São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ brasil 503 d.C.

Evaldo Cabral de Mello

A sinistra federação


Temor das consequências de uma maior autonomia para as Províncias brasileiras alimentou os debates após a Independência


Quem compulsa as atas da Constituinte de 1823* não deixa de se ressentir do clima morno e apático, quando não francamente medíocre, que cercou os debates relativos à elaboração constitucional propriamente dita, embora a discussão da atualidade política do dia e até da hora pudessem ser particularmente vivos, para deleite dos historiadores do nosso primeiro golpe de Estado. Tem-se a impressão de que, para a grande maioria dos deputados, havendo os acontecimentos do ano anterior definido a forma do Estado e escolhido sua chefia, tratava apenas de tirar os corolários desses pressupostos, adaptando-se a legislação portuguesa às necessidades do país, como, aliás, já fora o objetivo do natimorto Conselho dos Procuradores reunido por dom Pedro.

Questões melindrosas
É tal atitude da parte dos nossos primeiros parlamentares que explica, em parte, a prioridade dispensada à preparação das leis constitucionais, tarefa em que os constituintes se empenharam, na observação de Agenor de Roure, em "catar nas coleções de alvarás, cartas régias, decretos, leis portuguesas etc., quais as providências administrativas que deviam continuar em vigor", embora eles também temessem, com bons motivos como demonstrarão os acontecimentos, aprofundar questões constitucionais altamente melindrosas para a sensibilidade do ministério, fosse ele o de José Bonifácio ou o que lhe sucedeu, sobretudo para a vaidade juvenil de um imperador obcecado em ser o "dador" do regime político da nação que julgava haver fundado. Três meses decorridos da abertura da Assembléia e da célebre fala do trono que lhe traçara arrogantemente os limites, o projeto de Constituição ainda não fora concluído pela respectiva comissão. Seu relator, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, só o finalizou em 1º de setembro; e, quando da dissolução, o debate não ultrapassara o artigo 24, não chegando a abranger as questões vitais, como as que diziam respeito às Províncias. Assim foi que nem sequer se ventilou a contribuição provincial ao orçamento geral, assunto tratado pelo artigo 218 do projeto da comissão especial, o qual previa que o Legislativo ratearia a cada ano as quotas provinciais; e que as despesas de cada Província seriam fixadas anualmente, proporcionalmente a seus rendimentos, fórmula suficientemente vaga para abrigar a diversidade de reivindicações que surgiriam a respeito e que eram de molde a inquietar sobretudo o aparato burocrático-militar herdado do período juanino. O conservadorismo da Constituinte torna-se patente na discussão em torno do artigo 2º do projeto, bem como na lei da organização das Províncias, de 20 de outubro de 1823. Ao tratar do artigo 2º, que versava a definição do território do império, a mera inserção do advérbio "confederalmente", sugerida por Ferreira França, para definir as relações entre as Províncias e o governo central provocou forte resistência, mesmo se a palavra parecia ser uma inócua adição, tendo em vista que o artigo 1º já estatuíra enfaticamente que o império seria "uno e indivisível". Silva Lisboa, o futuro Cairu, por exemplo, pretendia que o caráter unitário da monarquia estava implicitamente consagrado pela adesão das Províncias, nenhuma das quais a havia condicionado à adoção do regime federativo. Por conseguinte, não podia "Província alguma do Brasil ter agora a liberdade de querer, ou não, aderir à causa comum, nem pactuar condições de federação". O que ele não dizia, porém, é que elas não haviam tido a oportunidade de se pronunciar a respeito; e que, em Pernambuco, a junta governativa presidida por Gervásio Pires Ferreira fora derrubada por instigação do Rio de Janeiro, devido, entre outras coisas, a suas veleidades autonomistas de condicionar sua adesão ao Rio a certas condições, inclusive em matéria fiscal. A emenda apresentada por Ferreira França à Constituinte teve apenas o apoio de poucos, como Montezuma, e como o padre Alencar. O próprio Ferreira França logo se resignou a seguir a linha da grande maioria dos seus pares, para quem a proposta era inconciliável com "o pacto ou juramento em favor da forma monárquico-constitucional", que implicava "uma só Constituição para todo o país e não constituições para as Províncias", embora pessoalmente não enxergasse "inconveniente na adoção do sistema federativo no Brasil".

