São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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Universos paralelos

Caso pirahãs revive estruturalismo de Lévi-Strauss ao questionar padrão comum para as línguas

EDUARDO NAVARRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

As teorias do lingüista norte-americano Daniel Everett sobre a língua pirahã da Amazônia têm provocado muita celeuma nos últimos tempos. Isso por várias razões, mas principalmente porque suas idéias têm profundas implicações no campo da antropologia filosófica.
Isto é, Everett põe em questão um princípio do pensamento filosófico até a modernidade, a saber, a universalidade do homem. Suas teorias ressuscitam pressupostos abandonados por muitos lingüistas e se opõem a uma corrente revolucionária na lingüística, o gerativismo de Chomsky.
A lingüística chomskiana é desenvolvimento de uma das mais importantes formulações teóricas do século 20, que foi o estruturalismo.
Seu pai foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que, no campo da ciência da cultura, recusou a idéia de universalidade humana, princípio de toda a filosofia ocidental clássica, reafirmado por Descartes, por Kant e por todos os iluministas.
O estruturalismo rompe com o pensamento filosófico clássico e da modernidade, com o evolucionismo social e com a perspectiva historicista nas ciências do homem, afirmando existirem "os homens", e não o "Homem Universal".
Essa filosofia empolgou muitos espíritos desde meados do século 20, quando o humanismo sartriano entrava em seu ocaso.
O gerativismo de Noam Chomsky desvia-se dos pressupostos originais do estruturalismo ao afirmar a exigência da universalidade da gramática.

Sistema fechado
Com efeito, a lingüística estrutural, em seu desenvolvimento, havia posto de parte tal idéia, insistindo no caráter de sistema autônomo e fechado em si de cada língua. Chomsky, em, pleno século 20, marca um retorno aos objetivos da gramática geral francesa do século 17.
Em 1660, Lancelot e Arnauld publicam a "Gramática de Port Royal", a primeira tentativa compreensiva de apresentar uma teoria da gramática, com vista a incorporar as propriedades universais da linguagem humana. Chomsky apresentou, de fato, uma versão moderna e mais explícita da gramática de Port Royal.
Assim, retoma o velho projeto iluminista de estruturar uma gramática universal. Em "Lingüística Cartesiana", sua idéia central é de que os traços gerais da estrutura gramatical são comuns a todas as línguas e refletem certas propriedades fundamentais da mente.
O que as recentes pesquisas de Everett vêm fazer é mostrar que a cultura pirahã constrange a gramática dessa língua, apresentando problemas para a noção de uma gramática universal.
Tal constrangimento explica algumas características bem surpreendentes da gramática e cultura dos pirahãs.
Segundo a Sociedade Internacional de Lingüística, elas seriam a ausência de ficção e de mitos de origem, o sistema de parentesco mais rudimentar já documentado, a ausência de números e de qualquer conceito de contagem, a ausência de termos referentes a cores, a ausência de qualquer encaixamento gramatical, a ausência de "tempos relativos", o fato de serem monolíngües os pirahãs após mais de 200 anos de contato relativamente constante com brasileiros e com falantes da língua kawahiva, da família lingüística tupi-guarani, a ausência de qualquer memória individual ou coletiva que remonte a mais de duas gerações passadas, a ausência de desenhos e de outras artes plásticas -sendo a cultura material dos pirahãs uma das mais elementares já documentadas-, a ausência de qualquer termo de quantificação: por exemplo, "todos", "cada", "a maioria", "alguns" etc.
A língua pirahã desafia, segundo Everett, a aplicação simplista da teoria de Chomsky, o que dá novo alento às teorias estruturalistas, já com pouco prestígio nos melhores meios intelectuais.

Boas e Sapir
Com suas teorias sobre o pirahã, Everett se situa, assim, dentro das tradições da lingüística descritiva americana de Franz Boas, Edward Sapir, por um lado, e a tradição filosófica do pragmatismo americano representado por Peirce, James e Dewey.
Seus pressupostos, contudo, não são originais: muitos missionários gramáticos do passado, principalmente os da China da dinastia Ming, chegaram a pôr em dúvida a universalidade das categorias que Aristóteles elaborou por meio de uma análise lógica da língua grega.
Por outro lado, a inexistência de números acima de quatro, no tupi, já é conhecida pelos seus gramáticos desde o século 16.
A polêmica em torno de uma gramática universal está longe de acabar. Os pouquíssimos conhecedores não-indígenas da língua pirahã tornam difícil um debate em igualdade de condições em torno da questão suscitada por Everett.
Afirmar a justeza de suas idéias seria corroborar as palavras de Lévi-Strauss, para quem não estaríamos "em contato com um povo de cultura primitiva, mas com um povo de cultura paralela (...), uma outra humanidade, com uma outra ética, outra moral, outra visão de mundo".

EDUARDO DE ALMEIDA NAVARRO é professor de tupi e literatura colonial brasileira na USP. É autor de, entre outras obras, Método Moderno de Tupi Antigo" (ed. Global)


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