para
pinturas históricas como "Independência ou Morte", de Pedro Américo, ou suas imagens
da guerra contra o Paraguai.
De todo modo, os principais
lugares de onde a maioria dos
brasileiros extrai suas visões do
passado são certamente o Carnaval e a telenovela.
Temas históricos são comuns nos enredos das escolas
de samba do Rio e seus equivalentes em outras cidades
-eventos como a descoberta
do Brasil ou a abolição da escravatura e indivíduos como Zumbi ou o imperador d. Pedro 2º.
Quanto às telenovelas, pense-se no sucesso de "A Escrava
Isaura" em 1976 e novamente
em 2004; e de "Sinhá Moça" em
1986 e também 20 anos depois,
assim como novelas relacionadas à história mais recente, de
"Éramos Seis" (1994) a "Terra
Nostra" (1999).
Novelas e Carnaval
Com um pouco de exagero,
poderíamos comparar as visões
do passado brasileiro apresentadas nesses dois meios de comunicação.
A visão carnavalesca tende a
ser crítica e a apresentar o ponto de vista do escravo. Por
exemplo, em 1988, centenário
da abolição da escravidão, o tema da Mangueira foi "Cem
Anos de Liberdade - Realidade
ou Ilusão?".
As novelas, por sua vez, geralmente apresentam uma visão
de harmonia social -embora
apareçam os fazendeiros e capatazes cruéis, os protagonistas (em geral brancos ou mestiços) são generosos e idealistas.
Em suma, poder-se-ia dizer
que o Brasil tem o que poderíamos chamar de um "regime de
memória" próprio. Em contraste com a França e outras
partes da Europa, há menos
preocupação com o passado, e
os lugares associados às memórias também são diferentes.
O contraste entre o regime
de memória do Brasil e o de
seus vizinhos hispano-americanos não é menos notável. As
estátuas eqüestres de líderes
como Bolívar, San Martín e Artigas não são muito presentes
no Brasil (com exceção do Rio
Grande do Sul, pelo menos),
uma lembrança de que o Brasil
conquistou a independência
por meios mais pacíficos do que
a América espanhola.
Uma estátua foi oferecida a
dom Pedro 2º depois da Guerra
do Paraguai, mas o imperador a
recusou, enquanto o marechal
Deodoro teve de esperar até
1937 e as políticas de comemoração do regime Vargas para
que sua estátua eqüestre fosse
erguida no Rio.
Outro contraste entre o Brasil e seus vizinhos, especialmente a Argentina, o Chile e o
Peru, se refere às memórias recentes de regimes autoritários
e às pessoas "desaparecidas".
O Brasil não tem equivalente
à Comissão da Verdade chilena
-embora uma equipe de pesquisadores patrocinada pelo
cardeal Paulo Evaristo Arns,
ex-arcebispo de São Paulo, tenha publicado "Brasil, Nunca
Mais", um relato dos abusos
aos direitos humanos durante a
ditadura militar.
Até agora a anistia e a amnésia -conceitos associados-
predominaram. Essa situação
vai mudar em um futuro próximo ou o regime de memória do
Brasil continuará original?
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Escreve
na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Texto Anterior: Discoteca básica: A Pata da Gazela Próximo Texto: + Literatura: Em crise com Deus Índice
|