São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997.



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A Torre do Grou Amarelo de Li Po a Mao Tse-tung

HAROLDO DE CAMPOS
especial para a Folha

A poesia clássica chinesa, escrita numa linguagem especialmente afeiçoada à arte do poema (um verdadeiro "idioleto poético"), toca de perto os ocidentais que nela se debruçam por sua concisão, pelo sentimento de inacabado, de sustentada surpresa, de aforismático vigor aliado à plasticidade visual da imagem. De Pound a Kenneth Rexroth; do pioneiro expressionista Klabund a Brecht, do português macauense Camilo Pessanha ao francês Claudel e ao mexicano Octavio Paz, importantes poetas modernos sentiram o seu impacto e seduziram-se por suas peculiaridades únicas.
Os problemas de tradução que propõe essa poesia, escrita em caracteres ideogrâmicos e organizada segundo rigorosos critérios métricos e prosódicos, numa língua-música dotada de quatro diferentes tonalidades, são, como se pode imaginar, desafiadores a um ponto extremo.
Como fazer para que essa poesia, procedente de uma linguagem isolante, monossilábica, de sintaxe posicional, resulte eficaz em idiomas analítico-discursivos, mais lógicos do que analógicos, mais hipotáticos do que paratáticos?
Num ensaio do início de fevereiro de 1969 (coligido em meu livro "A Arte no Horizonte do Provável"), propus, inspirando-me nas idéias de Fenollosa e Ezra Pound, mas recorrendo também a outras fontes (Yu-Kuang Chu, E.H. von Tscharner, R. Jakobson, W. Mc-Naughton), os seguintes critérios de trabalho: a) exame do texto original, com auxílio de versões intermediárias; b) estudo dos principais ideogramas, para desvelar neles, dentro das balizas semânticas lexicalizadas, o casulo metafórico, etimológico-visual, suscetível de aproveitamento poético; c) manter a concisão sintática e o característico paralelismo; d) tirar partido dos recursos tipográficos de espacialização na página, usando, inclusive, de modo sistemático, composição em caixa-baixa. As "transcriações" ou "reimaginações" que realizei ao longo dos anos estão, hoje, reunidas em "Escrito sobre Jade - 22 Poemas Clássicos Chineses" (1996, edição artesanal, bilíngue, do tipógrafo-poeta Guilherme Mansur, de Ouro Preto).
Volto agora a tratar do assunto, para apresentar algumas novas incursões tradutórias no campo, num arco temporal multissecular, que vai de Ts'ui Hao e Li Po, da dinastia T'ang (618-907), até Mao Tse-tung. O líder revolucionário chinês, como se sabe, praticava com mestria a arte poética da tradição clássica ("wenyan"), assim como dominava a escrita caligráfica, em que eram exímios os poetas chineses (entre os quais não faltavam poetas-pintores, como Wang Wei).
No ensaio "Le Langage Poétique Chinois" ("La Traversée des Signes", obra coletiva, Seuil, 1975), trabalho que antecipa, em parte, o conteúdo de seu livro "L'Ecriture Poétique Chinoise", o sinólogo e poeticista François Cheng compara um poema de Mao, escrito em 1956, "Retorno a Shao-shan", com outro de Tu Fu (712-770), "Evocação do Passado", ambos na forma "lü-shi" (dois quartetos, cada um compreendendo dois dísticos, uma oitava, portanto).
Seu propósito é fazer sentir a "notável continuidade" entre os procedimentos poéticos de ambos os autores (o paralelismo; o recurso a imagens que podem adquirir "uma grande força emblemática"). Mais adiante abordarei a controvérsia que suscita o paradoxo estético da poesia do "chairman" Mao, ou seja, o fato de o líder comunista ter escrito no estilo clássico, que ele dominava por sua formação cultural, e não na linguagem corrente ("baihua"), introduzida na poesia e na prosa com a revolução literária de 1917. Desejo, aqui, abordar mais especificamente o problema da tradução poética, tomando como exemplo poemas correlacionáveis da época T'ang e do poeta e chefe de Estado contemporâneo, convergência surpreendente, que atesta a pervivência de uma longa e vetusta tradição.
