São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2004

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REMIX DE AUTOR

CRIADOR DA MÚSICA CONCRETA NOS ANOS 40, PIERRE HENRY ABRIU AS PORTAS PARA A APROPRIAÇÃO DE TRECHOS SONOROS PELO HIP HOP E TECNO

por Hermano Vianna

Vi um concerto de Pierre Henry, pela primeira vez, em Madri, no ano passado. Já tinha experiência com apresentações de música eletroacústica ou concreta. Estava preparado para o que ia acontecer. A única diferença das vezes passadas era o público: como a música eletrônica pop -que reverencia os pioneiros eruditos- se transformou em fenômeno de massa, havia uma garotada moderninha junto dos grupos de fãs setuagenários, aqueles que têm a mesma idade do compositor que estava se apresentando. Era uma cerimônia de gala: fazia anos que Pierre Henry não tocava na Espanha. Tocar é a expressão exata, mas, ao mesmo tempo, força de expressão. O ritual é preciso, desenvolvido há mais de 50 anos. Não há palco. O músico fica no meio da platéia controlando a mesa de mixagem. Caixas de som são colocadas ao redor da sala. No início da apresentação, uma senhora, que parecia uma querida tia-avó, surgiu do camarim com um CD, introduziu o disco delicadamente no CD player e apertou o "play". Simples como isso. Pierre Henry estava ao lado (por que não é ele mesmo que põe o CD para tocar?) e passou o concerto inteiro a mexer nos botões da mesa fazendo o som dançar para lá e para cá. Nesse tipo de concerto musical, o áudio sempre se movimenta no espaço, como um móbile de Calder, como um edifício de arquitetura líqüida. E o ouvinte pode circular dentro da música como num penetrável de Hélio Oiticica. Um dos maiores responsáveis pelo aperfeiçoamento dessa tecnologia da escuta foi justamente Pierre Henry.

O inferno da música
Nascido em 1927, aluno de Nadia Boulanger e Olivier Messiaen, Pierre Henry começou tocando percussão e depois piano (incluindo piano preparado). Desde cedo começou também a fazer trilha sonora para o cinema. Foi trabalhando numa trilha no estúdio de uma rádio que conheceu o engenheiro de telecomunicações Pierre Schaeffer, com quem veio a inventar a música concreta. Em 1948, a dupla lançou o "Étude sur les Chemins de Fer" [Estudo sobre as Estradas de Ferro], o primeiro dos "concerts de bruits" (concertos de barulhos). Logo depois Schaeffer e Henry fundaram o seminal Groupes de Recherche en Musique Concrète (GRMC) [Grupos de Pesquisa de Música Concreta] e apresentaram ao público o "Étude Pathétique" [Estudo Patético], que era uma colagem feita com o auxílio de toca-discos, com Henry abaixando e levantando a agulha, trocando os discos (discos de música balinesa, japonesa, discos de jazz -será que pagavam direito autoral?), e o técnico Jacques Poullin gravando o resultado em outro disco, pois não havia ainda gravadores de fita magnética no mercado (que possibilitariam, como veio a possibilitar, a edição dos sons com tesoura e cola). Foi o primeiro remix registrado. Pierre Henry seria o primeiro dos DJs-criadores-de-música, que hoje formam multidões? Schaeffer não sabia se gostava do que tinha criado, se a música concreta era realmente música ou o inferno da música, tanto que parou de compor poucos anos depois. Muitos músicos, mesmo Boulez e Stockhausen, não aprovaram o resultado. Mas Pierre Henry, com o apoio de outros artistas não-músicos que freqüentavam seu estúdio (entre eles, Dubuffet, Michaux, Buñuel, Resnais, Vian e o antropólogo Lévi-Strauss), tinha a certeza de estar no bom caminho, no caminho do bom futuro, um futuro que é bem parecido com o nosso presente. Para a música concreta, não é a linguagem musical -com suas harmonias ou desarmonias, suas afinações e desafinações- que importa. A estrela da composição é o som, tomado na sua concretude. Schaeffer preferia usar sons preexistentes, tentando estabelecer seus sistemas de classificação, demonstrando suas leis, imaginando um dia poder chegar a um tratado geral de todos os sons possíveis (chegou a escrever o "Tratado de Objetos Musicais"). Um dos motivos para a briga com Schaeffer foi o fato de Henry resistir a classificar, dentro das racionalíssimas regras científicas imaginadas por seu parceiro engenheiro, os sons que começou a criar. Pierre Henry seguiu carreira "solo", e para isso foi muito ajudado por Maurice Béjart, que fez coreografias -de grande sucesso nos anos 50 e 60- para várias de suas composições. Sua trajetória, até hoje, revela rigor e coerência impressionantes, mas também a incorporação de vários elementos da música pop, como em seu trabalho mais conhecido, a "Missa para o Tempo Presente", um hit surpreendente na França de 1968, que recentemente ganhou remixes de nomes importantes da eletrônica das pistas de dança atuais, como Fatboy Slim, Coldcut e Dimitri from Paris.

