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A superideologia
Crise: modos de usar
A partir de agora, a aposta é saber qual discurso ganhará
a disputa para explicar
o que levou
os EUA à beira do colapso
Terá a crise financeira sido um momento que realmente provocou reflexão sóbria, o despertar de um sonho?
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SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA
Quando o herói de
"Eles Vivem", de
John Carpenter,
uma das obras-primas esquecidas
da esquerda de Hollywood, colocou um par de óculos de sol
estranho que encontrou numa
igreja abandonada, descobriu
que um outdoor colorido que
convidava as pessoas a passar
férias numa praia do Havaí
passava a ostentar apenas palavras cinzentas sobre um pano
de fundo branco -"casem e se
reproduzam"-, enquanto um
anúncio de uma nova TV em
cores passava a dizer simplesmente "não pense, consuma!".
Em outras palavras, os óculos funcionavam como aparelho de crítica da ideologia, possibilitando ao protagonista enxergar a mensagem real oculta
sob a superfície colorida. O que
veríamos, então, se observássemos a campanha presidencial
republicana com a ajuda de
óculos como esses?
A primeira coisa que chamaria nossa atenção seria uma
longa série de contradições e
incoerências já observadas por
muitos comentaristas.
O chamado para passar por
cima das divisões partidárias
-acompanhado pela brutal
guerra cultural de "nós" contra
"eles". O aviso de que a imprensa deveria se abster de comentar a vida familiar dos candidatos -enquanto a família é exibida sobre o palco.
A promessa de mudanças,
acompanhada pelo mesmo velho programa de sempre (isto é,
menos impostos e menos Estado, reforço das Forças Armadas, política externa mais intransigente).
A promessa de reduzir os
gastos do Estado, acompanhada de elogios ao governo Reagan. Acusar o partido adversário de privilegiar o estilo em detrimento da substância -em eventos de mídia perfeitamente encenados.
O próximo passo é perceber
que essas e outras incoerências
não são um ponto fraco, mas
uma arma-chave da força da
mensagem republicana.
A estratégia republicana explora com maestria as falhas da
política liberal-democrata: sua
preocupação paternalista com
os pobres, associada a uma indiferença mal disfarçada pelos
trabalhadores de colarinho
azul; seu feminismo politicamente correto, que anda de
mãos dadas com uma mal disfarçada desconfiança das mulheres no poder.
Sarah Palin [candidata à Vice-Presidência na chapa republicana de John McCain] foi
um sucesso nesses dois quesitos, desfilando sua feminilidade com seu marido de classe
trabalhadora.
As gerações anteriores de políticas (Golda Meir, Indira Gandhi, Margaret Thatcher -mesmo Hillary Clinton, até certo
ponto) eram mulheres do tipo
mais comumente descrito como "fálicas": elas agiam como
"damas de ferro" que imitavam
a autoridade masculina ou a
exageravam, procurando ser
"mais homens que os homens".
Ao contrário, exibe sua condição feminina e materna com
orgulho. Exerce um efeito "castrador" sobre seus adversários
homens, não por ser mais viril
que eles, mas por empregar a
arma feminina máxima, ironizando sarcasticamente a autoridade masculina empolada.
Ela sabe que a autoridade
masculina "fálica" é uma pose,
uma ilusão a ser explorada e
ironizada.
Vale recordar como ela zombou de Obama como "organizador comunitário", explorando
o fato de que existe algo de estéril em sua aparência física, com
sua pele negra diluída, seus traços magros e orelhas grandes...
Bênção eleitoral
Com Palin, vimos uma feminilidade "pós-feminista", sem
complexos, unindo as características de mãe, professora correta e pudica (óculos, coque),
pessoa pública e, implicitamente, objeto sexual.
A mensagem é que não falta
nada a Palin -e, para torná-la
ainda mais irritante, foi uma
mulher republicana quem realizou esse sonho da esquerda liberal. É como se Sarah Palin
simplesmente fosse aquilo que
as feministas liberais de esquerda querem ser.
Não surpreende que o efeito
Palin seja um efeito de falsa libertação: "Drill, baby, drill!"
("perfurar, baby, perfurar!"
-alusão à perfuração de poços
petrolíferos). Podemos reunir
o impossível, feminismo e valores familiares, grandes empresas e trabalhadores braçais!
Assim, retornando a "Eles
Vivem", para captar a mensagem republicana verdadeira é
preciso levar em conta aquilo
que é dito e o que não é dito,
mas que fica implícito.
