São Paulo, domingo, 29 de julho de 2007

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As duas margens da separação

Hemisférios contraditórios são temas das narrativas "Na Ausência dos Homens" e "Excluso"

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na Ausência dos Homens", romance de Philippe Besson, e "Excluso", diário de Maurício Abud, são como as margens de um rio.
As duas narrativas têm muito pouco em comum, mas é esse pouco -o amor entre iguais e a divisão do mundo em dois hemisférios contraditórios- que as mantém lado a lado, feito paralelas rumo ao infinito. Duas margens, duas realidades literárias.
"Tenho 16 anos. Nasci com o século." Ao longo do romance de Besson, essa afirmação se repetirá regularmente. Seu narrador, Vincent, entende que a juventude é o melhor passaporte para dois mundos muito diferentes: o de Marcel e o de Arthur.
Estamos em 1916, em Paris, e a Primeira Guerra é o evento do momento, capaz de potencializar todo o amor individual e todo o ódio coletivo.
Continuando a duplicação da realidade, na margem de Besson também há duas margens. Marcel tem 45 anos. Nessa época, ele já é o respeitado e asmático romancista cuja obra mudará o curso da literatura mundial.
Arthur tem 22 anos e é o filho da governanta da família de Vincent. Também é o soldado torturado pela experiência da guerra, obcecado pela morte no campo de batalha.
Um segredo os une, e a iniciação amorosa e sexual de Vincent acontece nessas duas margens: nos salões luxuosos da belle époque francesa e nas trincheiras da guerra.
Apesar de às vezes sentir "certa dificuldade para fazer a travessia de uma margem a outra", esse arranjo é, para o jovem protagonista, extraordinário em todos os sentidos.
O romance de Besson, composto de páginas de caderno e cartas trocadas entre Vincent e os amantes, flui com delicadeza.
A prosa é elegante e sossegada. Muito diferente da prosa da outra margem, de Maurício Abud, cujo relato é tão envolvente quanto o do romancista francês, mas por razões muito diferentes.
Em 1996, Abud ficou seis meses confinado na prisão de Saint Gilles, em Bruxelas, acusado de tráfico de drogas. "Excluso", livro que surgiu do diário mantido pelo autor durante o tempo de prisão, é o relato detalhado dessa temporada no inferno.

Farpas e arestas
A prosa é sedutora, mas cheia de farpas e arestas. Nela, o bem e o mal, a pureza e a sujeira se equilibram. Apesar da delicada sensibilidade do narrador, os cheiros, os sabores e as sensações agradáveis provocam a mesma repugnância despertada pelas situações asquerosas.
A principal característica da literatura carcerária -de Dostoiévski, Jean Genet, Graciliano Ramos e muitos outros- é mesmo a legitimação de outra moral, por meio da subversão de certos valores. É a legitimação da moral dos excluídos, sejam eles gays, soropositivos, dissidentes políticos, assassinos ou traficantes.
Se comparadas com as brasileiras, as prisões belgas até que são confortáveis e civilizadas.
Enquanto aguarda a extradição para o Brasil, Abud escreve. Sua rixa não é exatamente com o cárcere, é com o mundo contemporâneo. É com a doença do corpo e o isolamento do espírito.
O que o mantém íntegro entre estrangeiros reais e simbólicos é a confissão e a denúncia: "Assassinar. É o que tenho que fazer nestes escritos: cuspir, vomitar, pôr para fora o indigerível mundo do cárcere".

Desleixo
Na confissão-denúncia de Abud, o desleixo com a norma culta é o mais exasperante. Parágrafo após parágrafo, a sucessão de escorregadelas acaba provocando certo desconforto.
O descaso até mesmo com as regras básicas da gramática -as vírgulas fora de lugar, os erros de acentuação, concordância e regência- são tapinhas regulares na nuca do leitor, que se esforça para não perder a concentração. Por que tamanha tolerância por parte do revisor?
A única justificativa para a desleixada linguagem literária é a própria indigência da experiência narrada. Como se aquela estivesse contaminada por esta.
Para manter a força e a espontaneidade do relato, o texto impresso e encadernado seria a reprodução fiel do manuscrito de Saint Gilles.
Cada erro gramatical correspondendo a uma cicatriz moral e emocional ganha no cativeiro. Como se a linguagem falhada, muito revoltada, recusasse a organizadora vacina da norma culta. Essa é a única justificativa.
Muito frágil, pouco convincente, mas a única.

NELSON DE OLIVEIRA é escritor e professor da Unip, autor de "Algum Lugar em Parte Alguma" (ed. Record).


NA AUSÊNCIA DOS HOMENS
Autor:
Philippe Besson
Tradução: Claudia Richer
Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/ 3525-2000)
Quanto: R$ 28,50 (136 págs.)


EXCLUSO
Autor:
Maurício Abud
Editora: Iluminuras (tel. 0/xx/11/ 3031-6161)
Quanto: R$ 44 (224 págs.)


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