São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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Nação, região e confusão

DEMÉTRIO MAGNOLI
REGINA ARAUJO
especial para a Folha

A globalização potencializa as tendências centrípetas da economia de mercado e representa uma ameaça à unidade territorial dos Estados nacionais. No Brasil, a abertura da economia provoca a emergência de tendências separatistas subterrâneas, enraizadas nas trajetórias da formação da nacionalidade e da organização político-administrativa do território.
Essa hipótese interessante provavelmente convenceu o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) a financiar dois anos de pesquisas do geógrafo Manuel Correia de Andrade, autor do conhecido "A Terra e o Homem no Nordeste", de 1963, e coordenador, nos últimos anos, da equipe encarregada pelo MEC (Ministério da Educação) de avaliar a qualidade dos livros escolares de geografia.
A obra pode ser lida como um desafio aos critérios acadêmicos de rigor conceitual. O desafiante identifica colonialismo, imperialismo e globalização, que nada seriam senão rótulos diversos para um mesmo fenômeno: "A política de expansão dos povos ricos, dominadores dos territórios ocupados pelos povos fracos ou dominados". Essa base sólida o conduz ao edifício geopolítico da globalização, estruturado em torno de "países imperiais" que dominam os "vassalos" por intermédio de "países polarizadores super-regionais ou continentais", como o Brasil, o México ou a África do Sul. Nem o liberal Hobson, nem o marxista Lênin: o que se oferece é uma versão inteiramente nova da teoria do imperialismo.
Ah, as vantagens da simplicidade: tudo se ordena em torno do imperialismo! Em nome da abertura dos mercados, explica o autor, os Estados Unidos estimularam a formação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), em 1960, e do Pacto Andino, em 1969. Mas a Alalc não foi um fruto maduro do entusiasmo pela teoria da dependência, dos economistas da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), que sustentava o modelo protecionista de substituição de importações? E o Pacto Andino, ramo do mesmo galho, não estabeleceu procedimentos de limitação dos investimentos estrangeiros, a fim de "andinizar" setores estratégicos das economias nacionais? Enredado na teia da história, Correia de Andrade perde-se ainda nas armadilhas da língua inglesa, essa arma sutil do imperialismo, e nos informa que a Bolívia tentou arrendar o Acre para um "sindicato americano"! (Na verdade, o Bolivian Syndicate, uma corporação capitalista).
Há que ser seletivo e ignorar as passagens sobre o sucesso econômico da China, amparado pela "disciplina oriental" de seus trabalhadores, ou a saga do Islã, "rico em petróleo" e "cansado da dominação ocidental", cuja reação é sabotada pelas lutas entre xiitas e sunitas, "que procuram homogeneizar a sua cultura com a dominação da rival". Há que procurar o cerne da argumentação, que passa sem dúvida pelo conceito de nação.
Aí está: "Nas sociedades pré-capitalistas os grupos sociais e étnicos ocupavam determinadas porções do território, mas, com as migrações hoje existentes e o intercâmbio comercial, povos e nações distintas se misturam, havendo áreas de dominação de um determinado grupo e áreas em que vários grupos se misturam". Exemplos? Os irlandeses de Nova York, os nordestinos de São Paulo, as "dezenas de nacionalidades" da Etiópia. Por todo o lado, como numa dessas festas iluminadas por dispositivos estroboscópios, nação se confunde com qualquer grupo cultural identificável.
Mas nação não é uma entidade objetiva, proveniente das profundezas do passado. O nacionalista francês Renan, no fim do século 19, definia nação como "um plebiscito cotidiano", revelando uma compreensão do sentido político do nacionalismo que Correia de Andrade nem sequer vislumbra. Hobsbawm, Ranger, Gellner e Benedict Anderson produziram obras cruciais que desnudaram as narrativas mitológicas do nacionalismo. Todas essas obras estão ausentes do repertório bibliográfico de Correia de Andrade. Inspirado nos manuais amarelados pelo tempo, ele oferece uma narrativa da "formação" nacional brasileira que constitui um verdadeiro caso de estudo de anacronismo. Há até um mapa do "Brasil dividido em dois Estados", que transfere para o século 16 as atuais fronteiras políticas nacionais.
Na velha narrativa recauchutada pelo autor, o Brasil é uma entidade territorial metafísica, progressivamente ocupada pelos colonos. Há "quebras" episódicas da unidade colonial, logo superadas pela marcha incessante da nacionalidade. A transferência da família real, em 1808, assegura "a manutenção da unidade brasileira", que é "consagrada" em 1822, mas depois "contestada" "em pontos diversos do território nacional". Imerso na naturalização positivista da nação, Correia de Andrade não suspeita que a unidade territorial brasileira é uma construção histórica empreendida pelo Império, não uma herança colonial cuidadosamente preservada. É claro que também é incapaz de submeter à crítica histórica as narrativas históricas nacionais: se o fizesse, reconheceria na elite intelectual do Império -em figuras como Varnhagen, por exemplo, engajadas na "invenção da tradição" brasileira- a fonte da mitologia que recauchuta.
O autor ignora a pesquisa histórica sobre a nação brasileira produzida nas últimas quatro décadas, inclusive clássicos como Fernando Novais, que já comemora suas bodas de prata. Na parte final da obra, torna-se evidente que também não compreendeu a crítica, vasta e plural, da geografia regional clássica. É assim que Correia de Andrade submerge na complexa discussão do autonomismo regional portando o arpão enferrujado da "região-personagem", uma entidade objetiva inventada pelo positivismo.
O final da história é previsível: o sujeito torna-se presa do seu objeto de estudo e, suprema humilhação, passa a funcionar como porta-voz dos discursos políticos regionalistas. Ouvindo-o, aprendemos que se formam "sentimentos de hostilidade de uma região contra a outra", que há um ressentimento paulista pois, "segundo São Paulo", o Estado não desfruta do poder que mereceria e "os paulistas (...) desejam um maior controle político do país". Nesse embalo, a "região" aparece como protagonista da história, camuflando e potencializando as articulações concretas entre elites políticas estruturadas em níveis diferentes do aparelho de Estado.
Um subproduto da desordem teórica é o preconceito. Na seção dedicada ao "separatismo no Brasil meridional", uma viscosa argumentação associa a "idéia separatista latente" aos grupos populacionais originados da imigração, que são classificados como etnias de variados graus de "pureza". A rigor, há um programa autoritário de "reconstrução" nacional embutido em tudo isso. Mas evidenciá-lo seria fornecer sentido ao que não passa de um compêndio de absurdos teóricos expressos em português precário.



A OBRA
Raízes do Separatismo no Brasil - Manuel Correia de Andrade. Edusc/Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/ 11/ 232-7171). 198 págs. R$ 23,00.



Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela USP e autor de "O Corpo da Pátria" (Unesp/Moderna).

Regina Araujo é doutoranda em geografia humana na USP e autora do "Guia de Geografia para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata do Instituto Rio Branco".


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