São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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A FICÇÃO DO GRAU ZERO


Sai no Brasil "Dentro do Cubo Branco", de Brian O'Doherty, que causou polêmica nos anos 70 ao iniciar a discussão sobre a ideologia que se esconde sob o espaço expositivo de museus e galerias


Lorenzo Mammì
especial para a Folha

Há muito tempo perdemos a ingenuidade quanto ao espaço expositivo. A maneira de pendurar um quadro ou de colocar uma escultura tornou-se parte do sentido das obras. Em volta disso se trava uma batalha obstinada, entre curadores, artistas e críticos. Quem detiver o poder sobre o espaço, terá o controle sobre o significado. Houve uma época em que parecia apropriado que o espaço de exposição fosse o mais neutro possível. Paredes brancas, ausência de janelas, quantidade mínima de interferências visuais. O apogeu desse tipo de lugar -para o qual Brian O'Doherty encontrou a feliz alcunha de "cubo branco"- deu-se entre as décadas de 1950 e 1960, na época da segunda escola de Nova York ("hard edge" e "color field painting") e das primeiras investidas da arte pop e minimalista. A relação entre o cubo branco e a pintura abstracionista "hard edge" e "color field" é evidente: essas tendências reivindicam a autonomia visual do quadro em relação a tudo o que o rodeia, graças à sua coerência interna, mas na verdade chamam a si o espaço da parede como fundo necessário, sobre o qual os campos de cor ou as telas recortadas possam se destacar como figuras. Há uma certa má consciência nisso, que os artistas mais atentos tentaram superar -a evolução da arte de Frank Stella (1936), por exemplo, é guiada pela tentativa reiterada de resolver as relações de figura e fundo dentro do próprio plano da obra. Por outro lado, e em consequência disso, ficou claro que uma parede branca não é necessariamente uma parede neutra -muito pelo contrário, determina por muitos aspectos a obra que abriga. Se ela, por exemplo, servir de fundo a um retábulo pré-renascentista, como acontece em muitos museus modernos, a irregularidade do contorno, que era pensada para rebater a complexidade de uma arquitetura gótica, se torna um desenho em si, um arabesco contra o espaço vazio, com um destaque que o artista certamente não desejara.

O sagrado da instituição
Há porém uma outra função que o cubo branco pode desempenhar: representar simbolicamente o espaço sagrado da instituição. Nesse sentido, a arte pop e a minimal dependem do espaço da galeria tanto quanto a pintura purista da Escola de Nova York. Para que uma imagem extraída da cultura popular alcance o estatuto de arte sofisticada, é necessário que haja um descompasso entre objeto apresentado e lugar que o hospeda. As caixas de [sabão em pó" "Brillo" de Andy Warhol (1928-87) só podem funcionar numa galeria. Num supermercado, evidentemente, não conseguiriam nenhum efeito. Da mesma forma, o "Quarto de Dormir" perfeitamente reproduzido por Oldenburg (1929) não teria significado se estivesse num apartamento. Nessa época, diga-se de passagem, os ready-made de Duchamp (1887-1968), que nas primeiras exposições foram mostrados em contextos insólitos (pendurados num bengaleiro, por exemplo, ou numa vitrine junto de objetos científicos e etnológicos), também começaram a ser mostrados em cubos brancos, como as obras pop. A capacidade de conotação que o espaço neutro da galeria adquirira já dispensava estratégias mais complexas. Quanto à arte minimal, sua disposição serial virtualmente infinita precisa de um espaço rígido que a interrompa, assumindo a responsabilidade de sua finitude. Colocada num espaço realmente ilimitado (ao ar livre, por exemplo), ela não define um lugar. Como certa vez observou Richard Serra, parece um sem-teto. De uma maneira ou de outra, a arte das décadas de 1960 e 1970 se tornou consciente do peso que o espaço de exposição exercia sobre a obra. Tentou fugir dele ou se apoderar dele. A arte conceitual, a "land art" [intervenções artísticas em espaços naturais, modificando-os", os recursos diversificados da performance e da instalação retiram parte de sua significação da maneira como se propõem a resolver esse problema.