Palavra subversiva
O padre Venâncio Henriques de Rezende, revolucionário de 1817 e considerado perigoso republicano, tendo por isso mesmo quase cassado seu mandato, "queria a federação, mas sujeitava-se à vontade da nação". Excepcional foi o caso de Carneiro da Cunha, ao declarar que "a federação não era incompatível com o regime monárquico-constitucional e que era a melhor forma de governo para um país imenso como o Brasil, de modo a dar a cada Província uma assembléia legislativa sem ofensa à integridade do império", idéia que será timidamente retomada quando da discussão do Ato Adicional nos primeiros anos do período regencial, posteriormente recuperada pelo publicista lusitano Silvestre Pinheiro Ferreira, que propôs a d. Pedro a divisão do império em cinco reinos, e finalmente ressuscitada por Nabuco às vésperas do 15 de novembro.
Na Constituinte de 1823, até mesmo a palavra "Província" foi julgada subversiva, embora finalmente mantida, sugerindo-se sua substituição por "comarca", vocábulo de cunho judiciário na prática luso-brasileira, a despeito do fato de que "Província" fosse a designação canônica das divisões territoriais de um império, não contendo por isso nenhuma conotação federalizante. A cautela talvez se explicasse pelo fato de tanto frei Caneca**, pela imprensa, quanto o padre Feijó***, nas Cortes de Lisboa, haverem sustentado a doutrina de que, desfeito o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a soberania deveria reverter não ao Brasil como um todo, mas às suas Províncias. Foi, aliás, no decurso da discussão em torno do artigo 2º que surgiu pela primeira vez no Parlamento a tese a que recorrerão vários congressistas por ocasião do debate do projeto de Ato Adicional em 1834. Formulou-a em 1823 Campos Vergueiro. Embora ele julgasse que se devia conceder às Províncias e aos municípios certo grau prudente de autonomia, não se podia adotar o princípio federalista, que resultara de uma experiência especificamente norte-americana, pois que as colônias inglesas da costa leste da América do Norte haviam gozado desde o começo de uma medida de autogoverno desconhecida na América portuguesa.

