São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A MPB DO B

OBRA MULTIDISCIPLINAR, "DECANTANDO A REPÚBLICA" PROPÕE QUE A MÚSICA MOLDOU UM IMAGINÁRIO NACIONAL QUE APONTA OS IMPASSES DO BRASIL

João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha

Não é tarefa fácil resenhar este projeto, pois é disto que se trata: um projeto, e não apenas três livros reunidos pela temática comum. Na "Apresentação", reproduzida em cada um dos volumes de "Decantando a República", os organizadores esclarecem suas hipóteses centrais. De um lado, desejam "celebrar a singularidade do cancionista brasileiro como sujeito de uma interpretação vertical do país" (I, 20). De outro, observam que "a história da canção popular brasileira acabou sempre inevitavelmente entrelaçada à história de nossa República" (I, 20-21). Noutras palavras, parte-se do princípio de que a música popular brasileira desempenhou papel de grande importância, ainda não devidamente reconhecido, na criação de um imaginário capaz de pensar os limites e as possibilidades do país republicano. Ora, considerando-se "a persistência e a amplitude social do analfabetismo e da presença de uma população em larga medida semi-escolarizada" (I, 18), não é de surpreender o destaque assumido por formas audiovisuais de comunicação na origem de nossa "comunidade imaginada", retomando a célebre expressão de Benedict Anderson. Aliás, [o escritor] Manuel Antonio de Almeida compreendeu a potência da música e, em sentido amplo, da festa na organização dos primórdios da vida urbana no Brasil. Não é verdade que ambas pontuam e muitas vezes estimulam as aventuras do protagonista de seu romance? Recorde-se, a propósito, o capítulo 20 do livro 1 das "Memórias de um Sargento de Milícias", no qual Leonardo e Luisinha apreciam os fogos de artifício da celebração do "Império": "Fazia gosto passear entre eles, e ouvir aqui a anedota que contava um conviva de bom gosto, ali a modinha cantada naquele tom apaixonadamente poético que faz uma das nossas raras originalidades (...)". Portanto, nos anos 50 do século 19, a música urbana já aparecia como traço original da sociedade que se formava "no tempo do rei". É como se os organizadores de "Decantando a República" aprofundassem a aguda nota de Manuel Antonio de Almeida por meio de esforço interdisciplinar. Em sua descrição, "um grupo de 31 renomados filósofos, historiadores, sociólogos, cientistas políticos, psicanalistas, antropólogos e críticos literários, vindos de diferentes pontos do país", dedicou-se a discutir de que modo "os principais temas do republicanismo contemporâneo vêm sendo ou não expressos pela canção popular moderna brasileira" (I, 19). O único "especialista" do grupo é Carlos Sandroni, compositor e professor de etnomusicologia. Retornarei a esse ponto. De imediato, porém, apresento um panorama das contribuições dos três volumes, pois, naturalmente, não será possível discutir os 26 ensaios neles enfeixados. O primeiro volume, "Outras Conversas sobre os Jeitos da Canção", reúne alguns dos ensaios mais diretamente relacionados à pergunta sobre a especificidade da música popular brasileira.

Identificação política
Carlos Sandroni abre o volume com "Adeus à MPB", ensaio no qual propõe a arqueologia do conceito, assim como sua desconstrução: "Quem pensa em música popular brasileira tem em mente alguma concepção de "povo brasileiro", tanto quanto quem adere a ideais republicanos" (I, 25). Num primeiro momento, até os anos de 1940, música popular remetia a folclore. Tratava-se da música do "povo", do meio rural, do Brasil "profundo", por assim dizer. Porém, com o advento do rádio e da indústria fonográfica, a música produzida nos grandes centros começou a tornar-se cada vez mais "popular". Ou seja, apreciada por um número sempre crescente de ouvintes. Assim, a partir dos anos 1960, a expressão "música popular brasileira" passou "a designar inequivocamente as músicas urbanas, veiculadas pelo rádio e pelos discos" (I, 29). No final da década de 1960, transformou-se numa sigla: MPB, "quase uma senha de identificação político-cultural" (I, 29), um símbolo de resistência contra a ditadura militar. Hoje em dia, o panorama tornou-se mais complexo. De um lado, a variedade de sons e ritmos disponíveis no mercado pulverizou o sentido coeso da idéia de MPB. De outro, a oposição simples entre música folclórica e urbana foi superada pela fusão de estilos, característica da música contemporânea. Eis a razão do provocador título de seu ensaio, "Adeus à MPB". Maria Alice Rezende de Carvalho e Luiz Werneck Vianna exploram a capacidade que tem a música de criar mediações entre o Estado, a elite e as classes populares. Em "O Samba, a Opinião e Outras Bossas... na Construção do Brasil Republicano", Carvalho associa de forma sugestiva a ascensão do samba nos anos 1930 e da marchinha nos anos 1940 com os meios de comunicação da época; respectivamente, rádio e cinema. A televisão exerceria influência semelhante nos anos 1960, com os famosos festivais da canção. A difusão assegurada pelos novos meios audiovisuais foi decisiva para a penetração da música popular no imaginário brasileiro. Daí seu acorde final: "A música popular (...) constitui-se no mais bem-sucedido discurso sobre a "res publica" entre nós" (I, 65). Em "Os "Simples" e as Classes Cultas na MPB", Vianna dialoga com essa perspectiva, ressaltando sua capacidade de estabelecer pontes de comunicação que atravessariam as diferentes classes, "acrescentando uma intervenção reflexiva em favor da afirmação da experiência do brasileiro" (I, 78).