A Li Po (701-762), cognominado pelo poeta Ho Tche-tchang (659-744), seu contemporâneo, "o imortal exilado na Terra", dedicou Tu Fu, outro notável poeta do tempo, vários poemas. Estreitamente ligado, por afeto e devotada admiração, a seu amigo mais velho de uma década, com quem travara conhecimento pessoal na primavera do ano 741, Tu Fu exaltou-o em vida e deplorou-lhe a morte. Dentre esses poemas, um dos mais belos, escrito em 761 (à época, Li Po vivia exilado em Yunnan), é uma composição de 20 versos, de 5 caracteres cada, formando 5 quartetos. Um dístico rutilante (final da primeira quadra) define soberbamente a arte inigualável do amigo e mestre (o "eremita do lótus verde-azul", como Li Po a si mesmo se designava):
"ao toque do pincel de bambu
o vento e a chuva galopam
assim que terminas o poema
deuses e demônios choram".
Estes dois versos, entre outros, belíssimos, são justamente salientados pelos tradutores, a dupla Cheng Wing Fun e Hervé Collet, até no título da antologia que dedicam ao poeta (Tu Fu, "Dieux et Diables Pleurent", Moundarren, 1987). A tradução francesa diz: "ton pinceau se pose, provoque vent et pluie,/ ton poème achevé, dieux et diables pleurent".
Em minha "transcriação", desdobrada, a exemplo do original, em dois dísticos, procuro recuperar algo da concretude visual do chinês, reorquestrando sua música (impossível de transmitir como tal) com os recursos da língua portuguesa (combino versos de 8 e 7 sílabas; configuro harmonizações na vertical: tônicas de tOque e galOpam, de bambU e ChUva; rimas assonantes: galOpAm/chOrAm. Recupero no ideograma PEI (em francês, vertido por "pincel") o sema de "bambu" (trata-se de um pincel de escrever feito desse material) e, no caráter WU ("provocam"), a idéia de galopar, dicionarizada, já que esse ideograma complexo envolve o pictograma (desenho abreviado) de "cavalo". O "galopar" metafórico do temporal (vento e chuva) parece-me mais efetivo do que a idéia abstrata de "provocar" um fenômeno atmosférico. No dístico, assIM ressoa em terMINas e poEMa em dEMônios (o ideograma correspondente exibe uma curiosa etimologia visual: "pessoa agachada, usando máscara mortuária").
Relata a crônica biográfica que Li Po, visitando, certa vez, a legendária "Torre do Grou Amarelo", em Hupei, situada numa elevação a cavaleiro do Yang-tse, teve o desejo de escrever um poema, tocado pela beleza da paisagem. Deu, porém, com versos de outro autor, inscritos no muro. Era uma composição de Ts'ui Hao, seu contemporâneo. Li Po achou-a tão perfeita, que pôs de lado o pincel de bambu, exclamando que não seria capaz de superá-la.
O poema de Ts'ui Hao, "A Torre do Grou Amarelo", foi minuciosamente analisado e traduzido, literal e literariamente, por François Cheng. Motiva-o a crença tradicional de que um ancião (um velho sábio? um monge-santo taoísta? o filho de um imperador do século 6º antes de nossa era?) elevara-se ao céu a partir da Torre, montado num grou amarelo, para nunca mais voltar à Terra. Esse núcleo temático acabou convertendo-se num topos da poesia clássica. No poema, Ts'ui Hao utiliza três vezes a imagem evocativa do grou, como "símbolo da imortalidade perdida", em oposição à vacuidade do "mundo humano". O poema se organiza por meio de oposições em contraponto, paralelisticamente. Por exemplo, o grou, veículo da imortalidade, é substituído, no final do terceiro dístico (o poema tem quatro, está escrito na forma "lü-shih"), pela alusão ao periquito, pássaro "ornamental e imitador", símbolo do "mundo terreno", segundo F. Cheng. Em minha "transcriação" (comparei-a com as de F. Cheng, Paul Demiéville e Willer Byne, mas tive sempre em vista o original chinês), usei as técnicas que venho expondo e defendendo.
