São Paulo, domingo, 28 de outubro de 2001

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+ sociedade

Força psicológica do ritual, como em funerais ou julgamentos, permite a cura de traumas e a retomada das atividades cotidianas

O enterro da dor e o reinício da vida

Gláucio Ary Dillon Soares
especial para a Folha

Closure". Essa é uma daquelas palavras difíceis de traduzir. Tem algo em comum com "fechar". Porém, "closure" também se aplica a pedaços de um processo psicológico, além do processo inteiro. Não é, ainda, um conceito científico e, certamente, os seus símbolos têm muito de cultural. Buscando pela internet encontrei perto de 10 mil artigos em jornais e revistas não-especializadas que usavam esse conceito, mas poucos em revistas científicas.
"Closure" se refere à parte de um processo que se inicia com um trauma -um acidente, uma doença grave, um estupro, a morte de alguém querido. "Closure" encerra uma parte desse processo e permite o início da cura, da superação do trauma e, com tempo, do reinício da vida.
"Closure" não evita a dor, mas permite a cicatrização. Ela se atinge com o auxílio de atos simbólicos, de profunda significação psicológica; por meio da aceitação da realidade, ela permite olhar no rosto a tristeza, a certeza do fim. Em muitos países, "closure" se realiza por meio do enterro e de outros rituais. As ditaduras militares na América Latina, com a sua tática de fabricar desaparecidos, deixaram dezenas de milhares de familiares e amigos sem "closure".
Todos conhecemos pessoas que passaram muitos anos com uma pontinha de esperança, negando-se a aceitar a morte do ente querido. A vida delas orbitava ao redor dessa esperança, de alguém que teria visto o desaparecido, de fragmentos de papel com uma letra parecida. Alguns alentaram essas esperanças, não se dando conta de que a vida de amigos e parentes só recomeça quando elas acabam.
Os desaparecimentos, que marcaram as ditaduras, não puniram indefinidamente os mortos, cujos cadáveres ocultaram; puniram os vivos, seus parentes, seus amigos.
O caráter cultural desses rituais é enfatizado por Deogratias Bagilishya, em "Transcultural Psychiatry", ao analisar o genocídio em Ruanda. Buscava significados naquela cultura e encontrara vários, inclusive provérbios. Beristain, González e Paez estudaram as reações de quase 3.500 adultos guatemaltecos. Pessoas relacionadas com vítimas participaram mais de funerais e exibiam mais medo, tristeza, vulnerabilidade, raiva, sentido de injustiça e luto. Havia uma memória coletiva da guerra que se expressava numa intensa mobilização política e social, além da participação nos rituais.
A cultura americana partilha alguns rituais com a latino-americana, inclusive a brasileira, como os enterros e cerimônias religiosas, ainda que sejam diferentes: acontecem dias depois, com cadáveres preparados, cuidadosamente maquilados. Aquela cultura enfatiza, também, a ação, seja construtiva, seja destrutiva. Sobreviventes de câncer se tornam membros de associações em que trocam informações e conselhos, assistem pacientes mais recentes e formam grupos de pressão para obter fundos para pesquisa e prevenção. Em casos de estupro e homicídio, a reação é diferente: alguns lutam por legislação e outras medidas preventivas, e, outros, por vingança por meio da Justiça, da prisão e, inclusive, da pena de morte.
Enquanto o assassino ou o estuprador não for preso e condenado, não há "closure" para muitas vítimas nem para seus parentes e amigos, que ajudam a polícia e continuam suas investigações particulares depois que as pistas acabam, o caso congela e é arquivado. Não poucos desencavaram novas pistas que levaram à prisão e à condenação dos criminosos.
A Justiça americana reconhece o direito das famílias: nos julgamentos, parentes e amigos podem fazer uso da palavra; a execução de Timothy McVeigh, que colocou a bomba em Oklahoma City, foi acompanhada em circuito fechado de televisão pelas famílias das vítimas. O objetivo? "Closure".
A necessidade de vingança transparece nas declarações de um familiar de uma das vítimas do atentado de Oklahoma ao "Charleston Gazette", que afirmou que a morte de McVeigh não produziu a "closure" que todos os familiares almejavam: "Ele morreu silenciosamente, morreu calmamente, morreu com dignidade, morreu sem nos dar aquilo que queríamos: a satisfação do seu sofrimento".
