São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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Pequenas bruxarias


"Bons Dias!" e "Comentários da Semana" reúnem crônicas de Machado de Assis publicadas na "Gazeta de Notícias" e no "Diário do Rio de Janeiro"

MARCELINO FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Bons Dias!
Era assim que Machado de Assis iniciava suas crônicas na "Gazeta de Notícias". Repito aqui, pois, a saudação. Acabam de sair mais dois livros do Machado. Sim: na calorosa e inflacionada comemoração dos seus cem anos de morte. Fiquei pensando: de novo? O que de novo? Qual novidade? Oh!
Claro: Machado é, senão, nosso escritor maior. E infindável será o que se falará dele.
Sempiternamente. Meu texto, este por exemplo, soará pauperramente débil diante de tamanha grandeza.
Verdade, amigos, não é ironia. É esperteza.
Como escrevia feito diabo o danado! Aos 22 anos já era um gênio. Explico: as crônicas de "Comentários da Semana", um dos dois títulos ora lançados, foram escritas pelo jovem Bruxinho em 1860 (e publicadas no "Diário do Rio de Janeiro").
E ele já começa na sua fina adrenalina. Na crônica número um, comunica: "Eu devia escrever estas linhas em cima de um capitel antigo, ou diante de um livro de velha poesia grega. Pedem-mo o assunto e a disposição de meu espírito, que, ingênuo, se volta para as singelas crenças antigas, enjoado da filosofia deste século desabusado. [...] Doloroso é o salto mortal que sou obrigado a dar".
Meu Cristo!
Ingênuo também (e doloroso) caminha o meu espírito.
Sem saber idem o que escrever.
Vagando entre outrora e os tempos de agora.
Por exemplo: lugar-comum dizer o quanto Machado é atual e veloz. Na sua linguagem irônica, bem-humorada, inovadora. Para falar de ópera e operários. De peças de teatro. Correndo, corrosivo e ritmado, de um assunto para o outro. Ora, parágrafos sobre atores, diretores, músicos, dançarinos e platéias emplumadas. De repente, sobre a morte de um poeta. Ou sobre as diferenças entre um cemitério turco e um cemitério cristão.

Edições cuidadas
Não, não me peçam explicação. Não vou aqui encher de informação didática esse canto de página. Poupemos nosso tempo. Tão precioso e conturbado! Os dois volumes falarão por si. Vêm repletos, enfim, de notas explicativas muito bem cuidadas. No volume "Comentários da Semana", por Lúcia Granja e Jefferson Cano. No outro, "Bons Dias!", a edição vem assinada por John Gledson. Sim, aquele professor da Universidade de Liverpool, velho conhecedor do autor carioca.
Pincelei uma das muitas coisas curiosas: Machado inventou um nome com o qual subscrevia o seu lado cronista de variedades. A saber: Gil.
Inevitável não lembrar do nosso ex-Ministro da Cultura.
Não pelo pseudônimo, mas por causa de uma das crônicas do "Bons Dias!", em que Machado comemora:
"Antes de mais nada, deixem-me dar um abraço no Luís Murat, que acaba de "não" ser eleito [aspas minhas] deputado pelo 12º distrito do Rio de Janeiro. Eu já tinha escovado a casaca e o estilo para o enterro do poeta e o competente necrológico: ninguém está livre de uma vitória eleitoral. [...] Não é que seja mau ter um lugar na Câmara. Tomara eu lá estar.
Não posso; não entram ali relojoeiros. Poetas entram, com a condição de deixar a poesia.
Votar ou poetar."
Sei lá.
Repito: fui lendo e traçando paralelos. Observando o quanto somos velhos. Nas mesmas pendengas e conflitos. Magistral é o jeito com que Machado fala, em vários textos de "Bons Dias!" (estes, escritos entre abril de 1888 e agosto de 1889) sobre a abolição da escravatura.
Não há "salvação" para os negros. A abolição os conduzirá a salários miseráveis e à instabilidade de trabalho. E isso continuará por muito tempo.
É mesmo?
E aí pensei nos nossos modernos cortadores de cana, nos catadores de lata, nas minas de carvão. Mas Machado não pede tamanho exagero. Toda vez que o leio, ganho um sarcasmo sorrateiro, uma violência implícita, uma sombra de poética assombração. Acalmo os meus nervos. E os meus olhos ressacados. E a minha alma em frangalhos.

"Quebrar a pena"
Perdão, amigos leitores, este meu texto falho para tratar de um dos nossos maiores e mais atuais debochadores.
"O fim particular que levo nas linhas que aí ficam escritas é pedir-vos que, com o auxílio da vossa poderosa lente moral, me designeis qual a sorte desses comentários. [...] Se for boa a predição, tornar-me-ei forte; se contrária me for, quebrarei a pena e me recolherei à tenda, como o velho guerreiro, sem me queixar de ninguém", precavia-se o mancebo escritor. E assinava, ao fim dos relatos, como assino, de minha parte e hoje, a todos os meus sonoros: boas noites.


MARCELINO FREIRE é escritor, autor de "Rasif - Mar Que Arrebenta" (contos, ed. Record).

BONS DIAS!
Autor: Machado de Assis Editora: Unicamp (tel. 0/xx/19/3521-7718) Quanto: R$ 40 (320 págs.)

COMENTÁRIOS DA SEMANA
Autor: Machado de Assis
Editora: Unicamp
Quanto: R$ 28 (216 págs.)


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