São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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Erro de gramática

Um dos intelectuais mais influentes hoje, Chomsky critica a dimensão midiática que "o caso dos pirahãs" teve, após ser publicada no "New Yorker", e critica a "paranóia do indivíduo" na web

RODRIGO GARCIA LOPES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos últimos anos, sobretudo no pós-11 de Setembro, Noam Chomsky tem sido cada vez mais requisitado para palestras e conferências pelo mundo como um dos principais opositores da hegemonia americana.
Aos 78 anos, autor de mais de 40 livros, Chomsky é o principal dissidente de uma cultura dominada, como ele mesmo definiu, pela "manufatura do consentimento". Polêmico, é persona non grata na mídia americana, atraindo acusações de antiamericanismo e anti-semitismo, além de receber severas críticas da direita.
O ativismo político, no entanto, costuma desviar a atenção para o importante fato de que se trata não só de um dos grandes pensadores de nosso tempo mas de um renomado lingüista, cuja teoria da linguagem universal teve enormes influências nos estudos lingüísticos.
Recentemente, sua teoria foi envolvida em grande polêmica devido a estudos feitos por um ex-discípulo, Daniel Everett, e suas descobertas a partir da língua dos índios brasileiros pirahãs -que refutam a teoria chomskiana da linguagem humana universal [leia texto na outra pág.].
Numa tarde de neve em Cambridge, Chomsky nos recebeu em seu escritório no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), onde é professor há 52 anos. Nesta entrevista, ele fala da controvérsia recente, de literatura, internet, da situação no Iraque e da democracia americana.

 

FOLHA - O sr. acredita que a recente pesquisa sobre os pirahãs, feita por Daniel Everett, desautoriza sua teoria de uma linguagem universal? Por quê?
NOAM CHOMSKY
- Evidentemente, existem muitas confusões sobre a gramática universal. Em seu sentido moderno, o termo se refere à teoria correta da faculdade humana da linguagem, o que quer que isso venha a ser.
A gramática universal tem tanto status quanto a teoria correta do sistema visual humano, o que quer que isso venha a ser.
Não é "minha teoria". Nem se pode chamar de uma teoria. É um tópico, e há muitas propostas sobre qual deveria ser a teoria correta, constantemente se desenvolvendo, como no estudo do sistema visual ou de qualquer outra parte da ciência.
Não há uma controvérsia sensível sobre a existência da gramática universal, assim como não há sobre a teoria correta do sistema visual. Nos dois casos, como em toda a ciência, existem muitas questões sobre quais são as teorias corretas. Não há nada para ser "desautorizado".
Nós todos reconhecemos que existe uma faculdade humana para a linguagem -que existe alguma diferença biológica com relação à linguagem entre uma criança e um gato e um chimpanzé ou um pássaro canoro, por exemplo. Everett naturalmente concorda com isso.
Mas ele também afirma ter refutado a gramática universal. Isso significaria que ele refutou a crença de que existe uma teoria correta sobre as capacidades humanas, que ele concorda existirem. É difícil extrair algum sentido a partir dessa posição.
Tão logo essas confusões sejam esclarecidas, a única questão que restará é se as recentes afirmações de Everett sobre a língua pirahã estão corretas -a mesma questão que vem à tona em relação a qualquer outro trabalho em linguagem e cultura.
Há, de fato, um estudo cuidadoso feito por Andrew Nevins, David Pesetsky e Cilene Rodrigues argumentando detalhadamente que a língua pirahã, embora seja interessante (como são todas as línguas), não é menos incomum do que outras línguas conhecidas.
Se a língua pirahã acabou revelando características incomuns (assim como as de muitas línguas, como o inglês, por exemplo), então a gramática universal teria que ser modificada para acomodá-las, da mesma forma como ela está sendo constantemente modificada para dar conta de novas descobertas sobre outras línguas, inclusive outras que são estudadas de modo mais amplo.
A situação, novamente, é bem parecida com a que acontece no estudo do sistema visual ou outros sistemas orgânicos.
O que é incomum sobre a língua pirahã é a campanha de relações públicas que tem sido promovida em relação a ela, e a confusão que tem gerado.

