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Nação, região e confusão
DEMÉTRIO MAGNOLI
REGINA ARAUJO
especial para a Folha
A globalização potencializa as
tendências centrípetas da economia de mercado e representa uma
ameaça à unidade territorial dos
Estados nacionais. No Brasil, a
abertura da economia provoca a
emergência de tendências separatistas subterrâneas, enraizadas
nas trajetórias da formação da nacionalidade e da organização político-administrativa do território.
Essa hipótese interessante provavelmente convenceu o CNPq
(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
a financiar dois anos de pesquisas
do geógrafo Manuel Correia de
Andrade, autor do conhecido "A
Terra e o Homem no Nordeste",
de 1963, e coordenador, nos últimos anos, da equipe encarregada
pelo MEC (Ministério da Educação) de avaliar a qualidade dos livros escolares de geografia.
A obra pode ser lida como um
desafio aos critérios acadêmicos
de rigor conceitual. O desafiante
identifica colonialismo, imperialismo e globalização, que nada seriam senão rótulos diversos para
um mesmo fenômeno: "A política
de expansão dos povos ricos, dominadores dos territórios ocupados pelos povos fracos ou dominados". Essa base sólida o conduz
ao edifício geopolítico da globalização, estruturado em torno de
"países imperiais" que dominam
os "vassalos" por intermédio de
"países polarizadores super-regionais ou continentais", como o
Brasil, o México ou a África do
Sul. Nem o liberal Hobson, nem o
marxista Lênin: o que se oferece é
uma versão inteiramente nova da
teoria do imperialismo.
Ah, as vantagens da simplicidade: tudo se ordena em torno do
imperialismo! Em nome da abertura dos mercados, explica o autor, os Estados Unidos estimularam a formação da Associação
Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), em 1960, e do Pacto Andino, em 1969. Mas a Alalc
não foi um fruto maduro do entusiasmo pela teoria da dependência, dos economistas da Cepal
(Comissão Econômica para a
América Latina e Caribe), que
sustentava o modelo protecionista de substituição de importações? E o Pacto Andino, ramo do
mesmo galho, não estabeleceu
procedimentos de limitação dos
investimentos estrangeiros, a fim
de "andinizar" setores estratégicos das economias nacionais?
Enredado na teia da história, Correia de Andrade perde-se ainda
nas armadilhas da língua inglesa,
essa arma sutil do imperialismo, e
nos informa que a Bolívia tentou
arrendar o Acre para um "sindicato americano"! (Na verdade, o
Bolivian Syndicate, uma corporação capitalista).
Há que ser seletivo e ignorar as
passagens sobre o sucesso econômico da China, amparado pela
"disciplina oriental" de seus trabalhadores, ou a saga do Islã, "rico em petróleo" e "cansado da dominação ocidental", cuja reação é
sabotada pelas lutas entre xiitas e
sunitas, "que procuram homogeneizar a sua cultura com a dominação da rival". Há que procurar
o cerne da argumentação, que
passa sem dúvida pelo conceito
de nação.
Aí está: "Nas sociedades pré-capitalistas os grupos sociais e étnicos ocupavam determinadas porções do território, mas, com as
migrações hoje existentes e o intercâmbio comercial, povos e nações distintas se misturam, havendo áreas de dominação de um
determinado grupo e áreas em
que vários grupos se misturam".
Exemplos? Os irlandeses de Nova
York, os nordestinos de São Paulo, as "dezenas de nacionalidades" da Etiópia. Por todo o lado,
como numa dessas festas iluminadas por dispositivos estroboscópios, nação se confunde com
qualquer grupo cultural identificável.
Mas nação não é uma entidade
objetiva, proveniente das profundezas do passado. O nacionalista
francês Renan, no fim do século
19, definia nação como "um plebiscito cotidiano", revelando uma
compreensão do sentido político
do nacionalismo que Correia de
Andrade nem sequer vislumbra.
Hobsbawm, Ranger, Gellner e Benedict Anderson produziram
obras cruciais que desnudaram as
narrativas mitológicas do nacionalismo. Todas essas obras estão
ausentes do repertório bibliográfico de Correia de Andrade. Inspirado nos manuais amarelados pelo tempo, ele oferece uma narrativa da "formação" nacional brasileira que constitui um verdadeiro
caso de estudo de anacronismo.
Há até um mapa do "Brasil dividido em dois Estados", que transfere para o século 16 as atuais fronteiras políticas nacionais.
Na velha narrativa recauchutada pelo autor, o Brasil é uma entidade territorial metafísica, progressivamente ocupada pelos colonos. Há "quebras" episódicas
da unidade colonial, logo superadas pela marcha incessante da nacionalidade. A transferência da
família real, em 1808, assegura "a
manutenção da unidade brasileira", que é "consagrada" em 1822,
mas depois "contestada" "em
pontos diversos do território nacional". Imerso na naturalização
positivista da nação, Correia de
Andrade não suspeita que a unidade territorial brasileira é uma
construção histórica empreendida pelo Império, não uma herança colonial cuidadosamente preservada. É claro que também é incapaz de submeter à crítica histórica as narrativas históricas nacionais: se o fizesse, reconheceria na
elite intelectual do Império -em
figuras como Varnhagen, por
exemplo, engajadas na "invenção
da tradição" brasileira- a fonte
da mitologia que recauchuta.
O autor ignora a pesquisa histórica sobre a nação brasileira produzida nas últimas quatro décadas, inclusive clássicos como Fernando Novais, que já comemora
suas bodas de prata. Na parte final
da obra, torna-se evidente que
também não compreendeu a crítica, vasta e plural, da geografia
regional clássica. É assim que
Correia de Andrade submerge na
complexa discussão do autonomismo regional portando o arpão
enferrujado da "região-personagem", uma entidade objetiva inventada pelo positivismo.
O final da história é previsível: o
sujeito torna-se presa do seu objeto de estudo e, suprema humilhação, passa a funcionar como porta-voz dos discursos políticos regionalistas. Ouvindo-o, aprendemos que se formam "sentimentos
de hostilidade de uma região contra a outra", que há um ressentimento paulista pois, "segundo
São Paulo", o Estado não desfruta
do poder que mereceria e "os
paulistas (...) desejam um maior
controle político do país". Nesse
embalo, a "região" aparece como
protagonista da história, camuflando e potencializando as articulações concretas entre elites políticas estruturadas em níveis diferentes do aparelho de Estado.
Um subproduto da desordem
teórica é o preconceito. Na seção
dedicada ao "separatismo no Brasil meridional", uma viscosa argumentação associa a "idéia separatista latente" aos grupos populacionais originados da imigração, que são classificados como
etnias de variados graus de "pureza". A rigor, há um programa autoritário de "reconstrução" nacional embutido em tudo isso. Mas
evidenciá-lo seria fornecer sentido ao que não passa de um compêndio de absurdos teóricos expressos em português precário.
A OBRA
Raízes do Separatismo no Brasil - Manuel Correia de Andrade. Edusc/Unesp (praça da Sé,
108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/
11/ 232-7171). 198 págs. R$ 23,00.
Demétrio Magnoli é doutor em geografia
humana pela USP e autor de "O Corpo da Pátria" (Unesp/Moderna).
Regina Araujo é doutoranda em geografia
humana na USP e autora do "Guia de Geografia para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata do Instituto Rio Branco".
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