O primeiro ideograma do primeiro dístico (HSI), que transmite a idéia de "tempo passado", constitui-se da superposição de traços (indicando "amontoado de coisas", "acúmulo") sobre o pictograma de "sol" (JIH), ou seja: "inúmeros dias" ("muitos anos"). Resolvi explicitar a imagem solar, já que "sol" reaparece no início do quinto verso (no ideograma CH'ING, "ensolarado", "claro") e, por duas vezes (JIH MU, "sol-pôr"), no início do sétimo. Esta repetição expressiva (uma "rima" visual) serve para assinalar a oposição do mundo real, terreno, ao mundo ancestral, ao tema da imortalidade. A condição "terrestre" está registrada nas notações mutáveis da paisagem sazonal.
No último verso, que F. Cheng traduz por "homem coberto de tristeza", utilizei, de modo metonímico (e também metafórico), a palavra "coração", desencasulada do ideograma CH'OU ("outono sobre o coração", "tristeza", "melancolia", "amargura"). Mantive a tríplice repetição da imagem do grou (F. Cheng, que sublinha a importância desse efeito na construção do poema, não o reproduz). Procurei, também, conservar algo dos "qualificativos duplicados" do original. Assim: YU-YU ("longe longe"); LI-LI ("vívidos vivos", a nitidez do reflexo das árvores na água ensolarada); T'SI-T'SI ("tufos e tufos", a espessura e a disseminação da relva perfumada).
Mas Li Po, apesar de sua relutância, não conseguiu afastar de todo o desejo de celebrar a "Torre do Grou Amarelo". Aproveita, para fazê-lo, o ensejo que lhe dá a despedida do amigo poeta Meng Hao-jan, que viaja do oeste (do sítio onde fica a torre), para Kuang-ling, no leste. Consultei a tradução de Wai-lim Yip ("Chinese Poetry", 1976), que verte o poema literal e literariamente; a de Paul Demiéville, que o traduz e analisa como uma das "obras-primas da poesia em quadras do tipo impressionista, chamada em chinês versos interrompidos" ("a idéia se propaga ao infinito quando a palavra cessa").
Há também a versão de Claudel (discursiva, no estilo-versículo do poeta francês, refugiando à concisa sintaxe chinesa, mas ainda assim interessante) e a da dupla Wing Fu/Collet. Em oposição a "oeste" (HSI na primeira tonalidade/ "pássaro recolhido no ninho ao sol-pôr"), terceiro monossílabo do primeiro verso, extraí "leste" do caráter que significa "partir" ("deixar"). Segundo Yip, há posicionalmente, no contexto, a conotação "ir para leste". Não me vou deter aqui sobre os detalhes de orquestração. Quero, apenas, salientar que o final do último verso da quadra comporta três ideogramas:
"céu fim correr".
Ou seja: "Flowing into the sky" (W.-li yip); "qui coule à la rencontre du ciel" (Demiéville); "couler au bord du ciel" (Wing Fu/Collet). Em minha transcriação: "que deságua no céu", optei por dar visibilidade etimológica ao sema de "água", que ocorre duas vezes no original (nos radicais dos ideogramas de "rio" e de "correr"). Sintaticamente, o paralelismo "dissolvido no azul"/"(que) deságua no céu" é quase tão conciso como em chinês, a cada ideograma do original correspondendo uma palavra em português (descontada a partícula relativa "que"); teria sido possível usar o gerúndio ("desaguando"), mas preferi deixar mais evidente no plano sonoro o étimo "água".
Do poema de Li Po (designado por Rihaku, à maneira japonesa das anotações de Fenollosa), Ezra Pound fez uma de suas personalizadas recriações, uma das jóias de sua antologia "Cathay" (Londres, 1915), que "inventou a poesia chinesa" em inglês "para nosso tempo" (Eliot). Apesar das polêmicas que suscitou, "Cathay" consagrou-se na recepção literária mais alerta e sofisticada, tendo, inclusive, influenciado tradutores-sinólogos como Arthur Valey ("Chinese Poems", Londres, 1916). A coletânea foi minuciosa e compreensivelmente estudada por Wai-lim Yip ("Ezra Pound's Cathay", 1965). Yip mostra como EP operou em "Separation on the River Kiang" (nome que dá à sua transposição). A técnica de Pound é oposta à de Claudel: ele suprime palavras e se apura na concisão do resultado, enquanto o poeta francês alonga e expande o original. "The long King, reaching heaven" (O longo King, alcançando o céu") é a bela solução poundiana para o último verso do quarteto chinês.