"Boa para pensar"
O segundo volume, "Retrato em Branco e Preto da Nação Brasileira", como o próprio título esclarece, concentra os artigos preocupados em decifrar as imagens de país propostas pelos compositores. Tanto nos ensaios já citados quanto nesse segundo volume, a MPB é como os mitos para Claude Lévi-Strauss -vale dizer, ela é "boa para pensar". No caso, para o brasileiro pensar o país, pensando-se ao mesmo tempo.
Em "O Brasil, de Noel a Gabriel", José Murilo de Carvalho identifica com agudeza quatro movimentos na auto-imagem do país por meio da música popular, indo da representação do malandro carioca como o brasileiro por definição, nos anos 1930, até o momento atual, em que as canções "que falam de Brasil revelam grande agressividade e uma rejeição da própria idéia de pátria" (II, 38). Em "Que País É Este?", Eduardo Jardim descreve a mesma situação: "A geração de novos músicos, surgida nos anos de 1980, em atividade nos 1990, é de críticos perplexos, raivosos e radicais de toda conceituação otimista do locus nacional" (I, 55). Sem apego à cor local, a aquarela do Brasil viu-se reduzida ao preto-e-branco. Heloisa Starling, em "Uma República "Pelas Tabelas'", relaciona Chico e Sérgio Buarque de Holanda, por meio de penetrante estudo da canção "Pelas Tabelas". Ora, em meio ao comício das "Diretas Já", o narrador surge como a inesperada metonímia do célebre conceito de "Raízes do Brasil", pois, em meio à comoção cívica, não sabe senão pensar em suas pequenas mazelas. "O homem cordial (...) vive sempre pelas tabelas, sempre instável, sempre na iminência de precipitar toda a sociedade no fundo emotivo de suas paixões intensas" (II, 113). O universo público é somente pretexto para a expansão do mundo privado. Aliás, como sabe muito bem o "malandro-deputado-federal" de outra canção. Por fim, a coleção se encerra com "A Cidade Não Mora Mais em Mim". Se os dois primeiros volumes tinham como tema dominante a reconstrução histórica, neste último os textos privilegiam a cena contemporânea. Em "Malandro? Qual Malandro?", Wanderley Guilherme dos Santos oferece uma reflexão surpreendente. Em seu estudo de canções sobre a figura do malandro, descobriu sua "alienação e falsa consciência" (III, 26). Em geral, ele está fugindo da polícia, escondendo-se de credores, perdendo o pouco dinheiro que tem para "malandros" de grosso calibre. Nesse caso, as alternativas são limitadas: "Ele achaca o zé-mané", isto é, alguém do povo.