O desejo de justiça, misturado com o de vingança, não fica limitado aos diretamente interessados: ele se espalha. Oito em cada dez americanos acham que McVeigh merecia morrer. Porém a lentidão do processo judicial pode dificultar a "closure". A filha de Pauline Keen foi assassinada a facadas há seis anos. Ela está pedindo à Justiça que acelere o interminável processo para que ela e o seu neto possam continuar suas vidas. Claramente, ela acha que a retomada da vida é impossível enquanto o assassino não estiver preso e condenado.
Em 2000, Robert Coe, um assassino, foi executado no Tennessee. A mãe da vítima, May Martínez, admite que não viveu durante a longa espera de seis anos e que a "closure" é incompleta: o espectro da morte da filha estará sempre presente. Um testemunho impressionante é o de Brooks Douglass, senador pelo Estado de Oklahoma, cujos pais foram brutalmente assassinados, sua irmã de 12 anos, estuprada, e ele próprio, seriamente ferido. Ele e sua irmã presenciaram a execução de um dos dois assassinos, Steven Keith Hatch. Afirmaram que ver o assassino morrer foi benéfico para eles, mas não acabou com a dor. Parece, mesmo, que "closure" é o início da cicatrização, e não o seu fim.
Muitos consideram "closure" essencial para melhorar a qualidade da vida, que baixa muito depois de um trauma. O alcoolismo é frequente. A ausência de "closure" mostra a redução da qualidade da vida, mas os caminhos podem ser indiretos: Nishith, Resick e Mueser sugerem que é alta a incidência de problemas com o sono e, através deles, com o alcoolismo entre vítimas de estupro.
A destruição do World Trade Center gerou um problema generalizado de "closure". A realidade é tão horrível que não é divulgada. A implosão de mais de cem andares e o incêndio significam que não há mais corpos, e, sem corpos, a "closure" é muito difícil. Na melhor das hipóteses, há cinzas; na pior, há centenas de milhares de pedaços de gente em adiantado estado de decomposição. A cena é dantesca. Os que trabalharam no "ground zero" já apresentam problemas psicológicos. Se tudo o que os terroristas quisessem fosse um impacto simbólico, poderiam obtê-lo com poucas mortes, atacando duas ou três horas mais cedo, antes do início do horário de trabalho, mas obviamente queriam matar muita gente e gerar pânico.
Isso gerou falta de "closure", e as reações são claras: há uma memória coletiva e a população americana quer a punição dos terroristas e de todos os que os ajudaram. Além disso, as entrevistas com familiares das vítimas do World Trade Center mostram a irracionalidade da falta de "closure" e muitos continuam negando que o ente querido esteja morto.
Existem alternativas em consideração: examinar o DNA de todos os pedacinhos encontrados que permitam o exame, criando um banco de dados, que seria cruzado com outro, usando o que puderem encontrar das vítimas, particularmente pedaços de pele e cabelos, em suas residências. Será menos confiável que sangue ou células da boca, onde usualmente são coletadas as amostras para os exames de DNA. O único objetivo seria garantir que as vítimas estavam lá, proporcionando "closure" aos parentes e amigos.
O jornal inglês "Guardian" noticiou que centenas de parentes buscaram certidões de óbito e, por meio delas, "closure", mas que poucos deles haviam abandonado a esperança. Beth Rogers publicou um livro, "Joy in the Mourning", no qual enfatiza que a morte de seres queridos leva anos para cicatrizar. A cicatrização só começa após "closure".
Enquanto não houver "closure", muitos permanecerão em atividade frenética, buscando ampliar as "evidências" da sobrevivência das pessoas queridas. Essa busca não é racional, mas existe. As pessoas não vivem as suas vidas enquanto vivem a morte de outros. Essas atividades impedem a cicatrização do espírito e a renormalização da vida. A incerteza da morte de uns impede a vida de outros. Há um drama de dezenas de milhares de pessoas, que não vemos na televisão e não lemos nos nossos jornais: a busca de "closure".


Gláucio Ary Dillon Soares é professor no Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro) e na Universidade da Flórida (EUA).



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