Acompanhando a migração do topos, outro poema que tematiza a torre do grou amarelo é o de Wei K'uen (1646-1705), no qual há uma alusão crítico-irônica à relutância de Li Po em emular os versos de Ts'ui Hao. Wei K'uen, por seu lado, não hesita em fazê-lo, soando a "flauta de ferro" taoísta e embriagando-se de vinho. Baseei-me nos ideogramas do texto original, mas pude consultar também a versão de Demiéville.
Dando um salto para a atualidade, passo a enfocar o poema que sobre o tema escreveu Mao Tse-tung, após visitar em Hupei, na primavera de 1927, o celebrado local. Vali-me basicamente da tradução (literal e literária) de Wang Hui-Ming ("Ten Poems by Mao Tse-tung", 1975), mas consultei outras versões em inglês: a da equipe de tradutores da Foreign Language Press, de Pequim ("Mao Tsetung Poems", 1976) e a de Willis Barnstone ("The Poems of Mao Tse-tung", 1972).
Barnstone, poeta-ensaísta norte-americano, é mais conhecido como tradutor de poesia grega clássica e de língua espanhola, mas foi coadjuvado em sua incursão chinesa por um especialista, Ko Ching-po. Utilizei ainda, para confronto, a versão espanhola de José Palao, baseada sobretudo na do sinólogo italiano Girolamo Mancuso (Ediciones Jucar, 1972). O poema, no original chinês, está escrito no estilo "tzu" (versos rimados, destinados a ser cantados, segundo esquemas melódicos predeterminados), originário da dinastia T'ang, apresentando um elaborado padrão rítmico-tonal. Mao se vale das palavras "duplicadas" da poesia tradicional, começando a oitava, composta de versos de 7 sílabas-ideogramas, com a expressão MANG MANG, que verti por "vastas vastas"; o segundo verso, em paralelo, inicia-se com CH'EN CH'EN, que em português ficou "fundo profundo".
Dos tradutores consultados, Palao (Mancuso) e a equipe de Pequim procuraram manter a duplicação ("anchurosos anchurosos" e "profundo profundo"; "wide wide" e "dark dark"). O efeito vale por uma virtual hipérbole. A imagem da linha fundamente incisa, como num mapa geográfico ideal, que "alinhava" o país (China), unindo-o de norte a sul, alude à ferrovia Pequim-Hankou. Os "nove rios" são os afluentes do Yang-tse. Tartaruga e Serpente, duas elevações que flanqueiam o rio, são comparadas a "ferrolhos" (ideograma SO), pois mantêm seu curso sob proteção. No penúltimo verso, aparece uma nova "palavra duplicada" (T'AO T'AO, torrente; "bubbling water", Barnstone; "surgent torrent", equipe de Pequim). Procurei captar esse efeito, traduzindo-o compensatoriamente por uma rima interna, anagramática, entre VINHO e torVelINHO. No terceiro verso pude recuperar, por meio do sintagma "vagueando vaga", a repetição T'SANG T'SANG, que dá idéia de algo "velado em neblina" (W. Hui Ming).
Dos outros tradutores, só Palao (Mancuso) tenta manter a fórmula chinesa ("verdes verdes, confusos"). Disseminei pelo poema aliterações, harmonizações consonantes ou assonantes, rimas etimológicas ("afluentes fluem"; "linha... alinhava"), afim de compensar, de algum modo, a complexa estrutura prosódica do original. A rima etimológica "afluente/ fluir" corresponde ao par de ideogramas P'AI ("afluente", "rio tributário") e LIU ("fluir", "correr"), que partilham o mesmo radical pictogrâmico, SHUI ("filetes de água corrente"). Aliás, o sema de "água", de "fluência líquida", percorre visualmente todo o poema: está em MANG MANG, em CH'EN CH'EN, em CHIANG ("rio", último caráter do quarto verso), em YU ("viajar", terceiro do sexto), CHIU ("vinho", segundo do sétimo), T'AO T'AO (a "palavra duplicada" que conclui este mesmo verso) e, finalmente, no verso final, em C'HAO e LANG ("maré" e "onda").
