São Paulo, domingo, 29 de junho de 2008

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Guerra fria e íntima

"Prezado Sr. Stálin" traça um panorama do mundo pós-1945 ao revelar cartas trocadas entre o soviético e Roosevelt, dos EUA

ANGELO SEGRILLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao que parece, não foi apenas na União Soviética que alguns documentos secretos da Segunda Guerra só vieram à tona depois do fim da Guerra Fria.
Ao fazer pesquisa na Biblioteca Franklin D. Roosevelt, depositária do acervo de documentos pessoais do ex-presidente americano, a jornalista Susan Butler encontrou várias cartas não divulgadas anteriormente na edição soviética da correspondência oficial entre Stálin, Roosevelt/Truman e Churchill/Attlee (publicada em inglês em 1965 pela editora Capricorn, de Nova York).
É um livro fascinante, pois se pode acompanhar, narradas diretamente pelos líderes mundiais daquele momento, as negociações que levaram à vitória sobre o fascismo e o estabelecimento de um pós-guerra regido pela ONU. Para a leitura se tornar atraente e inteligível para o público geral, a autora contextualizou cada mensagem com um texto explicativo prévio, tornando a narrativa agradável e fluida.
O livro não traz nenhuma grande reviravolta em termos de debates históricos sobre o período. Mas a força da obra está em mostrar os bastidores (inclusive pessoais) das decisões-chave para a vitória na guerra e o esboço do mundo pós-guerra.
Por exemplo, uma das razões para que a grande conferência do conflito fosse realizada em Ialta pode ter sido bem mais prosaica do que a propalada vitória diplomática dos russos para terem a reunião em seu território. Na verdade, Stálin odiava viajar de avião. A única vez em que voou foi para participar da conferência de Teerã, em 1943. Não só tinha "fear of flying" [medo de voar] como temia acidentes premeditados.
Um outro exemplo diz respeito à relação pessoal entre Roosevelt e Churchill.
A correspondência mostra claramente que Roosevelt não era tão próximo de Churchill quanto este deixou entrever em seus escritos. A desconfiança do ranço colonial do primeiro-ministro inglês freqüentemente unia Roosevelt e Stálin em sua visão de como deveria ser o pós-guerra nos países do Terceiro Mundo.
Há outros episódios importantes cujos bastidores a correspondência ajuda a iluminar.
Assim que a União Soviética é invadida de maneira fulminante pela Alemanha, em junho de 1941, Roosevelt, contra a opinião de considerável parte do Departamento de Estado e da Defesa, oferece uma grande ajuda ao país em termos de equipamentos e víveres no programa de "lend-lease".
Com essa previdente ação, o líder americano não só ganhou a sincera gratidão de Stálin naquele momento delicadíssimo como assegurou que a União Soviética não cairia: ao continuar lutando, a União Soviética mantinha ocupadas, longe da Europa Ocidental, muitas tropas alemãs.

Tom amistoso
Isso nos conduz a outro episódio-chave. Os contínuos adiamentos (provocados especialmente por Churchill) do desembarque na Normandia, que abriria uma grande frente de guerra na Europa Ocidental e diminuiria a pressão dos alemães na frente oriental contra os soviéticos.
Ela foi adiada de 1942 para 1943 e, depois, para 1944. Isso fez com que Stálin desconfiasse que Inglaterra e EUA queriam que Alemanha e União Soviética se digladiassem e se enfraquecessem. É fascinante acompanhar a troca de argumentos entre os líderes nesse período.
Das 300 mensagens trocadas entre Roosevelt e Stálin, o tom da maioria é bastante amistoso, incluindo votos de saúde e congratulações por vitórias.
De forma curiosa, um dos pontos que geraram mais mensagens tensas foi um assunto aparentemente menor: a questão do governo da Polônia no pós-guerra. EUA e Inglaterra apoiavam o governo polonês no exílio em Londres e a União Soviética, o chamado Comitê de Lublin.
Na verdade, havia uma problemática maior por trás disso.
Os acordos de Ialta tinham, na prática, acertado uma divisão de esferas de influência com a Europa Ocidental, para o lado dos EUA, e a Europa Oriental (de onde os nazistas foram expulsos pelos soviéticos), para a URSS? Ou poderiam os ocidentais, por exemplo, influenciar os eventos dentro da Polônia?
Na correspondência, Roosevelt acaba desistindo de insistir nesse ponto e aceita a influência soviética na Europa Oriental como um dos requisitos para Stálin aceitar sua visão de uma Organização das Nações Unidas em que os EUA, a União Soviética, o Reino Unido e a China seriam os grandes guardiães da paz.
O livro termina em um anticlímax. Roosevelt morre subitamente, e seu sucessor, Truman, em vez de prosseguir a aproximação com a União Soviética, desvia-se para a política de confrontação da Guerra Fria. A pergunta que certamente fica na cabeça dos leitores ao final da obra é inescapável: teria o pós-guerra sido diferente caso Roosevelt prosseguisse como presidente?


ANGELO SEGRILLO é professor de história na USP e autor de "O Declínio da URSS" (Record) e "O Fim da URSS e a Nova Rússia" (Vozes).

PREZADO SR. STÁLIN
Autora: Susan Butler
Tradução: Sérgio Lopes
Editora: Zahar (tel. 0/xx/21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 59 (424 págs.)


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