São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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Vida de feiticeiro


João José Reis aborda as contradições da sociedade escravista em "Domingos Sodré, um Sacerdote Africano"

REGINALDO PRANDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1862, em Salvador, o africano liberto Domingos Pereira Sodré, nascido em Lagos por volta de 1797, ex-escravo de um engenho do Recôncavo, foi acusado de receber objetos roubados em pagamento por suas adivinhações e feitiços. Preso, a polícia encontrou em sua casa utensílios que classificou como do candomblé.
Tendo encontrado documentos referentes à prisão do liberto, João José Reis foi à procura de outras fontes, vasculhando jornais da época e arquivos, consultando registros de batismo e casamento, cartas de alforria, escrituras, testamentos, inventários, inquéritos e outros documentos policiais, processos e sentenças judiciais. Nas mãos do historiador, vai tomando forma a biografia do africano.
Morto em 1888, aos 90 anos, às portas da abolição da escravidão no Brasil, sua vida cobre quase todo o século 19. A reconstituição das biografias de Domingos Sodré e contemporâneos seus mostra mais que suas vidas: permite perceber o movimento da história -do tráfico de escravos, da ascensão e queda da escravidão, da reconfiguração das sociedades pelo escravismo e colonização e, especialmente, da formação de sociedades, culturas e economias atlânticas.
Resistência e rebeliões negras, mecanismos de inserção do negro na sociedade brasileira, o candomblé, tudo isso se desenha no pano de fundo da vida do liberto, um dono de escravos, um dia igualmente escravo. O africano prestava serviços mágicos a uma clientela de negros e brancos, de cativos, senhores e libertos.
"Papai", como o chamavam, ganhou fama por seus "feitiços" para "amansar senhor", de que se valiam clientes escravos, que pagavam pelo serviço. Foi adivinho e feiticeiro, um "doador de fortuna", como se dizia.
Como babalaô, sacerdote de Ifá, certamente mantinha laços religiosos com pais e mães-de-santo, ali onde o candomblé se constituía como religião, com seus terreiros, lideranças, seguidores e clientes
Era católico, como deviam ser todos os que viviam no Brasil de então, como continuou a ser a maioria dos seguidores do candomblé até hoje.

Candomblé e polícia
Ao longo do Oitocentos e depois, o candomblé, do qual Domingos Sodré foi personagem influente, era visto e perseguido pela polícia como antro de feitiçaria, exploração da ignorância e perturbação da ordem pública e dos bons costumes.
Jornais se encarregavam da denúncia permanente e da alimentação do sempre presente preconceito. Políticas eram empreendidas para coibir crenças e práticas que se acreditava nocivas à civilização brasileira.
A legislação proibia, a polícia reprimia, o tribunal condenava.
Mas os próprios policiais às vezes agiam contraditoriamente, perseguindo uns e protegendo outros. Mecanismos de negociação eram criados.
Ao contar a história desse adivinho iorubá, muitas vezes o autor se vê ele próprio obrigado a fazer sua adivinhação, porque como ele mesmo diz, "o historiador vive um pouco de adivinhar" (pág. 138). Reis se obriga a repetir termos e expressões como "talvez", "quem sabe", "pode ter sido", "tudo indica".
Mas, ao fazer as conexões hipotéticas que explicam a biografia do sacerdote, descortina o processo de "ladinização" de diferentes gerações de africanos, obrigados a se adaptar, reinventar e criar de novo seus valores e práticas culturais, enquanto assimilavam, sob a pressão da escravidão, muitos dos costumes locais.
Ele mostra as experiências coletivas por trás do drama de uma vida singular e ilumina contextos e processos históricos da sociedade baiana sob a escravidão no século 19.
Completa, assim, o objetivo maior do livro.
Entre objetos rituais apreendidos na casa do liberto, havia um diabrete de ferro, certamente uma representação de Exu. Reis, professor na Universidade Federal da Bahia, autor da obra capital "Rebelião Escrava no Brasil" (Cia. das Letras), termina assim a história do sacerdote africano: "Precisamente na confluência entre escravidão e liberdade é, quem sabe, onde melhor se revela a experiência de vida desse arisco devoto de Exu, senhor das encruzilhadas, patrono da contradição"


REGINALDO PRANDI é professor de sociologia aposentado da USP.

DOMINGOS SODRÉ, UM SACERDOTE AFRICANO
Autor: João José Reis
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/ 3707-3500).
Quanto: R$ 58 (464 págs.)


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