O jogo de étimos, no nível verbal, visa, quanto possível, a compensar esse aspecto, no nível visual, característico do chinês. Aspecto a que o poeta, cabe supor, não seria insensível, já que Mao é também admirado como calígrafo. Seu estilo, segundo opina o tradutor W. Hui-Ming, que é também artista plástico e professor de arte, seria uma combinação expressiva de duas formas de escrita da tradição chinesa, recordando a arte caligráfica singular do poeta e pintor Cheng Hsieh (1693-1765).
Comparando os poemas de temática relacionada, as marcas diferenciais no que diz respeito ao de Mao, até onde posso percebê-las, estão, sobretudo, no nível semântico. O texto de Ts'ui Hao conclui por uma nota de amargura e pela nostalgia de uma pátria celestial, da vida sublimada dos imortais, embora nele perpasse o registro paisagístico da beleza transeunte da Terra. No poema de Li Po, predomina o sentimento de saudade pelo amigo que parte, a melancolia da separação, mas a nota celestial, o anelo de imortalidade e a aspiração ao infinito, o "estranhamento platônico" que Pound teria vislumbrado nele (Yip), estão presentes. No poema de Wei K'uen, chama a atenção a alusão irônica ao reconhecidamente incomparável Li Po, já que W. K'uen, em seu texto, propõe-se realizar o que o "imortal banido" receara tentar. A ousadia do poeta seiscentista em seu cometimento é, por assim dizer, explicada no penúltimo verso por um estado de embriaguez aliado ao embevecimento taoísta (a música da "flauta de ferro"). No último, acaba por se associar à nostalgia do céu ("Para voltar, pedirei aos celestes um grou amarelo"). Wei K'uen, que põe em dúvida a condição de "gênio imortal" em Li Po (Ts'ing Lien, nome da cidade natal do poeta), aspira, ele próprio, às prerrogativas da imortalidade...
Já Mao Tse-tung, o então jovem poeta-militante dos anos 20, sobrepõe ao "locus classicus" a nota de seu empenho ativista. Não há nostalgia do além, não há rapto místico em seu dístico terminal. O poeta faz um brinde ao ímpeto das águas tumultuadas do Yang-tse. No coração, ao invés de amargura vagamente outonal, a maré alta do impulso combativo, o encapelar-se da vocação rebelionária. W. Barnstone, vendo no penúltimo verso uma alusão ao poeta-calígrafo Su Tung-po (Su Shih, 1036-1101), ao poema em que este saúda o reflexo da lua no rio, recordando heróis mortos, toma a discutibilíssima decisão de explicitar este suposto nível conotativo em sua tradução. Na realidade, a alusão a Tung-po intervém, de maneira mais clara, em outro poema de Mao, "Neve", traduzido, aliás, de maneira bastante livre e lacunar por Brecht, com a omissão inexplicável de dois relevantes símiles (montes nevados vistos como "serpentes-dançarinas de prata"; altiplanos comparados a um "tropel de elefantes de cera").
Sou tentado a cotejar mais duas composições, não necessariamente vinculadas entre si, uma de Li Po ("No Templo do Mais Alto Cimo"), outra do "chairman" Mao, o poema "Escrito numa Foto da 'Gruta dos Imortais' Tirada em Lushan pelo Camarada Li Chin".
