|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ crítica
Descoberta de novos textos de Mikhail Bakhtin
exige a reavaliação contínua de sua obra
A arte da superação
Boris Schnaiderman
especial para a Folha
Por mais apreço que eu tenha
pelos trabalhos de Carlos Alberto Faraco, não posso deixar
de estranhar sua reação ao livro
"Mikhail Bakhtin", de Katerina Clark
e Michael Holquist, publicado pela
Perspectiva em 1998, em tradução de
Jacó Guinsburg. "Boa biografia; a interpretação dos textos é, porém, pobre e datada", afirmou ele no Mais! de
30/9/01. Certamente o espaço exíguo
de que dispunha contribuiu para a
forma peremptória de sua afirmação.
Convém, nesse caso, considerar a
importância que uma boa biografia
tem para os estudos teóricos. Aliás, já
em 1931 Roman Jakobson afirmava
em seu ensaio suscitado pelo suicídio
de Maiakóvski ("Sobre a Geração Que
Esbanjou os Seus Poetas", em russo) a
necessidade de superar o antibiografismo então em voga.
Isso adquire uma relevância peculiar quando tratamos de Bakhtin, pois
sua obra traz evidente a marca das terríveis vicissitudes que sofreu. Por
exemplo, estranhei sempre a ausência, ali, de uma exposição clara sobre a
relação entre dialogismo e dialética,
não obstante seu cuidado com a fundamentação filosófica. Mas trata-se
evidentemente da impossibilidade,
na época, de um ataque frontal à dialética hegeliana, e uma oposição a esta
se percebe em alguns de seus textos.
Antes do livro de Clark e Holquist
podiam-se fazer conjeturas sobre isso, mas a rica documentação biográfica permite precisar melhor as razões
da lacuna. Aliás, o próprio termo "lacuna" se torna discutível, quando situamos os escritos no contexto da
época.
Nunca será demais sublinhar a importância da pesquisa de que o livro
dá conta. Ocorriam então no Ocidente os maiores equívocos sobre a obra
bakhtiniana, justamente pelo desconhecimento das circunstâncias em
que ela se desenvolveu. Seria muito
fácil citar exemplos do que estou afirmando agora, mas eu já me dediquei a
isso mais de uma vez.
É surpreendente que tenham surgido num livro de 1984 dados tão precisos sobre um autor até então misterioso, pois é conhecida a dificuldade
que havia então para pesquisas em arquivos soviéticos. Se fosse publicado
alguns anos mais cedo, certamente se
evitaria muita bobagem que havia
aparecido então, inclusive com a assinatura de nomes ilustres.
Voltando, porém, à nota de jornal
que suscitou o presente comentário,
temos de reconhecer: não obstante a
afirmação recente sobre a "boa biografia" acompanhada de uma interpretação de textos "pobre e datada",
Carlos Alberto Faraco defende em alguns trabalhos, particularmente em
"O Dialogismo como Chave de uma
Antropologia Filosófica" (na coletânea "Diálogos com Bakhtin", organização de Carlos Alberto Faraco, Cristovão Tezza e Gilberto de Castro, publicada em 1996 pela Editora da Universidade Federal do Paraná), uma
abordagem que supere "o divórcio
entre o conhecer e o agir, entre a ciência e a vida", a partir do qual, segundo
sua argumentação, as ciências humanas operam atualmente. Francamente, relendo sua formulação, que me
parece muito boa, não consigo compreender as reservas que faz ao livro
de Clark e Holquist.
Já a referência a uma interpretação
"datada" nos remete ao seguinte: tudo o que se escreve sobre Bakhtin corre o perigo de ficar superado por textos desse pensador que vão aparecendo até hoje, na medida em que prosseguem os difíceis trabalhos de publicação de seu acervo, constituído, em
grande parte, de anotações em cadernos, que em 1972 eu vi perplexo em
seu quarto em Pierediélkino, a aldeia
dos escritores, afogada em bétulas,
próxima de Moscou.
Posso citar um exemplo da superação de algo que eu mesmo escrevi.
Durante muitos anos, fiquei me debatendo com a afirmação bakhtiniana
de que a poesia é essencialmente monológica. Isso me parecia absurdo e se
chocava com formulações de V. Vinogradov, que percebia na poesia de
Akhmátova, ainda antes da teorização de Bakhtin sobre dialogismo e polifonia, uma expectativa tensa em relação ao outro, um discurso que dependia do discurso do interlocutor.
Mas, no caso de Bakhtin, qualquer
afirmação não anula a possibilidade
de outra diametralmente oposta. Não
se tem aí, de fato, uma contradição do
autor, mas a ocorrência de discursos
múltiplos em sua manifestação.
Pois bem, no volume cinco das
"Obras Reunidas" (em sete volumes),
atualmente em curso de publicação,
apareceu em 1997 o inédito "Sobre
Maiakóvski", conhecido parcialmente desde a década de 80. Em forma
bem fragmentária, de anotação prévia, surge ali uma literatura realmente
inovadora da obra maiakovskiana.
Ela é vista como a presença de uma
polifonia que ultrapassa as limitações
do discurso tradicional e traz a multiplicidade da elocução das grandes
massas, postas em movimento pela
revolução. Tem-se no discurso múltiplo, essencialmente, a "heroicização"
da vida contemporânea, em proporções gigantescas. Segundo Bakhtin,
esse épico moderno somente se tornou possível na Rússia soviética, e
Maiakóvski teria sido a grande voz
que o expressou (incrível essa afirmação de alguém tão perseguido pelo
sistema!).
Mas, se, por um lado, o aparecimento de novos textos torna superadas
certas afirmações advindas do desconhecimento deles em seu conjunto, os
caminhos que os teóricos percorreram são, por sua vez, significativos, e,
sem dúvida, o aparecimento de um
pensador como Bakhtin abriu novos
caminhos, mesmo quando a assimilação de seus escritos era falha e fragmentária.
Enfim, não posso deixar de acrescentar agora minha voz ao grande
"simpósio universal" a que a obra de
Bakhtin continua a nos convidar.
Boris Schnaiderman é crítico e tradutor, autor de, entre outros, "Turbilhão e Semente"
(ed. Duas Cidades) e "Os Escombros e o Mito"
(Cia. das Letras).
Texto Anterior: O enterro da dor e o reinício da vida Próximo Texto: + livros: Acidentes de percurso Índice
|