São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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No reino das trevas

De escrita fluente, "Goya", de Robert Hughes, mostra o pintor espanhol como um artista ilustrado no limiar da modernidade

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dez anos antes de "Goya", Hughes publicava "Barcelona", que um amigo catalão me deu dizendo ser o melhor livro escrito sobre o corpo e a alma de sua cidade, "embora" por um estrangeiro, raro elogio na boca de um barcelonês. "Barcelona" [Companhia das Letras] e "Goya" têm pontos em comum, a começar pela "advertência" do primeiro, válida para o segundo, de que não se trata de um livro "acadêmico", mas, apenas, de uma "introdução geral" ao tema... com mais de 500 páginas.
Tantas quantas em "Goya", que, como o anterior, não tem teses -sociológicas ou psicanalíticas- a demonstrar e é, como basta, o livro de um escritor misto de crítico de arte e historiador que sabe dar vida e alma ao que descreve.
Há desde logo um aspecto positivo em "Goya": Hughes não endossa a imagem simplista e ideologizada do artista como o adversário ilustrado de uma nobreza que ele ridicularizaria em seus retratos sem que os patronos se dessem conta.
Basta ver suas telas com olhos abertos para perceber o vazio dessa crença. Hughes mostra como nem os clientes de Goya eram idiotas nem jamais quis o artista contrariá-los, fossem eles os reis seus amigos, os invasores franceses ou o Fernando 7ø que lhe perturbou os anos finais.
Goya sabia onde estava o poder e de onde vinha o dinheiro e não os fustigava -o que não o impediu, nas séries de gravuras, de manifestar interesse pelos temas da vida e da cultura do povo.
Nem nelas, porém, foi Goya esquemático: os "Desastres" mostram sua igual repugnância diante dos horrores praticados pelos invasores franceses de 1808 e pelo populacho espanhol.
Goya foi de fato um ilustrado, mas isso significava que se erguia, antes de mais nada, contra a estupidez humana ali onde aparecesse, à direita e à esquerda e sem distinção de classe, como fica visível nos "Caprichos".
Posição difícil de manter quando há situações políticas adversas, uma Inquisição declinante, mas presente, e clientes a buscar.
Essa tensão entre caminhos conflitantes coloca Goya no limiar da modernidade como artista. Ao final do Oitocentos, os artistas estarão pintando para si mesmos, fazendo o que querem. Goya não tinha ainda essa opção: o mercado era reduzido, e ele vivia de encomendas.
Mas fez o que quis pelo menos nos "Caprichos" (impressos, mal vendidos e logo escondidos), nos "Desastres" (não impressos em sua vida), nos "Disparates" e nas pinturas negras, feitas nas paredes de sua quinta e apenas para seus olhos -e aqui ele foi de todo moderno.

Dalí melhor que Picasso
O "Goya" de Hughes não é um roteiro pronto para Hollywood: a vida pessoal do artista surge opaca, sem grandes lances ou paixões amorosas ilegais confirmadas. E, quando Goya não está em cena, o foco vai para o jogo político da época captado mais nas idéias dos personagens do que em suas vidas.
Cativantes são, em troca, as descrições das pinturas, tapeçarias e gravuras de Goya. Falar dos "Caprichos" e "Desastres" não é difícil: basta olhar com atenção e recorrer às legendas e anotações do artista.
Mas é na descrição da "Tauromaquia", tida às vezes, enorme equívoco, como menos importante (porque "sem conteúdo social"), que Hughes convence de todo. Sua reflexão é, aqui, fina e historicamente informada, assim como será, depois, audaciosa ao sugerir que a "Premonição da Guerra Civil", de Dalí, é melhor que "Guernica", de Picasso, como comentário à Guerra Civil Espanhola.
Há no livro, que surgiu de uma resenha da exposição "Goya in the Age of Enlightement [Goya na era do Iluminismo], no museu Metropolitan [1989, em Nova York], detalhes que não conferem com os de outras fontes.
E não convence o registro de que o interesse de Goya pelo sobrenatural seria incompreensível para o público contemporâneo. Uma linguagem às vezes pop demais, com imagens politicamente incorretas (a falta de queixo como sinal de mau caráter), incomodou John Updike na resenha que fez de "Goya" para a "New Yorker", em 2003.
Mas nada que prejudique uma narrativa atraente e densa.
E inspirada: Hughes entendeu que o motor de Goya era sua sensação de que o mundo é um lugar escuro (e perigoso). Há, claro, o Goya das tapeçarias de espírito leve e o Goya da maja desnuda (primeiros pêlos pubianos à vista na arte, talvez).
Mas a corda que permanece vibrando em sua obra, e no livro, é mesmo a de um tenebrismo vertiginoso. Com Goya não é a luz que se faz visível, mas a escuridão (John Milton). Mesmo nos retratos, por isso sempre incômodos. Voragem da arte e da vida em tempos incertos.
Na resenha da qual se originou o livro, Hughes vai rapidamente ao ponto: Goya nunca foi trivial, e o animou o desejo de conhecer e contar a verdade com enorme sentido de urgência -algo que, diz Hughes, a arte que veio depois perdeu. Opiniões cortantes são discutíveis -mas delas são feitos os textos que vale a pena ler.

TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo.


GOYA
Autor:
Robert Hughes
Tradução: Tuca Magalhães
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 85 (504 págs.)



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