O poema de Li Po, traduzido literal e literariamente por F. Cheng (recorri também a outras fontes), é uma de suas celebradas e belíssimas quadras. Nele, o "eremita do lótus azul" descreve quase um ascenso aos céus, a partir do templo situado num pico elevado, que lhe permite como que apalpar as estrelas. O sentimento de proximidade dos imortais é tão intenso que o poeta T'ang receia falar em voz alta, para não perturbar a "gente celeste". Um poeta ocidental, como este tradutor, lê inevitavelmente um certo tom irônico no contraste entre o ousado tatear da mão erguida e a fala em voz baixa, imposta pelo temor reverencial. Assim, fechei minha tradução com uma fórmula de recomendação polida, corrente em nossa língua: "Favor não perturbar as pessoas do céu".
Quanto ao poema de Mao, também uma quadra, um "chueh-chu" de 28 caracteres, foi inspirado por um cenário de alturas montanhosas, de picos escarpados, pela contemplação de um sítio celebrado como a "Gruta dos Imortais" (Hsien-jen tung). O ideograma T'IEN, inclusive, que traduzi em sua acepção de "natureza", poderia ser vertido por "céu", como o fazem Palao (Mancuso), Barnstone e Philippe Sollers.
O grande problema, para efeito de interpretação e versão, é a linha final, cujos ideogramas significam: "sem limite" (WU-HSIEN), "vento" (FENG), "luz" (KUANG), "em" (locativo, TSAI), "perigo" (HSIEN), "pico elevado" (FENG). Traduzi-a por: "na desmesura luz-vento/ de inacessíveis alturas", apoiando-me fonicamente numa rima interna (inVENTO/ VENTO) e na rima interna entre "desmeSURA" e "altURAS". Havia pensado, também, em algo como "esplendor vento e luz/ do píncaro mais altivo", mas pareceu-me importante dar relevo à idéia de "inacessibilidade" ("periculosidade"). Neste verso, fica registrado de modo sintético, em pinceladas metonímicas, o excesso de limites, a grandiosidade do local, de difícil acesso, batido pelo vento e irradiado de luz. Abstratamente, há quem substitua aqui os ideogramas originais pela idéia de "cenário incomparável" associada à de "beleza natural" (W. Hui Min; Wong Man -não está clara a atribuição da tradução- "Ten More Poems of Mao Tse-Tung", East Horizon Press, Hong Kong, 1967).
A versão de Sollers, estampada no nº 40 (inverno de 1970) da revista "Tel Quel", então em seu momento febricitante de celebração maoísta (atualmente, dissolvida a revista, o volúvel escritor francês, inclinado à direita, vive uma fase de "catolicismo anárquico"), merece uma consideração à parte. A técnica de traduzir usada por Sollers (exposta brevemente no nº 38, verão de 69, de "Tel Quel") corresponde a critérios assemelháveis àqueles por mim defendidos no artigo programático de fevereiro de 1969. Somente, ao que me parece, falando especificamente da tradução deste poema, sobre o qual me detive minuciosamente, o escritor francês tende, antes, a um literalismo cru, sem maiores preocupações de orquestração prosódica, mais à maneira de Amy Lowell e Florence Ayscouth (rivais epigônicas de Ezra Pound) do que ao modo poundiano de "Cathay" e das "Odes" confucianas.
Assim, a linha final do quarteto é vertida da seguinte forma (composição em minúsculas, sem nenhuma tentativa de espacialização gráfica): "sans bornes vent et lumières à pic" ("sem limites vento e luzes a pique"), equivalentemente à tradução literal de W. Hui-Ming: "limitless wind light at dancer pic".
O sema de "perigo", a sensação resultante da "dificuldade de acesso", extraída do ideograma HSIEN (algo que procurei expressar por meio do adjetivo "inalcançáveis", qualificativo de "escarpas"), perde-se -é omitida- na versão francesa. No entanto, esse matiz semântico parece-me relevante, decisivo mesmo, para estabelecer o "tonus" temático do poema contemporâneo. Em vez do sentimento de sublimação taoísta, de expatriação do céu, atenuado por uma nota de familiaridade para com a "gente celeste" no imaginário do poema escrito por Li Po, Mao, que compôs seu poema em 1961, deixa-se, é verdade, impressionar pela beleza natural do sítio legendário, engendrado, gerado, "inventado" pela Natureza (ideograma SHENG).
