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+ sociedade
Força psicológica do ritual, como em funerais ou julgamentos,
permite a cura de traumas e a retomada das atividades cotidianas
O enterro da dor e o reinício da vida
Gláucio Ary Dillon Soares
especial para a Folha
Closure". Essa é uma daquelas palavras difíceis de traduzir. Tem
algo em comum com "fechar".
Porém, "closure" também se
aplica a pedaços de um processo psicológico, além do processo inteiro. Não é,
ainda, um conceito científico e, certamente, os seus símbolos têm muito de
cultural. Buscando pela internet encontrei perto de 10 mil artigos em jornais e
revistas não-especializadas que usavam
esse conceito, mas poucos em revistas
científicas.
"Closure" se refere à parte de um processo que se inicia com um trauma
-um acidente, uma doença grave, um
estupro, a morte de alguém querido.
"Closure" encerra uma parte desse processo e permite o início da cura, da superação do trauma e, com tempo, do reinício da vida.
"Closure" não evita a dor, mas permite
a cicatrização. Ela se atinge com o auxílio
de atos simbólicos, de profunda significação psicológica; por meio da aceitação
da realidade, ela permite olhar no rosto a
tristeza, a certeza do fim. Em muitos países, "closure" se realiza por meio do enterro e de outros rituais. As ditaduras militares na América Latina, com a sua tática de fabricar desaparecidos, deixaram
dezenas de milhares de familiares e amigos sem "closure".
Todos conhecemos pessoas que passaram muitos anos com uma pontinha de
esperança, negando-se a aceitar a morte
do ente querido. A vida delas orbitava ao
redor dessa esperança, de alguém que teria visto o desaparecido, de fragmentos
de papel com uma letra parecida. Alguns
alentaram essas esperanças, não se dando conta de que a vida de amigos e parentes só recomeça quando elas acabam.
Os desaparecimentos, que marcaram
as ditaduras, não puniram indefinidamente os mortos, cujos cadáveres ocultaram; puniram os vivos, seus parentes,
seus amigos.
O caráter cultural desses rituais é enfatizado por Deogratias Bagilishya, em
"Transcultural Psychiatry", ao analisar o
genocídio em Ruanda. Buscava significados naquela cultura e encontrara vários, inclusive provérbios. Beristain,
González e Paez estudaram as reações de
quase 3.500 adultos guatemaltecos. Pessoas relacionadas com vítimas participaram mais de funerais e exibiam mais medo, tristeza, vulnerabilidade, raiva, sentido de injustiça e luto. Havia uma memória coletiva da guerra que se expressava
numa intensa mobilização política e social, além da participação nos rituais.
A cultura americana partilha alguns rituais com a latino-americana, inclusive a
brasileira, como os enterros e cerimônias
religiosas, ainda que sejam diferentes:
acontecem dias depois, com cadáveres
preparados, cuidadosamente maquilados. Aquela cultura enfatiza, também, a
ação, seja construtiva, seja destrutiva.
Sobreviventes de câncer se tornam
membros de associações em que trocam
informações e conselhos, assistem pacientes mais recentes e formam grupos
de pressão para obter fundos para pesquisa e prevenção. Em casos de estupro
e homicídio, a reação é diferente: alguns
lutam por legislação e outras medidas
preventivas, e, outros, por vingança por
meio da Justiça, da prisão e, inclusive, da
pena de morte.
Enquanto o assassino ou o estuprador
não for preso e condenado, não há "closure" para muitas vítimas nem para seus
parentes e amigos, que ajudam a polícia
e continuam suas investigações particulares depois que as pistas acabam, o caso
congela e é arquivado. Não poucos desencavaram novas pistas que levaram à
prisão e à condenação dos criminosos.
A Justiça americana reconhece o direito das famílias: nos julgamentos, parentes e amigos podem fazer uso da palavra;
a execução de Timothy McVeigh, que
colocou a bomba em Oklahoma City, foi
acompanhada em circuito fechado de televisão pelas famílias das vítimas. O objetivo? "Closure".
A necessidade de vingança transparece
nas declarações de um familiar de uma
das vítimas do atentado de Oklahoma ao
"Charleston Gazette", que afirmou que a
morte de McVeigh não produziu a "closure" que todos os familiares almejavam: "Ele morreu silenciosamente, morreu calmamente, morreu com dignidade, morreu sem nos dar aquilo que queríamos: a satisfação do seu sofrimento".
