São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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LIVROS
Moacyr Scliar narra as aventuras de uma ardilosa mulher na corte de Salomão
A autora da Bíblia

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Há certa ambiguidade quando se diz, de um livro, que é "divertidíssimo" e "se lê de uma sentada só". Ao elogio se mistura a insinuação de que é descartável, de que não precisa ser levado a sério.
Também não é o caso de dizermos que tudo precisa necessariamente ser levado a sério. O crítico americano Harold Bloom, em seu "O Livro de J" (Imago), lançou há alguns anos a tese de que uma das versões originais da Bíblia teria sido escrita por uma mulher, "figura destacada da elite do rei Salomão". Devemos levar a sério essa idéia? Moacyr Scliar resolveu brincar com ela, imaginando as cômicas desventuras da feiíssima, mal-amada e ardilosa autora do texto sagrado.
Trata-se da filha mais velha de um patriarca do deserto; por motivos puramente políticos, o rei Salomão a escolhe para ser uma de suas 700 mulheres. Não há cerimônia nupcial, nem a protagonista é chamada ao leito do rei. Destaca-se, entretanto, por liderar revoltas no harém e principalmente por saber ler e escrever.
Acompanhamos com piedade, surpresa e risos cada página desse romance. A mulher que escreveu a Bíblia é tão criativa em seus esforços para perder a virgindade quanto nos que dedica à redação da obra terrífica.
Duas coisas, a meu ver, tornam tão divertido o livro "A Mulher Que Escreveu a Bíblia". A primeira é que a imaginação do autor se mostra ao mesmo tempo rica e econômica; Scliar não é dos que, sendo imaginativos, se comprazem com essa qualidade e entopem o leitor de acontecimentos vertiginosos.
Cada episódio, aqui, surge e desaparece no momento certo. A morte da velha concubina de Salomão, a lascívia dos escribas, a visita da rainha de Sabá, os sumiços e as voltas do pastorzinho (primeira paixão da protagonista), tudo obedece a um ritmo exato, ao senso de "timing" que é privilégio dos bons humoristas.
Mas a principal graça do livro está na manipulação, nunca forçada, do anacronismo. Vivendo na corte do rei Salomão, a narradora alterna a fraseologia bíblica com as cafajestices e informalidades da linguagem contemporânea. Eis o momento em que ela constata num espelho, pela primeira vez, a própria feiúra: "Por que não me arrancou Jeová da mão aquele revelador, mas funesto objeto? Hein, Jeová? Por que não tomaste alguma providência...?". Já casada, angustia-se com o desinteresse de Salomão. Uma companheira do harém a tranquiliza: "Não esquenta, querida, o rei vai te chamar".
Palavrões aparecem a toda hora. A autora vai escrevendo a Bíblia: "A mulher sendo fabricada a partir de uma costela de Adão. A mulher dando ouvidos à serpente. A mulher provando do fruto da Árvore do Bem e do Mal. Em suma: a mulher cagando tudo".
Os desníveis de tom poderiam se tornar cansativos; mas é tão sutil, tão alerta o ouvido de Scliar para a frase feita e para os abusos de linguagem, que o recurso sempre se renova para o leitor.
À primeira vista, o simples contraste entre o chulo e o sublime bastaria para dar graça ao livro. Uma outra ironia, entretanto, o percorre. Toda a narrativa da heroína, apresentada como contemporânea de Salomão, vai-se revelando apócrifa também. Teria sido recolhida por um ex-professor de história, hoje especializado em terapia de vidas passadas, que é quem apresenta o relato. Uma ex-paciente, muito feia, descobrira-se a reencarnação da autora da Bíblia e conta, assim, suas experiências na corte de Salomão.
Lido o romance, ficamos na dúvida se foi de fato a ex-paciente quem escreveu o relato; pois o deboche, o tecnocratês, o tom insolente que ali aparecem são inconfundivelmente masculinos... o terapeuta de vidas passadas se torna suspeito. Será que a autobiografia da mulher que escreveu a Bíblia foi escrita por um homem? Aqui, Scliar parece fazer uma "desleitura" de Bloom, numa nova camada de ironia.
O final do livro, desconcertante e como engolindo-se a si mesmo, recoloca a mulher -as mulheres- no anonimato que durante tantos séculos fez parte de sua condição. Puro divertimento, puro humorismo? Não estraga nada pensar que não é bem assim.



A OBRA
A Mulher Que Escreveu a Bíblia - Moacyr Scliar. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/866-0801). 216 págs. R$ 21,00.




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