Onde a mensagem que vemos é a promessa de mudanças, os óculos revelariam algo
como "não se preocupem, não
haverá mudanças reais. Só queremos mudar algumas coisinhas para ter a certeza de que
nada vai mudar de fato."
O discurso da mudança, de
mexer nas águas paradas de
Washington, é uma constante
republicana.
Assim, aqui não há lugar para
ingenuidade: os eleitores republicanos sabem muito bem que
não haverá mudanças reais. Sabem que a substância será a
mesma, com apenas algumas
mudanças de estilo. Isso faz
parte do acordo.
Mas e se a mensagem republicana das entrelinhas ("não
tenham medo, não haverá mudanças reais...") for a verdadeira ilusão, e não a verdade secreta? E se realmente houver uma
mudança?
Felizmente, aconteceu o fato
necessário -uma verdadeira
bênção eleitoral disfarçada-
para nos fazer lembrar do mundo em que vivemos: a realidade
do capitalismo global.
O Estado adotou medidas
emergenciais e prevê gastar
US$ 700 bilhões com um plano
de resgate financeiro, de modo
a consertar as conseqüências
da crise provocada pelas especulações do livre mercado. A
mensagem é inequívoca: mercado e Estado não se opõem; intervenções fortes do Estado são
necessárias para manter a viabilidade do mercado.
Diante da avassaladora crise
financeira, a reação republicana predominante foi a de desesperadamente tentar reduzir
a crise a um infortúnio de gravidade restrita, que poderia facilmente ser sanado com uma dose correta do velho remédio republicano (respeito aos mecanismos de mercado etc.).
Mas toda a encenação política de gastos menores do Estado
se tornou irrelevante após essa
injeção de realidade repentina:
mesmo os partidários mais ferrenhos da redução do papel excessivo de Washington agora
reconhecem a necessidade de
uma intervenção do Estado
que, em seu valor quase inimaginável, chega a ser sublime.
Diante dessa grandeza sublime, todas as bravatas foram reduzidas a um resmungar confuso. Onde foram parar a determinação de McCain e o sarcasmo de Palin?
Competição ideológica
Mas terá a crise financeira
total sido um momento que
realmente provocou reflexão
sóbria, o despertar de um sonho? Tudo depende de como
ela será simbolizada, de qual interpretação ideológica ou de
qual versão irá se impor e ditar
a percepção geral da crise.
Quando o curso normal dos
fatos é interrompido de maneira traumática, o campo fica
aberto à competição ideológica
"discursiva".
Por exemplo, na Alemanha,
no final dos anos 1920, Hitler
ganhou a competição pelo discurso que iria explicar aos alemães as razões da crise da República de Weimar e a saída
proposta para ela (a conspiração, para ele, era a conspiração
judaica); na França, em 1940,
foi a narrativa do marechal Pétain que venceu a disputa por
explicar as razões da derrota
francesa.
Conseqüentemente, para
formular a coisa em termos
marxistas antiquados, a tarefa
principal da ideologia dominante na crise atual é impor
uma narrativa que não atribua
a culpa pela crise atual ao sistema capitalista em si, mas a seus
desvios secundários acidentais
(regulamentação fiscal demasiado leniente, a corrupção de
grandes instituições financeiras etc.).
Contra essa tendência, devemos insistir na pergunta chave:
qual "falha" do sistema enquanto tal abriu a possibilidade
de tais crises e colapsos?
A primeira coisa a ter em
mente aqui é que a origem da
crise é "benévola": depois da
explosão da bolha digital, nos
primeiros anos do novo milênio, a decisão feita por ambos
os partidos foi facilitar os investimentos imobiliários, para
manter a economia andando e
impedir a repressão.
Logo, a crise atual é o preço
que está sendo pago pelo fato
de os EUA terem evitado uma
recessão cinco anos atrás.
Assim, o perigo é que a narrativa predominante da atual crise seja aquela que, em lugar de
nos fazer despertar de um sonho, nos possibilitará continuar a sonhar.
É nesse ponto que devemos
começar a nos preocupar: não
apenas com as conseqüências
econômicas da crise, mas com a
tentação evidente de injetar
ânimo novo na "guerra ao terror" e no intervencionismo dos
EUA, para manter a economia
funcionando a contento.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de
"Um Mapa da Ideologia" (ed. Contraponto). Ele
escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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