São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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UM VULCÃO DE IDÉIAS

de Paris

André Malraux - Une Vie dans le Siècle", resenhado por Paulo Emílio Salles Gomes, retornou às livrarias de Paris neste ano, em razão do centenário do escritor. Entusiasmado com que estivessem falando do livro no Brasil, o jornalista e escritor Jean Lacouture explicou à Folha, por telefone, o que a obra de Malraux teria a dizer a respeito da nova situação internacional.
Aos 80 anos, Lacouture vive em Paris e é um dos mais estimados intelectuais franceses da velha-guarda. Foi jornalista do "Le Monde" e há décadas se dedica a pesquisar e contar a vida de importantes personagens da história da França.
Sua biografia "De Gaulle", em três volumes, é considerada a maior já escrita sobre o general. Ele também é autor de "François Mauriac", sobre o escritor francês, e "Mitterrand - Une Histoire de Français", em dois volumes, além de vários outros livros. No Brasil, estão publicadas as suas pesquisas históricas "Os Jesuítas" (ed. L&PM) e "Montaigne a Cavalo" (ed. Record).


Para Malraux, o terror e o terrorismo são fatores importantes da sociedade e da história; ele seria a pessoa menos surpresa do mundo com o que aconteceu em 11 de setembro


Ele ainda não leu a nova biografia feita por Olivier Todd, "André Malraux - Une Vie", lançada no primeiro semestre e a única até agora capaz de rivalizar com a dele. "Sei que tem detalhes interessantes", disse.
Lacouture aconselhou o livro de Jean-François Lyotard, "Assinado, Malraux" (publicado no Brasil pela ed. Record). "É extremamente interessante, sobretudo quanto à formação do escritor. Aconselho que seja lido junto com o meu livro." Recentemente, Jean Lacouture virou estrela do cinema ao fazer com desenvoltura uma participação no último filme de Jean-Luc Godard, "Elogio do Amor".

A história e a violência da história são elementos muito importantes na obra de Malraux. O que essa obra tem a nos dizer depois dos atentados nos Estados Unidos?
Penso que Malraux não ficaria surpreso com tudo o que ocorreu, porque ele acreditava em duas coisas realmente importantes: que o mundo é transformado pela violência e que a religião terá papel bastante importante no século 21.

O que ele falou sobre a religião?
Ele pensou que, assim como a ideologia havia dominado o século 20, a religião dominaria o século 21, fosse ela cristã, judia ou muçulmana. Ele disse: "O século 21 será religioso". E o século de fato começou com um ato de terror de alguém que se proclama religioso -e poderia ser muçulmano, judaico ou cristão. No caso, é muçulmano. Quando vemos um personagem religioso, ou que pretende sê-lo, como Bin Laden, agindo e matando em nome do islã, é a Malraux que retornamos. Isso não o surpreenderia.

A forma como o terrorismo funciona nesse caso também não o surpreenderia?
Também não. Ele escreveu sobre o terrorismo em vários livros, sobretudo em "A Condição Humana". Um dos heróis desse livro, que é o seu mais célebre, se chama Tchen e passa uma boa parte de sua vida articulando um atentado contra Chiang Kai-shek, o presidente chinês na época. Para Malraux, o terror e o terrorismo são fatores importantes da sociedade e da história. Ele seria a pessoa menos surpresa do mundo com o que aconteceu em 11 de setembro.

Quando o sr. diz que o terrorismo para ele era um fator importante, está querendo dizer que ele era a favor do terrorismo como motor da história?
Claro que não. Ele não era a favor da violência em geral. Mas ele pensava que a história, enfim, era feita pela violência. Essa pode ser uma violência organizada, permanente, como o comunismo a preparou -uma violência de Estado, de progressão mais ou menos lenta. Ou pode ser uma explosão de tipo terrorista, como a que ele viu ocorrer na China e na Espanha. Na primeira fase da revolução espanhola, sobretudo na Catalunha, o principal movimento revolucionário era o anarquismo, e eles pregavam a violência e o terrorismo. Eles praticaram o terrorismo.

Paulo Emílio cita, no artigo que está sendo publicado no "Mais!", uma frase de Malraux tirada de "O Elogio da Tortura": "A fonte do terrorismo é a esperança. (...) A esperança é o élan histórico, o futuro inelutável". Como compreender essa frase hoje?
Com a frase, Malraux queria dizer que o terrorismo é ao mesmo tempo a arma da esperança e do desespero. Ele condenava o terrorismo, mas compreendia que, para homens desesperados, aos quais não foi deixada nenhuma outra forma de ação, seja na Espanha, na China ou ainda sob ocupação estrangeira, como na França durante a Segunda Guerra, a revolta é a forma de expressão. A revolta se exprime e espera que a revolução dê sentido a ela.
Ele confraternizou durante algum tempo com o marxismo. Ele não chegou a ser um marxista nem jamais foi um comunista, mas acreditou que a organização revolucionária trazia nela mesma uma esperança. E essa esperança ultrapassa o período em que se inscreve a fase do terrorismo.
O terrorismo ele mesmo é uma forma de desespero. Ele surge porque quem o pratica pensa que não há outra coisa a fazer, que a sociedade política está presa às suas forças de conservação, mas que mesmo assim é preciso desencadear uma outra sociedade. Para Malraux, seria a sociedade socialista. Há uma primeira fase de destruição, que pode levar a uma forma de organização socialista. Para as pessoas que lançaram a operação de 11 de setembro, é a sociedade de tipo muçulmano, alcorânica. Agora, não sei como seria possível aplicar no século 21 regras pregadas pelo profeta no século 7º. Mas é o que Bin Laden defende.

E o que Malraux teria a dizer da nova situação internacional, quando vemos um acordo até então impensável dos Estados Unidos com a Rússia?
Malraux esteve ao lado dos comunistas durante um tempo, na luta contra o fascismo. Depois da Segunda Guerra, foi um dos mais ardentes militantes na França, ao lado sobretudo do general De Gaulle, contra o stalinismo. Ele sustentaria, então, o fim do stalinismo. E aplaudiria Gorbatchov, que tentou dar uma imagem humana ao comunismo. Mas não creio que fosse gostar de Putin, embora talvez pensasse que a Rússia teria o direito de negociar com os Estados Unidos. Malraux não era um antiamericano. Embora tenha sido um revolucionário na juventude, não era fechado em nenhuma ideologia e admirava a sociedade americana, ainda que ela não fosse a dos seus sonhos, pelo seu dinamismo, pela sua criatividade e a sua potência.

Malraux foi uma espécie de herói esteta do século 20, que misturava a realidade com seus sonhos. Esse tipo de homem acabou, agora que estamos no século 21?
Não creio. Ainda veremos aparecer muita gente no estilo de Malraux, que vai tentar integrar a ação histórica com seus sonhos, com um certo valor profético, e não apenas transcrever e observar a realidade.

O sr. conheceu Malraux. Ele tinha pessoalmente esse estilo profético?
Ah, era um inventor constante, um vulcão de idéias. Ele soltava idéias assim, umas atrás das outras. Algumas eram loucas, outras eram realmente muito justas e inteligentes. Ele tinha um bom conhecimento do mundo e conhecia muita gente. Encontrou alguns dos maiores homens do século 20, como Trótski e Mao, trabalhou muito ao lado do general De Gaulle. Então, ele podia dizer: "Kennedy me disse...", "Trótski me dizia...". Era impressionante. Ele era muito fértil em idéias e, quando estávamos com ele, não conseguíamos falar muita coisa. De sua boca saíam constantemente frases muito impressionantes. Malraux era uma espécie de ópera permanente.



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