FOLHA - Para chegar a sua teoria da gramática universal, o sr. fez pesquisa de campo, como Everett? Como o sr. chegou a suas conclusões sobre a existência de uma linguagem universal?
CHOMSKY
- Como todo mundo que se preocupa com a gramática universal, usei evidências de uma ampla variedade de línguas. Que outra alternativa poderia haver?
De fato, meu próprio departamento no MIT tem sido um dos grandes centros internacionais de pesquisa, inclusive em pesquisa de campo substancial, sobre uma ampla variedade de línguas do mundo -fatos esses bem conhecidos entre lingüistas profissionais.
Muitas pesquisas de campo têm sido feitas por excelentes lingüistas no Brasil e em muitas outras partes do mundo. Repito, parece haver uma confusão sobre esse assunto. Minhas conclusões sobre a existência de uma gramática universal -quer dizer, a existência de uma teoria correta da faculdade lingüística humana- são meros truísmos.
Se essa faculdade não existe, então a aquisição lingüística é um milagre. Se ela existe, então não há razão para duvidar de que exista uma teoria correta sobre sua natureza.

FOLHA - Em entrevistas, raramente o sr. fala de literatura. Uma das poucas observações é a de que "não é improvável que a literatura sempre vá render insights mais profundos para aquilo que é chamado de "a pessoa humana plena" do que qualquer método de investigação pode esperar conseguir". Poderia comentar isso?
CHOMSKY
- De um lado, esse comentário é sobre quão pouco se sabe sobre o ser humano, sob qualquer ponto de vista, como o científico. Os assuntos humanos são complexos demais para que a ciência seja capaz de dizer muito sobre eles. As ciências sociais são úteis, mas não podem penetrar muito fundo.
O outro lado da questão é que a literatura e as artes freqüentemente oferecem insights penetrantes sobre como é o ser humano, como ele se comporta, como são suas inter-relações, que tipo de problemas ele enfrenta e assim por diante.
Mas esses insights não provam nada, só nos revelam coisas que podemos entender intuitivamente tão logo as percebamos. É por isso que eles são freqüentemente tão pungentes e têm tanto efeito sobre nós.

FOLHA - O sr. é autor de uma frase famosa e que já rendeu muita discussão: "Idéias verdes incolores dormem furiosamente". Qual é sua opinião sobre poesia, enquanto lingüista?
CHOMSKY
- É claro que a poesia tem uma enorme importância, e é por isso que encontramos alguma forma de poesia em toda cultura e tradição que se conhecem: de tradições orais, que datam de milhares de anos, até a poesia moderna e experimental, a poesia se encontra em toda parte.
Ela pode ser feita de modo brilhante e efetivo. Esse verso, em particular, foi mal entendido, e foi só um dos muitos exemplos que dei: era um exemplo porque, simultaneamente, refutava algumas teorias dominantes sobre o que torna as frases gramaticais.
Uma teoria é a de W.V. Quine [1908-2000], talvez o filósofo anglo-americano mais influente da era moderna. Para ele uma frase seria gramatical se tivesse sentido.
Mas, veja, você tem que ter cuidado ao afirmar isso. Outros, como o novelista e filósofo Michael Frayn, interpretaram isso erroneamente.
Ele apontou de modo bastante correto que você não pode dar sentido para isso, mas para tudo pode se dar um sentido. Para qualquer série de palavras pode se atribuir um sentido.
Se você inverter a ordem da frase, "Furiosamente dormem verdes incolores idéias", você pode atribuir um sentido para ela também. Por esse critério, tudo seria gramatical.
Mas Quine está falando de sentido literal, e neste caso nenhuma das duas frases tem sentido literal, mas uma é gramatical, e a outra não.
De fato, a poesia joga com isso: um de seus principais procedimentos, discutido há 50 anos por William Empson [1906-84], em seu livro "Seven Types of Ambiguity" [Sete Tipos de Ambigüidade], é justamente tentar lutar contra as leis gramaticais, criar uma tal concisão de expressão que force o leitor a completar o sentido.

