São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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NAS CASAS DE CORREÇÃO


O crítico e historiador Philippe Dagen defende que a arte é hoje vítima de um conformismo "esmagador" da sociedade pós-industrial, que a torna inteiramente inútil


Alcino Leite Neto
de Paris

A Arte Impossível" (ed. Grasset, 240 págs., 18,50 euros) é o título de um dos livros mais cruéis da temporada editorial na França. Seu subtítulo é ainda menos otimista: "Da Inutilidade da Criação no Mundo Contemporâneo". O autor da obra é Philippe Dagen, 43, professor de história da arte na Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) e o principal crítico de artes plásticas do jornal "Le Monde".
Não se trata, porém, de um livro apenas sobre artes plásticas. Dagen, bastante inspirado no filósofo francês Guy Debord (1931-94), faz um diagnóstico geral da criação artística e de sua recepção neste tempo em que o "capitalismo cultural" oferece às massas produtos muito mais sedutores do que a arte -como o esporte, a moda, a televisão e o turismo.
Pessimista, doloroso, radical, o livro de Dagen é também combativo. Sua negatividade é um estímulo à transformação ou, ao menos, à crítica do modo como o sistema artístico tem reagido a sua própria derrocada.
Para ele, a arte está virando um ramo do patrimonialismo e da museologia -uma "indústria da contemplação". Ele chega a propor, ironicamente, uma Frente de Libertação das Obras para salvá-las das "fortalezas" e "casas de correção" que são os museus. Ao mesmo tempo, os artistas se fecham cada vez mais nas suas especializações, desinteressados da função ativa da obra sobre a vida e da capacidade de rebelião contida na arte. Transformam-se em meros decoradores.
A fim de contrabalançar o seu "desencantamento do mundo", Dagen dedica o último capítulo de seu livro ao comentário da obra de alguns artistas franceses atuais que ele considera na contracorrente do atual estado de coisas -entre eles, Raymond Depardon, Sophie Ristelhueber, Martial Raysse e Jean-Michel Alberola.
"O conformismo que reina hoje sobre nossas sociedades prósperas é esmagador", disse o crítico ao Mais!.

O seu livro critica o "museologismo" dominante hoje nas artes. O sr. acha que deva haver diferenças no modo como se entende a função dos museus e das exposições históricas na Europa e no Brasil? Neste país costuma-se dizer que as mostras históricas permitem que o público brasileiro conheça grandes obras clássicas e modernas da arte européia.
Sim, a situação me parece muito diferente no Brasil e em Nova York, Londres ou Paris. Nessas cidades, não é difícil conhecer um Picasso ou Morandi, porque suas obras figuram em abundância nos museus e elas são largamente difundidas sob a forma de reproduções ou de livros. Nesse caso, elas se banalizam, tanto e de tal forma que o público se habituou a elas e não se dá conta mais de sua força nem de sua estranheza. Ele não vê aí senão obras-primas que é conveniente admirar -e que ele admira, portanto, sem espírito crítico. No Brasil ou em outros países da América Latina, ao contrário, Picasso ou Morandi permanecem descobertas, no sentido completo da palavra: o hábito não lhes tirou ainda uma parte de seu poder subversivo. Não se pode então falar de uma visão museológica e turística, em razão da diferença de circunstâncias. Dito isso, a surpresa de um brasileiro diante de um Picasso me interessa muito mais -e me causa muito mais alegria- do que a admiração "blasée" de um turista europeu que, diante de uma tal obra, tem o sentimento de conhecê-la depois de muito tempo e não se dá ao trabalho de olhá-la seriamente.
A crítica brasileira questiona sempre a função da Bienal de São Paulo, o maior evento artístico do país. Na sua opinião, qual seria a função atual de uma bienal num país periférico do "capitalismo cultural", como o Brasil?
Quanto mais a globalização se desenvolve no campo cultural, mais importante é que as manifestações escapem dela. Se a Bienal de São Paulo puder permanecer "periférica" e não ser normalizada -com comissários americanos, alemães ou britânicos, por exemplo-, isso será, para mim, uma excelente coisa. Quanto mais pontos de vista diferentes, mais o olhar é livre. O pior será que essa Bienal se torne, por sua vez, uma cópia da feira de Bâle ou da Bienal de Veneza, que não são mais do que vitrines comerciais de uma arte contemporânea americano-européia muito indiferente àquilo que lhe é exterior. E não seria menos infeliz se os artistas brasileiros ou de outras regiões se alinhassem com os supostos modelos e modas de Nova York e Berlim, porque, nesse caso, eles não seriam senão pastichadores e clones de outros artistas.
Apesar de todas as teorias pós-colonialistas da arte contemporânea, ainda é difícil para um artista brasileiro ou de países periféricos se destacar no sistema artístico europeu e americano. Para o sr., a crítica "metropolitana" está de fato atenta à produção artística fora do centro?
O que você entende por metropolitana?
Feita nos países economicamente dominantes, na Europa e nos Estados Unidos.
Mas seria preciso distinguir, me parece, entre países onde o patriotismo artístico é tão forte que ele tem um interesse muito fraco pelos artistas vindos de longe e os países em que a situação é mais aberta. Paris, dessa perspectiva, não é a cidade mais fechada da Europa, e uma produção "marginal" pode encontrar aqui uma atenção real. Artistas como o coreano Lee Ufan, as exposições que foram realizadas no verão passado na ARC, são indícios de um espírito de abertura real. Tanto mais real que na França os artistas franceses se sentem eles próprios "marginais" em relação ao domínio dos EUA e da Alemanha sobre a arte atual, como chamou a atenção recentemente o relatório de Alain Quemin [divulgado em 7/6/2001] sobre a fraqueza da arte francesa no mundo. Será que não se poderia até pensar que os franceses se sentem um pouco os brasileiros da Europa?
Como se deve compreender o título e o subtítulo de seu livro? Devo dizer que, para o sr., a arte é impossível hoje porque ela é inútil no mundo contemporâneo?
Sim, é exatamente isso. Na sociedade ocidental pós-industrial dominada pela comunicação e os lazeres de massa, a arte se tornou impossível porque inútil -e, pior que inútil, perigosa. Eu diria o mesmo de todo pensamento livre que não se submeteu nem à lei do lucro financeiro nem às regras do politicamente correto. O conformismo que reina hoje sobre nossas sociedades prósperas é esmagador.
O sr. escreve que a arte é a defesa do nome contra o anonimato do número. Eu compreendo essa idéia do ponto de vista do artista, da defesa que ele faz de sua liberdade e singularidade diante dos constrangimentos do mundo da produção em massa. Mas o que quer dizer a defesa do nome do ponto de vista do receptor da obra?
Significa a liberdade de cada um ter suas preferências e antipatias pessoais. Quer dizer que não se pode sentir-se obrigado a gostar das mesmas coisas que todo mundo, dos mesmos filmes, das mesmas atrizes, dos mesmos quadros. Isso implica, por exemplo, a liberdade de pensar que a "Gioconda" é um quadro muito ruim. É melhor ter uma opinião pessoal pela qual estou pronto a combater do que não ter opinião nenhuma. A massificação conduz ao desaparecimento do julgamento pessoal.
A utopia negativa (e debordiana) da superação da arte não estaria já em processo, mas como um trabalho feito pelo próprio "capitalismo cultural", em vez de ser resultado de uma decisão subversiva da elite artístico-crítica?
Sim, creio que é isso. Infelizmente.


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