São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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FINA ESTAMPA

EM "O SÉCULO DA CANÇÃO", LUIZ TATIT EXPLICA POR QUE O "SOM" BRASILEIRO FAZ SUCESSO NO EXTERIOR E DEFENDE QUE A MÚSICA ESTRANGEIRA É PARTE INTEGRANTE DA MPB

Alexandre Mathias
free-lance para a Folha

Letra e música em equilíbrio perfeito, completando-se à medida que harmonia, ritmo e melodia se encontram com métrica, sentido e significado -a canção brasileira parece ser o melhor denominador comum para chegar a um consenso sobre identidade cultural do país. O formato é o ponto de partida para a obra teórica de Luiz Tatit, que publica seu quarto livro sobre o assunto, "O Século da Canção" (ed. Ateliê, 251 págs., R$ 32,00). Desta vez, ele radiografa a canção brasileira a partir de suas aglutinações culturais, que resume em dois movimentos centrais: a bossa nova e o tropicalismo.
No primeiro, o autor escreve sobre um processo de "decantação" das tradições nacionais, em que os excessos da música brasileira até a metade do século 20 foram podados num processo de "triagem" deflagrado por João Gilberto -que sintetizou ao máximo a diversidade cultural brasileira em movimentos mínimos, seja no tocar do violão, na escolha do repertório, no posicionamento da voz e outras características. Já o tropicalismo seria o movimento de volta, em que o Brasil volta a misturar-se com o resto do mundo depois de sentir-se essencialmente brasileiro graças à bossa nova. Nesse processo, o movimento defendido por Gilberto Gil e Caetano Veloso serviu como agente inclusivo de toda manifestação cultural que era percebida à parte da brasilidade epitomizada por João Gilberto.
No decorrer do livro, por meio de esquemas de análise de métrica e melodia, Tatit -que, além de professor titular do departamento de lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ainda é integrante do grupo Rumo (que faz questão de incluir no próprio livro)- discorre sobre as influências do mercado, da cultura norte-americana e da tecnologia na música popular brasileira, como explica na entrevista a seguir.
 
O sr. diz que "a música estrangeira é parte integrante da brasileira". Pode-se isolar uma música brasileira "pura"?
O que se deduz dessa constatação é que é "impossível" isolar uma música brasileira pura. Acho que ninguém teria interesse em localizar o que é puramente brasileiro na nossa sonoridade, nem mesmo um historiador da matéria. Talvez apenas em uma fase pré-descobrimento do país pudéssemos falar em música autêntica dos brasilíndios. Sei que a formulação "a música estrangeira é parte integrante da brasileira" soa um pouco paradoxal do ponto de vista lógico. Mas não do ângulo antropológico, musical ou mesmo histórico. O nascimento de nossa sonoridade já pressupõe mistura do som negro com o europeu e um pouco também de práticas indígenas -afinal, eram principalmente os representantes de outras comunidades que estavam forjando nossa música. Essa propensão a assimilar influências nunca mais deixou de existir desde então.

A influência norte-americana cresce à medida que o século 20 vai transcorrendo, começando com as referências de jazz na bossa nova e chegando a influenciar mercadologicamente a música do Brasil. Tornamo-nos dependentes da música dos EUA?
Nos anos 1990, a música brasileira de grande consumo simplesmente expulsou a música norte-americana das paradas de sucesso nacional e assumiu uma liderança de vendas que se mantém até hoje. Portanto, estamos longe de nos tornarmos dependentes da música dos EUA. Quanto às influências do jazz na bossa nova, elas foram recíprocas: a bossa nova também mexeu com a música dos EUA. Numa primeira fase, entretanto, o jazz dos acordes dissonantes e dos cromatismos sugeriu um modelo excelente de evolução melódica para o canto, na medida em que dispensava grandes oscilações no campo de tessitura. Os acordes se encarregavam de dar novos sentidos às linhas melódicas, mesmo que essas fossem repetitivas.
Mas a solução brasileira não passa pelo recurso mais típico do jazz: o improviso. A bossa nova não valoriza a improvisação. Seu foco é a canção -melodia e letra.
A influência de estratégias mercadológicas só chegou com a jovem guarda. A partir daí, alguns gêneros de canção passaram a ser considerados como qualquer produto comercial que tem que motivar o comprador. Ou seja, a canção popular moderna -a partir dos anos 1930- já nasceu voltada para o consumo, mas as estratégias de mercado apareceram nos anos 1960.
Ao mesmo tempo que cria parâmetros de padronização nem sempre benéficos para a composição de canções, a ideologia do consumo estabelece uma espécie de acordo com o gosto do público que não pode ser simplesmente desprezado pelos autores.

