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LIVROS
Moacyr Scliar narra as aventuras de uma ardilosa mulher na corte de Salomão
A autora da Bíblia
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Há certa ambiguidade quando
se diz, de um livro, que é "divertidíssimo" e "se lê de uma sentada
só". Ao elogio se mistura a insinuação de que é descartável, de
que não precisa ser levado a sério.
Também não é o caso de dizermos que tudo precisa necessariamente ser levado a sério. O crítico
americano Harold Bloom, em seu
"O Livro de J" (Imago), lançou há
alguns anos a tese de que uma das
versões originais da Bíblia teria sido escrita por uma mulher, "figura destacada da
elite do rei Salomão". Devemos levar a sério essa idéia?
Moacyr Scliar
resolveu brincar com ela,
imaginando as
cômicas desventuras da
feiíssima, mal-amada e ardilosa autora do
texto sagrado.
Trata-se da filha mais velha de
um patriarca do deserto; por motivos puramente políticos, o rei
Salomão a escolhe para ser uma
de suas 700 mulheres. Não há cerimônia nupcial, nem a protagonista é chamada ao leito do rei.
Destaca-se, entretanto, por liderar revoltas no harém e principalmente por saber ler e escrever.
Acompanhamos com piedade,
surpresa e risos cada página desse
romance. A mulher que escreveu
a Bíblia é tão criativa em seus esforços para perder a virgindade
quanto nos que dedica à redação
da obra terrífica.
Duas coisas, a meu ver, tornam
tão divertido o livro "A Mulher
Que Escreveu a Bíblia". A primeira é que a imaginação do autor se
mostra ao mesmo tempo rica e
econômica; Scliar não é dos que,
sendo imaginativos, se comprazem com essa qualidade e entopem o leitor de acontecimentos
vertiginosos.
Cada episódio, aqui, surge e desaparece no momento certo. A
morte da velha concubina de Salomão, a lascívia dos escribas, a visita da rainha de Sabá, os sumiços
e as voltas do pastorzinho (primeira paixão
da protagonista), tudo obedece a um ritmo exato, ao
senso de "timing" que é
privilégio dos
bons humoristas.
Mas a principal graça do livro está na manipulação,
nunca forçada, do anacronismo.
Vivendo na corte do rei Salomão,
a narradora alterna a fraseologia
bíblica com as cafajestices e informalidades da linguagem contemporânea. Eis o momento em que
ela constata num espelho, pela
primeira vez, a própria feiúra:
"Por que não me arrancou Jeová
da mão aquele revelador, mas funesto objeto? Hein, Jeová? Por
que não tomaste alguma providência...?". Já casada, angustia-se
com o desinteresse de Salomão.
Uma companheira do harém a
tranquiliza: "Não esquenta, querida, o rei vai te chamar".
Palavrões aparecem a toda hora. A autora vai escrevendo a Bíblia: "A mulher sendo fabricada a
partir de uma costela de Adão. A
mulher dando ouvidos à serpente. A mulher provando do fruto
da Árvore do Bem e do Mal. Em
suma: a mulher cagando tudo".
Os desníveis de tom poderiam
se tornar cansativos; mas é tão sutil, tão alerta o ouvido de Scliar
para a frase feita e para os abusos
de linguagem, que o recurso sempre se renova para o leitor.
À primeira vista, o simples contraste entre o chulo e o sublime
bastaria para dar graça ao livro.
Uma outra ironia, entretanto, o
percorre. Toda a narrativa da heroína, apresentada como contemporânea de Salomão, vai-se revelando apócrifa também. Teria sido recolhida por um ex-professor
de história, hoje especializado em
terapia de vidas passadas, que é
quem apresenta o relato. Uma ex-paciente, muito feia, descobrira-se a reencarnação da autora da Bíblia e conta, assim, suas experiências na corte de Salomão.
Lido o romance, ficamos na dúvida se foi de fato a ex-paciente
quem escreveu o relato; pois o deboche, o tecnocratês, o tom insolente que ali aparecem são inconfundivelmente masculinos... o terapeuta de vidas passadas se torna
suspeito. Será que a autobiografia
da mulher que escreveu a Bíblia
foi escrita por um homem? Aqui,
Scliar parece fazer uma "desleitura" de Bloom, numa nova camada
de ironia.
O final do livro, desconcertante
e como engolindo-se a si mesmo,
recoloca a mulher -as mulheres- no anonimato que durante
tantos séculos fez parte de sua
condição. Puro divertimento, puro humorismo? Não estraga nada
pensar que não é bem assim.
A OBRA
A Mulher Que Escreveu a Bíblia - Moacyr Scliar. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/866-0801).
216 págs. R$ 21,00.
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