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Vida de feiticeiro
João José Reis aborda
as contradições da sociedade escravista
em "Domingos Sodré,
um Sacerdote Africano"
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REGINALDO PRANDI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1862, em Salvador,
o africano liberto Domingos Pereira Sodré,
nascido em Lagos por
volta de 1797, ex-escravo de um engenho do Recôncavo, foi acusado de receber
objetos roubados em pagamento por suas adivinhações e feitiços. Preso, a polícia encontrou
em sua casa utensílios que classificou como do candomblé.
Tendo encontrado documentos referentes à prisão do
liberto, João José Reis foi à
procura de outras fontes, vasculhando jornais da época e arquivos, consultando registros
de batismo e casamento, cartas
de alforria, escrituras, testamentos, inventários, inquéritos e outros documentos policiais, processos e sentenças judiciais. Nas mãos do historiador, vai tomando forma a biografia do africano.
Morto em 1888, aos 90 anos,
às portas da abolição da escravidão no Brasil, sua vida cobre
quase todo o século 19.
A reconstituição das biografias de Domingos Sodré e contemporâneos seus mostra mais
que suas vidas: permite perceber o movimento da história
-do tráfico de escravos, da ascensão e queda da escravidão,
da reconfiguração das sociedades pelo escravismo e colonização e, especialmente, da formação de sociedades, culturas e
economias atlânticas.
Resistência e rebeliões negras, mecanismos de inserção
do negro na sociedade brasileira, o candomblé, tudo isso se
desenha no pano de fundo da
vida do liberto, um dono de escravos, um dia igualmente escravo. O africano prestava serviços mágicos a uma clientela
de negros e brancos, de cativos,
senhores e libertos.
"Papai", como o chamavam,
ganhou fama por seus "feitiços" para "amansar senhor", de
que se valiam clientes escravos,
que pagavam pelo serviço. Foi
adivinho e feiticeiro, um "doador de fortuna", como se dizia.
Como babalaô, sacerdote de
Ifá, certamente mantinha laços
religiosos com pais e mães-de-santo, ali onde o candomblé se
constituía como religião, com
seus terreiros, lideranças, seguidores e clientes
Era católico, como deviam
ser todos os que viviam no Brasil de então, como continuou a
ser a maioria dos seguidores do
candomblé até hoje.
Candomblé e polícia
Ao longo do Oitocentos e depois, o candomblé, do qual Domingos Sodré foi personagem
influente, era visto e perseguido pela polícia como antro de
feitiçaria, exploração da ignorância e perturbação da ordem
pública e dos bons costumes.
Jornais se encarregavam da
denúncia permanente e da alimentação do sempre presente
preconceito. Políticas eram
empreendidas para coibir crenças e práticas que se acreditava
nocivas à civilização brasileira.
A legislação proibia, a polícia
reprimia, o tribunal condenava.
Mas os próprios policiais às
vezes agiam contraditoriamente, perseguindo uns e protegendo outros. Mecanismos de negociação eram criados.
Ao contar a história desse
adivinho iorubá, muitas vezes o
autor se vê ele próprio obrigado
a fazer sua adivinhação, porque
como ele mesmo diz, "o historiador vive um pouco de adivinhar" (pág. 138).
Reis se obriga a repetir termos e expressões como "talvez", "quem sabe", "pode ter sido", "tudo indica".
Mas, ao fazer as conexões hipotéticas que explicam a biografia do sacerdote, descortina
o processo de "ladinização" de
diferentes gerações de africanos, obrigados a se adaptar,
reinventar e criar de novo seus
valores e práticas culturais, enquanto assimilavam, sob a
pressão da escravidão, muitos
dos costumes locais.
Ele mostra as experiências
coletivas por trás do drama de
uma vida singular e ilumina
contextos e processos históricos da sociedade baiana sob a
escravidão no século 19.
Completa, assim, o objetivo
maior do livro.
Entre objetos rituais apreendidos na casa do liberto, havia
um diabrete de ferro, certamente uma representação de
Exu. Reis, professor na Universidade Federal da Bahia, autor
da obra capital "Rebelião Escrava no Brasil" (Cia. das Letras), termina assim a história
do sacerdote africano: "Precisamente na confluência entre
escravidão e liberdade é, quem
sabe, onde melhor se revela a
experiência de vida desse arisco devoto de Exu, senhor das
encruzilhadas, patrono da contradição"
REGINALDO PRANDI é professor de sociologia
aposentado da USP.
DOMINGOS SODRÉ,
UM SACERDOTE AFRICANO
Autor: João José Reis
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/xx/11/ 3707-3500).
Quanto: R$ 58 (464 págs.)
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