A mercantilização da música brasileira trouxe algum benefício a ela? O quanto ela está associada à entrada de novas tecnologias no cenário nacional?
Não se pode pensar a canção brasileira fora do mercado ou de condições tecnológicas propícias. Portanto, não se trata apenas de benefício proporcionado por esses dois itens, mas sim da própria existência dessa modalidade de expressão. Se temos essa canção contemporânea dinâmica, é porque existe a tecnologia e o consumo.

Gostaria que o sr. falasse um pouco mais sobre a influência da tecnologia na criação da canção brasileira.
Antes dos aparelhos de gravação não havia essa canção que hoje conhecemos. Todos sabem que a canção tem uma origem iletrada. Nossos melhores compositores, com raríssimas exceções, nunca tiveram formação musical nem literária. Apoiavam-se na própria expressão oral. Antes do registro, essa expressão se perdia no esquecimento. Então, nem podemos conceber canções sem tecnologia, a não ser manifestações puramente folclóricas. Desde os primórdios, portanto, a canção se apóia na tecnologia e acompanha o seu desenvolvimento. Cada vez menos se perdem idéias musicais.
Aquilo que o autor acaba de inventar hoje em dia já é imediatamente gravado em seu microcomputador, com um esboço de arranjo instrumental ao qual, posteriormente, se agregam efeitos e assim por diante, até chegar à arte-final do CD, do DVD etc. É quase inconcebível canção sem tecnologia.

A canção é um formato típico do século 20, não apenas no Brasil. Estaria a música eletrônica -não no sentido apenas comercial, mas estético, de uma música não-linear, sem começo, meio e fim etc.- demolindo o conceito de canção?
Difícil. Só se a era das línguas naturais (português, inglês, francês, alemão, japonês...) também se extinguisse. A canção é e sempre será uma extensão da fala, que também possui melodia e letra. Enquanto os povos falarem, esses mesmos povos criarão suas canções como conseqüência imediata. Certamente haverá lugar para a música eletrônica pura ou mesmo para a sua utilização nos arranjos das canções, o que me parece aliás ser uma grande conquista. Mas o desenvolvimento da música eletrônica não ameaça em nada a sobrevivência da canção. São departamentos totalmente distintos.

Como as novas tecnologias -troca de arquivos on-line, ausência de um suporte físico, recombinação estrutural na pós-produção (o remix)- mexem com a música brasileira atual?
Cada vez mais haverá músicos especialistas nessas fases pós-relação melodia/letra e poderão até alterar essa relação. O limite da ação tecnológica é o gosto do público. Enquanto essas intervenções avivarem esse gosto, serão bem-vindas. Caso viajem demais, o próprio consumo se encarrega de reajustar sua influência.

Por que, nas prateleiras de lojas de discos pelo mundo, a música brasileira ganhou um destaque maior entre outras músicas do mundo?
O Brasil fez da canção popular o grande centro de sua produção estética. É comum vermos músicos de formação erudita, literatos e até artistas plásticos migrando para o mundo da canção. É aqui que as coisas de fato acontecem em termos de difusão e repercussão. Surgiram, assim, ao lado de artistas comprometidos apenas com o consumo, criadores requintados e até experimentais que operam numa faixa bem menos ambiciosa em termos de mercado, mas que, de todo modo, supera em muito o campo relativamente restrito de suas atividades de origem. Isso tudo contribuiu para que a canção brasileira atingisse um estágio de refinamento estético incomum, sem deixar de se dirigir ao grande público. O som brasileiro, decididamente, não é provinciano -e nem para principiantes. Acho que neste momento esse aspecto já ressoa lá fora.

Qual a principal contribuição da música brasileira para a cultura mundial?
O leque das dicções. Música brasileira quer dizer muitas coisas diferentes. Talvez esteja nisso o seu maior trunfo.


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