FOLHA - Quase 20 anos depois da publicação de "Manufacturing Consent" [manufatura do consentimento], o sr. acredita que o modelo de propaganda e de controle da mídia, desenhado pelo sr. e por Edward Herman, ainda está operante? Como o sr. vê o advento da internet e sua função de oposição neste novo contexto?
CHOMSKY
- Bem, na versão de 2002 nós atualizamos e ampliamos nossos exemplos. Não podíamos falar nada da internet porque simplesmente ela não existia em 1988.
A internet é um desenvolvimento interessante, o que é complicado. É útil para pesquisa, há muito a ganhar com o acesso fácil a um amplo espectro de informações que competem entre si, para realizar pesquisas que antes dariam muito trabalho. Não estamos mais tão O que interessa é o que o poder dos EUA quer alcançar. O maior objetivo é estabelecer como cliente um regime estável, com bases militares e corporações estrangeiras, sobretudo britânicas e americanas, explorando o petróleo.
Os EUA vão fazer o possível para prevenir que o Iraque se torne uma democracia soberana, mesmo que moderada, porque isso seria catastrófico!
Isso seria um passo para os EUA perderem o controle das principais fontes de recursos do mundo. Talvez eles sejam forçados a isso, mas será uma batalha.
Se o Iraque se tornar soberano e minimamente democrático, provavelmente terá a maioria xiita, que seria com certeza influente. Depois os xiitas iriam se mexer para melhorar as relações com o Irã, o que já estão fazendo.
Há uma grande população xiita do outro lado da fronteira, na Arábia Saudita, sendo amargamente reprimida.
O que ocorre é que a maior parte do petróleo fica em regiões dominadas pelos xiitas.
Imagine a probabilidade de uma ampla coalizão xiita controlando a maior parte do petróleo do mundo, independente dos EUA e provavelmente gravitando cada vez mais em direção a outros países do grupo asiático, e o Irã se tornando um membro também!
Se qualquer dessas coisas acontecer, os EUA virariam uma potência de segunda classe. Isso é propaganda sofisticada.

FOLHA - Apesar de sua crítica dura à política externa americana, o sr. constantemente repete que os EUA são a sociedade mais livre e democrática que existe. Como pode um país onde as eleições são literalmente "compradas", onde se observa um controle maciço da opinião pública por meio da manipulação da mídia e onde o governo, especialmente depois do 11 de Setembro, aumenta a vigilância sobre seus cidadãos e restringe as liberdades civis, ser chamado de uma democracia?
CHOMSKY
- Mesmo com tudo isso, por padrões comparativos e históricos, os EUA são o país mais livre do mundo.
Pegue o exemplo do Reino Unido: há uma vigilância extrema lá, bem maior do que nos EUA, com câmeras por toda parte, vendo tudo o que as pessoas fazem. Lá existem leis de calúnia e difamação que são severas infrações à liberdade de expressão, leis que seriam inconcebíveis nos EUA.
Outro exemplo: o governo britânico criou uma comissão para investigar se a [rede] BBC estava sendo crítica demais ao governo. O que não foi debatido foi o fato de a comissão existir, em primeiro lugar. Nos EUA seria impossível pensar numa comissão para decidir se a CBS está sendo crítica demais.
Por padrões comparativos, o governo americano tem poder limitado para coagir a liberdade de expressão. Bush está tentando fazer um país mais totalitário, e ele tem feito progressos, infelizmente, mas o governo ainda tem um poder limitado.
Mesmo a liberdade de expressão hoje está sob forte proteção desde os anos 1960, na esteira dos movimentos dos direitos civis. Mas você tem toda razão quando diz que as eleições não só são compradas, mas vazias, mais parecidas com comerciais de TV, e outros países estão seguindo esse modelo.
As eleições, cada vez mais, são uma questão de criar ilusões e imagens pela indústria da propaganda -como se [o político] fosse uma mercadoria- e manter as pessoas longe dos temas importantes, do que é relevante.
Pois a população se opõe aos dois partidos, e isso elimina muito do conteúdo das eleições.
Isso nos leva à questão do controle das idéias, que é sempre ruim, mas não é uma sala de tortura. É melhor enfrentar um comercial enganoso do que uma sala de tortura -lembremos do que aconteceu recentemente no Brasil.

RODRIGO GARCIA LOPES é autor de "Vozes e Visões - Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje" (Iluminuras) e professor do departamento de línguas românicas da Universidade da Carolina do Norte, em Chapell Hill.


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