Adorável bagunça
Não contente em autorizar os remixes, não tendo nenhum medo da contaminação pela "banalização" do pop, Pierre Henry foi além: remixou os remixes, transformando-os em uma nova composição, a "Fantasia Missa para o Tempo Presente" (no disco que a lançou, chamado apenas "01.3", o título dessa faixa vem acompanhado -como é praxe na música clássica- da data de sua composição, 1967/ 1997!). O compositor concreto sabia que a parte mais substancial do trabalho realmente criativo da música contemporânea é feito com a reciclagem, reapropriação e recontextualização de outras músicas. Por que não levar isso tudo a um outro nível? O remix do remix do remix... E assim até o infinito. Afinal, a música concreta, bem mais que a música eletroacústica dos estúdios de Colônia (herdeira da seriedade adorniana e serialista), é grande responsável por essa adorável bagunça que tomou conta de nossos ouvidos e por técnicas de gravação em que a hibridização e a impureza são senhoras.
Foi o hip hop, desde o final dos anos 70, que primeiro introduziu as estratégias radicais de colagem musical, criadas inicialmente no ambiente erudito do GRMC, para massas cada vez maiores. Primeiro com os "scratchs", arranhões sobre os discos dos outros (ousadia suprema, muitas vezes entendida como desrespeito, mas que na verdade sempre foi uma homenagem). Em seguida, produtores de hip hop como Arthur Baker, Hank Shocklee, Marley Marl e Prince Paul desbravaram o uso do sampler como instrumento para piratear pedaços de outras músicas e qualquer outro tipo de sons concretos, transportando-os para faixas de novos discos.
Músicos tradicionais não gostaram da novidade, achando, com alguma razão, que iam perder emprego ou que deviam ser pagos pelos "piratas" a peso de ouro, quando não desprezavam abertamente o que o hip hop fazia como não-música. Hank Shocklee, produtor dos melhores e mais influentes discos do Public Enemy, partiu para o contra-ataque: "Não gostamos de músicos, não respeitamos os músicos... Nós entendemos melhor a música, temos um melhor conceito de música, aonde ela está indo, o que ela pode fazer".
Outros nomes do hip hop tentaram chegar a acordos com os músicos sampleados, buscando um "marco regulatório" para suas apropriações. Por exemplo: no disco "Hello Nasty", dos Beastie Boys, aparece o crédito para um advogado cujo trabalho foi apenas conseguir os direitos das músicas alheias cujos pedaços foram usados nas composições da banda. Alguns desses pedaços são classificados como "samples", outros como "excertos" e outros, ainda, como "elementos". Nunca entendi a diferença legal entre os três tipos de apropriação. Mas o fato é que tal classificação não colou. E continuamos na mesma indefinição até hoje, com o agravante de que as técnicas de apropriação e composição desenvolvidas pelo hip hop foram por sua vez apropriadas pela quase totalidade dos estilos musicais populares contemporâneos e se tornam cada vez mais fáceis de serem utilizadas por todos, com vários softwares musicais que são disponibilizados no mercado e na internet todos os dias.
O instrumento sampler e seus similares virtuais se tornaram os principais motores da criatividade musical contemporânea, dando novo sentido a uma declaração que Pierre Henry fez em 1950: "Creio que o aparelho gravador é atualmente o melhor instrumento do compositor que quer realmente criar de ouvido e para o ouvido".
Nossos problemas -ou delícias- musicais não terminam por aí: creio que os ouvintes -na posse também de novos softwares de audição- cada vez mais deixarão de lado sua posição de consumo passivo e começarão a modificar as obras alheias para adequá-las melhor ao seu gosto ou mesmo para se divertir à procura de novas sonoridades. Eu mesmo, que não possuo nenhum talento para música nem vontade de me tornar músico, faço isso cotidianamente, por mera curiosidade.