Este sentido de "força natural" acaba se sobrepondo ao de céu, referência que parece, no contexto, recuar para o bastidor do termo. O poeta, porém, ao contrário de Li Po, não imagina elevar-se, num rapto de êxtase, à "Gruta dos Imortais". Na desmesura de luz e vento da paisagem montanhosa ao pôr-do-sol, o poeta chefe de Estado, já com 68 anos, todo-poderoso, cultuado, mas talvez reminiscente das árduas jornadas da Grande Marcha, registra, em especial, a periculosidade dos píncaros inóspitos, aparentemente inacessíveis, infranqueáveis. Está como que a ponderar, com determinação obsessiva de estratego, partidário da "revolução permanente", sobre a maneira de vencer a dificuldade com o esforço humano, de tornar possível o impossível.
Estas observações não significam que o empreendimento tradutório do ex-líder "telquelista", inovativo em língua francesa, deixe de oferecer soluções de interesse (como, aliás, opina Mancuso, ao relatar a polêmica travada entre Sollers e a sinologia tradicional, representada por Guy Brossolet).
Alberto Moravia, escrevendo o prefácio à antologia de Mancuso, entende que Mao se havia utilizado, para seus fins, de formas e temas da poesia clássica chinesa, introduzindo neles, com "espírito iconoclástico", sentimentos e coisas do presente, de nosso tempo. Assim explica o paradoxo da escolha de um estilo letrado, de molde tradicional, por um poeta-estadista que, expressamente, não desejava ver sua maneira de fazer poesia adotada como modelo pelos jovens, e que relutou em publicar suas produções por temer sua influência negativa nesses poetas jovens, acoroçoando-os, antes, a escrever no estilo "moderno", em língua corrente e numa linha de realismo proletário (carta de 1957 à redação da revista "Shigan"; discurso sobre literatura e arte em Yenan, 1942).
No que diz respeito à avaliação estética dos poemas do "Chairman" da nova China, W. Barnstone pensa que "o papel histórico de Mao não nos deve deixar cegos à força originária e à beleza de sua poesia". Prefaciando suas traduções, Barnstone compara Mao ao poeta norte-americano Robert Frost, estimado cultor da simplicidade, entre moderno e tradicionalista. Mancuso prefere suspender o julgamento, argumentando que qualquer valoração crítica só poderia ser feita sobre o original, já que no caso extremo de uma poesia como a chinesa, "qualquer juízo de valor, emitido com base na tradução, fará referência mais ao tradutor do que ao autor". Mesmo para o conhecedor ocidental da língua original, parece-lhe difícil encontrar cânones objetivos com os quais avaliar essas composições. Resolve, pois, limitar-se à análise textual dos poemas, num esforço de melhor penetrá-los e compreendê-los, para além da barreira idiomática.
A sinóloga Michelle Loi ("La Traversée des Signes", 1975) contextualiza a opção de Mao dentro do quadro da reação de alguns poetas do modernismo chinês, como Wen Yiduo (Wen I-to) e Guo Moruo, contra a poesia em língua usual ("baihua"), que estes, num primeiro momento, haviam defendido e praticado como um gesto de libertação e renovação diante do enfeudamento beletrista. O retorno a uma "poesia mais estruturada" (M. Loi), "capaz de dançar livremente mesmo em seus grilhões" (Wen Yiduo), antagonizava, a partir de sentimentos nacionalistas, a influência ocidentalizante e supostamente alienante sobre a poesia escrita em "baihua", contagiada por modelos de origem anglo-americana, francesa e alemã, em verso livre, sobretudo.
Mas a questão comporta, ainda, uma outra perspectiva. Para um poeta ocidental, que aborda essa poesia "neoclássica", impregnada de motivações contemporâneas militantes, do poeta e estadista Mao (há uma longa tradição de poetas em posição politicamente eminente na história da China), o paradoxo não é facilmente decidível, nem precisa sê-lo. Um poeta-tradutor (é o meu caso), amador de poesia chinesa e autodidata em seu estudo (sem formação especializada no campo e sem a mínima pretensão sinológica), mas, por outro lado, assessorado por uma boa bibliografia e, sobretudo, portador de um tirocínio de formas e de artesanato poético de quase meio século de ofício no português do Brasil, não tem, como primeiro intento, julgar esteticamente, em termos conclusivos, essa produção em língua chinesa, nem pode entreter essa pretensão.