Tendências latentes
É nesse contexto que deve ser lido "Dentro do Cubo Branco", de Brian O" Doherty, publicado originariamente em 1976 na revista "Artforum" [e previsto para sair, no Brasil, em novembro, pela Martins Fontes]. Relido agora, a mais de 25 anos de distância, o texto pode até parecer um pouco simplista, diante da complexidade que o problema adquiriu posteriormente. Na época, porém, teve o mérito de reunir pela primeira vez uma série de tendências latentes em volta de uma questão comum, que ainda não tinha sido devidamente explicitada.
O'Doherty reconhece no espaço pretensamente neutro das galerias uma construção ideológica tão complexa quanto a de uma catedral gótica. É levado a contestá-la, enquanto expressão de um poder institucional capitalista e elitista, capaz de conferir valor e prestígio a determinados objetos, extraindo-os do fluxo da vida cotidiana. Não comete porém a ingenuidade de acreditar que a simples abolição desse espaço possa, por assim dizer, libertar a arte e reaproximá-la da vida cotidiana. Identifica (assim me parece: o raciocínio do crítico nem sempre é claro e linear) duas linhas de intervenção. Poderíamos chamar a primeira de estratégia da ironia: quadros minúsculos são colocados em paredes enormes e imaculadas, obrigando a olhar mais para a parede do que para o trabalho (O'Doherty cita uma exposição de Gene Davis de 1968, mas Cildo Meireles (1948) também produziu uma obra parecida -e talvez mais contundente- com "Cruzeiro do Sul", de 1969-70); ou então a tela reproduz exatamente a parede em que é colocada, numa escala apenas menor ("Parede Oeste, Dwan Main Gallery", de William Anastasi, 1967). Um caso à parte, porque nutrido de uma necessidade sincera de transcendência, é "O Vazio", de Yves Klein (1928-62), de 1957: uma galeria que o artista francês inaugura vazia de obras, mas repleta idealmente de conteúdo espiritual. A outra estratégia, à qual O'Doherty confere mais destaque, é a da ocupação. Nesse sentido, "O Pleno", a galeria cheia de detritos, com que Arman responde a Klein em 1960, não é uma variante da exposição anterior, mas a expressão de uma poética totalmente diferente. No primeiro caso, de fato, reconhecia-se no cubo branco um espaço irremediavelmente separado, capaz de autocrítica, mas não de extroversão. No segundo, uma relação de continuidade entre a galeria e o mundo externo é considerada possível, mas precisa ser obtida à força, por operações que carregam sempre o caráter do arrombo, da invasão, do bloqueio. O arquétipo desse tipo de intervenção, na reconstrução de O'Doherty, é o "Merzbau", de Kurt Schwitters, embora a ancestralidade dessa peça seja apenas formal: o "Merzbau", evidentemente, não é uma galeria. Seguindo essa linha, o autor encontra as "proto-instalações" de Marcel Duchamp, que, na Nova York das décadas de 1930 e 40, expunha os quadros de seus colegas surrealistas em salas entrecortadas por uma rede de fios ou rebaixadas por centenas de sacos de carvão pendurados ao teto; mais tarde, já na década de 1960, as instalações-happenings de Alan Kaprow, Claes Oldenburg e muitos outros exemplificam a mesma tendência; finalmente, já quase na época em que o autor escreve, há os empacotamentos do búlgaro Christo (1935).

Na areia movediça
O que caracteriza esses trabalhos, em relação às obras da pop e do minimalismo clássico, é que aqui o espaço institucional da arte não é apenas criticado ou ironizado, mas literalmente destruído. Já não é possível andar confortavelmente nele, já não reconhecemos suas paredes. No entanto, mesmo reduzidos a ruínas, ainda são seus destroços que conferem sentido à operação artística.
A ênfase -às vezes um verdadeiro furor com que o espaço é agredido- não faz mais que recolocá-lo como lugar sagrado, capaz de transformar coisas comuns, e até essas agressões, em arte. O que se ganha nesse processo -O'Doherty está consciente disso- não é a abolição do poder institucional do espaço artístico; apenas, e na melhor das hipóteses, uma sua maior transparência e problematização. Num certo sentido, a situação dessas intervenções artísticas em relação ao espaço institucional que as abriga se assemelha à de um homem que caiu na areia movediça: quanto mais esperneia, mais afunda; quanto mais se rebela à sua colocação oficial, tanto mais depende dela para adquirir um valor.
Talvez a posição de O'Doherty dependa demais do ambiente artístico norte-americano, onde essa aporia se colocou de maneira mais rígida. Na Europa, nesses mesmos anos, estava se consolidando uma atitude diferente, talvez mais rica em desdobramentos possíveis.
O ponto de vista americano, expresso exemplarmente por O" Doherty, é que o caráter sagrado do cubo branco é uma construção do modernismo. Muitos artistas europeus, ao contrário, trabalharam na intuição de que o lugar da arte é sagrado há muito tempo, talvez desde sempre, e que a galeria moderna apenas herdou, às vezes a contragosto, uma aura bem mais antiga. Atrás da pátina superficialmente leiga dos museus atuais, Joseph Beuys (1921-86) foi procurar a magia do círculo xamânico; Iannis Kounellis (1936), e com ele grande parte da "arte povera" italiana [obras feitas de materiais "desprovidos de valor", como resíduos industriais], tentou reviver a caverna primitiva e o teatro grego.
Já que, para as culturas xamânicas e a Pré-História, não se pode propriamente falar em arte, essa hipótese implica que haja lugares que carreguem uma certa sacralidade, passível de ser despertada por rituais determinados. A arte seria um deles, o mais recente, mas suas operações carregam a memória de todos os rituais anteriores. A vantagem desse tipo de posição é que, nesse caso, é o artista que chama a si a responsabilidade de consagrar o lugar. A obra carrega consigo um espaço ideal, um virtual cubo branco, onde quer que ela esteja. As galerias bem-comportadas apenas imitam esse espaço. Se é necessário criticá-las, não é por se colocarem como lugares especiais -o que de fato são-, mas porque esse caráter especial, nelas, tende a ser pré-fabricado e automático.


Lorenzo Mammì é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor do Centro Universitário Maria Antonia. É autor de "Carlos Gomes" (Publifolha) e "Volpi" (Cosac & Naify), entre outros.

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