No seminário de software livre organizado pelo Congresso Nacional em 2003, ganhei um CD demonstração que continha o programa "Audacity" (facilmente "baixável" na internet), com o qual posso editar qualquer música em formato MP3, colocando uma quantidade enorme de efeitos sonoros sobre determinadas partes da música, modificando assim inteiramente seu resultado final. O meu remix geralmente é uma porcaria, mas uma boa brincadeira, e, de vez em quando, dá até vontade de salvá-lo para mostrar aos amigos. Estaria sendo um criminoso se agisse assim? Provavelmente... É provável também que as gravadoras logo inventem técnicas policiais para impedir meu novo passatempo (e, nas mãos de gente mais talentosa do que eu, também possível fonte de muitas novas boas músicas no futuro).
Preocupada com essa situação de quase guerra entre novos motores da criatividade artística e legislações caducas, a organização Creative Commons propôs uma licença de sampler, desenvolvida inicialmente por advogados brasileiros, liderados pela escola de direito da Fundação Getúlio Vargas. O ministro Gilberto Gil [Cultura] foi o primeiro músico do mundo a relançar uma de suas canções sob essa licença, que apenas é uma forma legal de sinalizar para o planeta que determinadas obras podem ser sampleadas para a criação de novas obras, sem que o novo criador precise pedir autorização ou pagar direitos autorais para o criador "original".
Como diz Caetano Veloso em sua "Verdade Tropical" [Cia. das Letras], "de certa forma, o que queríamos [os tropicalistas] fazer equivalia a "samplear" retalhos musicais e tomávamos os arranjos como ready-mades". Nada mais natural, portanto, que um dos criadores do tropicalismo e autor de músicas como "Refazenda" e "Refavela" (que celebravam a recriação de tudo -e que deveriam ter sido as músicas liberadas para sampleadores, se não fosse a proibição da [gravadora] WEA)- se torne também um dos primeiros incentivadores da liberação legal de suas músicas para caírem de vez na cadeia produtiva sonora digitalizada e globalizada.
Gil vai fazer no dia 21 de setembro, no Town Hall de Nova York, o show de lançamento dessa licença (espera-se que com a presença do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e do presidente Lula, cujo governo está convicto da importância da defesa do software livre) e também do próximo número da revista "Wired", que trará encartado um CD contendo músicas liberadas para sampler, de gente -como a banda Wilco ou a cantora Björk- que seguiu o exemplo do ministro. Os leitores da "Wired" também ganharão de brinde o remix de "Oslodum", a música que Gil liberou para sampler, assinado pelo DJ Dolores.
A licença para sampler da Creative Commons (ver http://creativecommons.org/ license/sampling) se chama licença "recombo", em homenagem a outros brasileiros, os que criaram o projeto re:combo de produção musical colaborativa via internet, sobretudo. Quem faz parte do re:combo disponibiliza suas músicas na rede, de preferência com seus vários canais de gravação separados para facilitar o reprocessamento sonoro. Qualquer pessoa pode criar outras músicas a partir dos sons disponibilizados no site do re:combo (www.manguebit.org.br/recombo) -a única obrigação é a de que tudo o que for criado a partir de uma música do re:combo permaneça em aberto, pronto para novas recombinações. Portanto: aproveite, divirta-se!
Há um mundo precioso de sons à espera de sua criatividade, facilmente e legalmente disponível para todo tipo de manipulação. Quem sabe, num futuro próximo, Pierre Henry não use o seu remix em uma nova versão, mais aberta ainda, de sua "Missa para o Tempo Presente"? Não custa nada sonhar.


Onde encomendar
Os CDs "Messe pour le Temps Present" [Missa para o Tempo Presente], de Pierre Henry, e "Metamorphose -Messe Pour Le Temps Present", que traz remixagens da obra de Henry feitas por Fatboy Slim, Dimitri From Paris, Coldcut e outros, podem ser encomendados na Amazon (www.amazon.com).

Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). Ele escreve periodicamente na série "Brasil 505 d.C.", do Mais!.


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