Anima-o, sim, o propósito de recriar esses poemas do modo mais efetivo possível, convocando para isso os recursos da poesia moderna. No caso da poesia "clássica" da tradição chinesa, o próprio termo "clássico" pode ser despistador para a recepção ocidental, pois, face à natureza ideogramática da língua original, mesmo poemas multisseculares parecem irradiar modernidade. Não à toa Pound renovou a poesia de língua inglesa com as traduções de "Cathay" e com o método ideogrâmico de compor, haurido em Fenollosa. O "imagismo" de sua primeira fase, aliás, foi reexportado à China, em 1917, por Hu Shi (1891-1962), ex-estudante da Universidade de Columbia, admirador dos "A Few Don'ts" de Ezra Pound e pioneiro do modernismo chinês. Eugene Eoyang, sinólogo e professor de literatura nos EUA, estudioso dos problemas de tradução poética ("The Transparent Eye", 1992), chegou a escrever (revista "Alphabet", 1971, Ontário, Canadá): "O chinês é, de todas as línguas modernas, a mais 'concreta'. O que o 'poeta concreto' contemporâneo empenha-se em realizar é precisamente o que muitos poetas chineses tradicionais efetuaram naturalmente por séculos" ("Concrete Poetry and the Concretism of Chinese").
A prática do verso por um poeta-calígrafo contemporâneo chinês, que manipula com reconhecida mestria os recursos da poesia clássica de sua língua, oferece um outro aspecto de interesse para este tradutor. Sugere uma comparação, em certa medida pertinente, com aquelas composições singularíssimas de poetas brasileiros que reiventaram um português medieval para a transposição de poemas alheios (Guilherme de Almeida, com a sua extraordinária "Balada das Damas dos Tempos Idos", versão do célebre original de François Villon) ou para a lavra de poemas de autoria própria (Manuel Bandeira, com o seu "Cantar de Amor", à maneira do rei-trovador d. Diniz, séc. 13, que, por seu turno, se inspirava nos provençais).
Tudo isso não será, afinal, uma fantasia especulativa, uma "fata morgana", o efeito de "miragem" da operação tradutória? Talvez. Mas os resultados da operação, como tais, não são ilusórios. Estão aí. Para serem avaliados qualitativamente pela outra ponta do percurso translativo: pelo termo de chegada, como realizações poéticas em língua portuguesa. O êxito dessas transposições será o melhor serviço que a tradução poderá prestar, numa língua ocidental, ao original em idioma chinês do qual procede.
Quanto à coexistência, numa única e mesma pessoa, do poeta letrado, que compôs seus poemas dentro da grande tradição clássica chinesa, com o ativista político Mao, que passou de líder guerrilheiro nimbado da aura de heroicidade a dirigente todo-poderoso de seu país, dogmático e implacável para com seus adversários, especialmente em relação aos intelectuais que dele divergiam, eis outro paradoxo sobre o qual refletir. À luz, agora, dos subsídios de historiadores e biógrafos que se vêm ocupando, empenhadamente, em decifrar-lhe postumamente a complexa personalidade, já com o benefício do distanciamento crítico. Mas isto daria matéria para uma outra abordagem, escapando do marco circunscrito do presente estudo.


Nota: Para a leitura dos ideogramas, vali-me dos seguintes dicionários: Mathew's, "Chinese-English Dictionary", Harvard, 1963; Wieger, "Chinese Characters", Dover, 1965; Henshall, "A Guide to Remembering Japanese Characters", Tóquio, 1990; Vaccari, "Pictorial Chinese-Japanese Characters", Tóquio, 1954.


Haroldo de Campos é poeta, ensaísta e tradutor de poesia; publicou, entre outros, "Escrito sobre Jade - 22 Poemas Clássicos Chineses (edição bilíngue, Tipografia Fundo de Ouro Preto).



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