O desejo de justiça, misturado com o
de vingança, não fica limitado aos diretamente interessados: ele se espalha. Oito em cada dez americanos acham que
McVeigh merecia morrer. Porém a lentidão do processo judicial pode dificultar
a "closure". A filha de Pauline Keen foi
assassinada a facadas há seis anos. Ela
está pedindo à Justiça que acelere o interminável processo para que ela e o seu
neto possam continuar suas vidas. Claramente, ela acha que a retomada da vida é impossível enquanto o assassino
não estiver preso e condenado.
Em 2000, Robert Coe, um assassino,
foi executado no Tennessee. A mãe da
vítima, May Martínez, admite que não
viveu durante a longa espera de seis anos
e que a "closure" é incompleta: o espectro da morte da filha estará sempre presente. Um testemunho impressionante é
o de Brooks Douglass, senador pelo Estado de Oklahoma, cujos pais foram
brutalmente assassinados, sua irmã de
12 anos, estuprada, e ele próprio, seriamente ferido. Ele e sua irmã presenciaram a execução de um dos dois assassinos, Steven Keith Hatch. Afirmaram que
ver o assassino morrer foi benéfico para
eles, mas não acabou com a dor. Parece,
mesmo, que "closure" é o início da cicatrização, e não o seu fim.
Muitos consideram "closure" essencial
para melhorar a qualidade da vida, que
baixa muito depois de um trauma. O alcoolismo é frequente. A ausência de
"closure" mostra a redução da qualidade
da vida, mas os caminhos podem ser indiretos: Nishith, Resick e Mueser sugerem que é alta a incidência de problemas
com o sono e, através deles, com o alcoolismo entre vítimas de estupro.
A destruição do World Trade Center
gerou um problema generalizado de
"closure". A realidade é tão horrível que
não é divulgada. A implosão de mais de
cem andares e o incêndio significam que
não há mais corpos, e, sem corpos, a
"closure" é muito difícil. Na melhor das
hipóteses, há cinzas; na pior, há centenas
de milhares de pedaços de gente em
adiantado estado de decomposição. A
cena é dantesca. Os que trabalharam no "ground zero" já apresentam problemas psicológicos. Se tudo o que os terroristas quisessem fosse um impacto
simbólico, poderiam obtê-lo com poucas mortes, atacando duas ou três horas
mais cedo, antes do início do horário de
trabalho, mas obviamente queriam matar muita gente e gerar pânico.
Isso gerou falta de "closure", e as reações são claras: há uma memória coletiva e a população americana quer a punição dos terroristas e de todos os que os
ajudaram. Além disso, as entrevistas
com familiares das vítimas do World
Trade Center mostram a irracionalidade da falta de "closure" e muitos continuam negando que o ente querido esteja morto.
Existem alternativas em consideração:
examinar o DNA de todos os pedacinhos encontrados que permitam o exame, criando um banco de dados, que seria cruzado com outro, usando o que
puderem encontrar das vítimas, particularmente pedaços de pele e cabelos,
em suas residências. Será menos confiável que sangue ou células da boca, onde
usualmente são coletadas as amostras
para os exames de DNA. O único objetivo seria garantir que as vítimas estavam
lá, proporcionando "closure" aos parentes e amigos.
O jornal inglês "Guardian" noticiou
que centenas de parentes buscaram certidões de óbito e, por meio delas, "closure", mas que poucos deles haviam abandonado a esperança. Beth Rogers publicou um livro, "Joy in the Mourning", no
qual enfatiza que a morte de seres queridos leva anos para cicatrizar. A cicatrização só começa após "closure".
Enquanto não houver "closure", muitos permanecerão em atividade frenética, buscando ampliar as "evidências" da
sobrevivência das pessoas queridas. Essa busca não é racional, mas existe. As
pessoas não vivem as suas vidas enquanto vivem a morte de outros. Essas
atividades impedem a cicatrização do
espírito e a renormalização da vida. A
incerteza da morte de uns impede a vida
de outros. Há um drama de dezenas de
milhares de pessoas, que não vemos na
televisão e não lemos nos nossos jornais: a busca de "closure".
Gláucio Ary Dillon Soares é professor no Iuperj
(Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro) e na Universidade da Flórida (EUA).
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