Acorde dissonante
O contraponto da figura do malandro é identificado nos rappers, que produzem "uma coisa inteiramente distinta, sem nenhuma falsa consciência, sem nenhuma alienação" (III, 30). E aqui, mais uma vez, não há imagem possível da pátria. Após citar a longa letra de "Soldado do Morro", de MV Bill, Santos termina tocando um acorde dissonante (mas que precisamos ouvir): "Eu não sei que país está por trás de tudo isso, eu não sei interpretar esse país" (III, 36). Em seus textos, Luiz Eduardo Soares e Maria Rita Kehl oferecem, se não uma resposta, pelo menos um conjunto de perguntas incontornáveis, às voltas com a formação da subjetividade diante de severas restrições materiais. Na fórmula cortante de MV Bill: "Não sei se é pior virar bandido/ Ou se matar por um salário mínimo". Soares, em "Uma Questão de Atitude", analisa a contribuição do grupo O Rappa, propondo hipóteses tão ousadas quanto originais. Ele sugere que a agressividade tanto do rapper quanto dos meninos que se associam ao tráfico tem a finalidade de "constituir uma interlocução pelo avesso" (III, 55). Ora, se tornamos os garotos pobres invisíveis, fantasmas que habitam as esquinas e os sinais de trânsito, sua resposta é fazer da criminalidade uma arma simbólica "de afirmação e de recuperação de presença e visibilidade" (III, 56). Percebe-se então o alcance do trabalho de grupos como O Rappa. De um lado, eles transformam a violência autodestrutiva em força criativa, mobilizadora. De outro, fornecem um novo modelo para as relações eróticas e amorosas nas comunidades. Em lugar da idealização do traficante, o rapper surge como "um modelo alternativo, em todo o Brasil, para o desejo das meninas" (III, 65). Desse modo, MV Bill corta fundo com sua lâmina: a saída não é matar o trabalhador, tampouco se matar trabalhando, mas transformar a precariedade e o desafio em letra de música, como se fosse uma denúncia. Em "Da Lama ao Caos", Kehl estuda o trabalho do grupo Nação Zumbi, abordando a "relação entre os espaços público e privado na música popular brasileira" (III, 141). Nesse ensaio, é como se a autora sugerisse que o tempo de Macabéa, protagonista de "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector, teria sido muito distinto se ela pudesse ouvir músicas como as do grupo Nação Zumbi, em lugar de somente escutar a Rádio Relógio. Provavelmente, um tempo que se afirmaria "na forma da "philia", da amizade. A idéia forte aqui é que o espaço que o cantor considera como seu não é o isolamento do lar, e sim o ponto de encontro com os amigos" (III, 154). Amigos que conferem visibilidade, numa rede de afetos e espelhos que rompe com a técnica de invisibilização do pobre, do excluído; técnica essa dominada com maestria pelas elites brasileiras. A simples descrição dos três volumes evidencia a relevância do projeto. "Decantando a República" propõe um instrumental metodológico para o estudo sistemático da música popular brasileira como novo objeto a ser incorporado pelas ciências humanas, revelando um olhar alternativo sobre a obsessão recorrente do pensamento social brasileiro com o problema da identidade nacional. Claro, esse tipo de abordagem não é inédito. Já em 1937, Mário de Andrade organizara o Primeiro Congresso Nacional de Língua Cantada, com preocupações aparentadas. Porém a interdisciplinaridade explorada agora por esses três volumes amplia em muito sua escala. "Decantando a República" esclarece que a música popular expressa um crescente desencanto com a "res publica". Mas não se trata de fenômeno puramente negativo, já que seu avesso é constituído pela crítica radical dos impasses da formação social brasileira. Uma vez reconhecidos o alcance e a importância do projeto, é hora de apontar o limite da iniciativa. Dos 26 artigos que compõem os três volumes, apenas os de Carlos Sandroni e Santuza Naves apresentam alguma preocupação com o fator propriamente musical. Os demais autores, embora reconheçam sua importância, concentram-se exclusivamente no que julgam constituir o caráter "documental" da música popular brasileira.

Passo adiante
Nesse contexto, a MPB importa menos por ser música do que por fornecer um "testemunho" da história republicana. Um testemunho entre tantos outros possíveis, diga-se de passagem. Tal abordagem, por isso, corre o risco de tornar o objeto um simples pretexto para reflexões alheias ao que realmente interessaria -compreender em relação à MPB, ou seja, o que a torna singularmente relevante do ponto de vista musical.
Tal ressalva não pretende incorrer na usual deselegância narcísica do crítico que nunca entende que o livro do outro foi... escrito por outra pessoa. Logo, e muito naturalmente, obedece a ritmos alheios a suas preferências. O que se trata é de colaborar para que o projeto dê um passo adiante -dois pra lá e dois pra cá, como no bolero. No caso, deve-se incorporar à análise das canções o necessário cuidado com sua parte musical.
Portanto, num provável bis, os organizadores de "Decantando a República" deveriam ampliar a roda dos convidados, incluindo músicos e pesquisadores da área. Afinal, em sua forma mais fecunda, o debate acadêmico não deveria recordar uma roda de músicos?

A obra
"Decantando a República - Inventário Histórico e Político da Canção Popular Moderna Brasileira" (R$ 24,00 cada um dos três volumes) está saindo pelas editoras Fundação Perseu Abramo e Nova Fronteira (tel. 0/ xx/21/2131-1146), com organização de Berenice Cavalcante, Heloisa Starling e José Eisenberg.


João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).


Texto Anterior: Fina estampa
Próximo Texto: Remix de autor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.