O civil e o militar
A mesma argumentação seria desenvolvida também em 1823 por "O Tamoio", folha com que José Bonifácio e seus amigos políticos haviam passado a fazer oposição ao governo, após seu alijamento do poder. Ao contrário de Portugal no tocante ao Brasil, embora as leis do Parlamento britânico fossem em princípio obrigatórias também para as colônias, a metrópole só chamara a si as competências relativas à política comercial e à defesa do império, deixando às colônias, uma vez fundadas sob a égide da coroa, considerável grau de autonomia, tanto assim que dispunham de suas assembléias bem como de conselhos destinados a assessorar os governadores coloniais, os quais estavam longe de dispor do feixe de poderes que Portugal concedera a seus agentes no ultramar, que acumulavam o governo civil com o governo da força armada.
As leis dessas assembléias eram aplicadas a todos os assuntos domésticos e, embora em princípio pudessem ser revogadas pelo Parlamento de Londres, isso raramente ocorria. A administração da Justiça também estava a cargo das colônias, isto é, de juízes e de jurados naturais ou residentes delas. As capitanias brasileiras não haviam conhecido assembléias, de vez que a coroa se havia contentado em transplantar pura e simplesmente o sistema municipal do reino, o qual as fragmentava politicamente, relegando-as ao ramerrame da administração das vilas.
O outro momento do debate constitucional de 1823 relativo à organização das Províncias teve lugar em torno do projeto que se transformará na lei de 20 de outubro de 1823, que aboliu o sistema de juntas governativas de eleição popular criado pelas cortes de Lisboa em favor de um presidente de nomeação imperial assessorado por um conselho. A fórmula não provocou maior problema, graças ao consenso que se firmara acerca dos inconvenientes das juntas, pois, como assinalava o padre Muniz Tavares, "o povo, quando tem o direito de eleger um governo, pensa que lhe cabe também o direito de depô-lo".
O único ponto de divergência dizia respeito à subordinação do comandante das armas ao presidente, que foi a solução adotada pela lei. No sistema de juntas, o controle da força armada, como também a do fisco, ficara independente do governo civil, solução que fora muito criticada no Brasil por se ver nela um estratagema das cortes para dividir as Províncias. Na realidade, a idéia das cortes de Lisboa ao separar o governo militar do civil respondera sobretudo à mesma preocupação que Antônio Carlos e outros deputados brasileiros lhes haviam manifestado, a de que era indispensável dissociar o governo civil do governo militar, sob pena de se restabelecerem os despóticos governadores-capitães-generais do período colonial.
Durante a discussão dos primeiros anos da Regência a propósito do Ato Adicional e da proposta de monarquia federal, de que então cogitavam alguns liberais, voltou à tona o argumento do caráter estranho à experiência brasileira do conceito de federação. Para um dos Andradas, Martim Francisco, monarquia federal era uma contradição em termos. Enquanto a idéia de federação implicaria "a de Estados independentes unidos por um laço qualquer", a noção de monarquia reportar-se-ia a "um Estado compacto e unido, regido por um só chefe", sendo impossível conciliá-las. A federação, consoante Montezuma, pressupunha a segregação prévia de unidades livres com vistas à autodefesa.
No período colonial, os Estados Unidos ainda não formavam, ao contrário do Brasil, "um corpo de nação composto e unido". As 13 colônias não passavam de "estados separados, mais ou menos independentes não só uns dos outros, mas da metrópole", enquanto o Rio, a Bahia, o Pará ou o Maranhão já eram regidos pelas mesmas leis.
Por sua vez, o velho Rebouças e Evaristo da Veiga julgavam que o debate no Parlamento do império fundava-se num equívoco conceitual. O que os nossos federalistas da Regência pretendiam não seria a federação clássica, a da Suíça, dos antigos Países Baixos ou dos EUA; tratar-se-ia apenas de um arranjo destinado a conceder às Províncias poderes administrativos mais amplos, os quais poderiam ser perfeitamente acomodados à Constituição de 1824, sem necessidade de recorrer a expressões ambíguas e perigosas. Evaristo, por sua vez, chamava a atenção para o abuso da utilização do termo federalista, demonstrando que entre nós ele correspondia a aspirações bem diferentes daquelas a que se reportava na América do Norte.
Ali, federalistas eram chamados os que procuravam estreitar os vínculos entre os Estados, antigas colônias; e democratas, ao invés, os que buscavam afrouxá-los, dando maiores poderes às assembléias estaduais, o oposto do Brasil, onde federalista correspondia ao democrata americano.
Mas caberia fazer o reparo a Evaristo de que, no tempo da Independência, também se designava por democrata o nosso federalista; assim foram chamados pelos adversários os autonomistas pernambucanos de 1822 e 1824. E não só por desinformação, mas no objetivo "ad terrorem" de confundir o federalismo com o governo popular, quando, na realidade, tratava-se de noções distintas.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "O Negócio do Brasil" (Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


*Assembléia Constituinte de 1823 Reunida por d. Pedro 1º no dia 3 de maio, foi encarregada de formular a Constituição do país independente. Era composta por setores como os bacharéis, religiosos, militares e funcionários públicos, divididos em dois partidos: o Português, favorável à reunião com Portugal, e o Brasileiro, pró-monarquia constitucional. O projeto de Constituição foi elaborado por uma comissão formada por, entre outros, José Bonifácio de Andrada e Silva, o "patriarca da Independência" e ministro de destaque no governo imperial -ele, porém, seria demitido e exilado nesse ano, até 1829, por defender teses liberais como a extinção gradual da escravidão. Apresentado em setembro, o projeto entrou em choque com os interesses de d. Pedro, ao proibi-lo de dissolver o Parlamento e de comandar as Forças Armadas. Com a queda do "ministério dos Andradas", o Partido Português assume a hegemonia, fato que desencadeou grave crise política, evocada pelo imperador como justificativa para a dissolução da Assembléia, anunciada durante a "Noite da Agonia" (12 de novembro).


**Frei Caneca Nascido em Recife em 1779, o carmelita Joaquim da Silva Rabelo participou da insurreição pernambucana de 1817, como conselheiro do Exército republicano, e das agitações pró-independência de 1822. Contrário à indicação do presidente da Província de Pernambuco e à Constituição outorgada por d. Pedro 1º em 1824, torna-se um dos líderes da Confederação do Equador -movimento com forte teor federalista-, motivo por que seria fuzilado em 1825.


***Padre Diogo Antônio Feijó Nascido em São Paulo, em 1784, foi deputado na primeira Assembléia Geral Legislativa. Em 1827, defendeu projeto que previa o fim do celibato clerical. Seu peso político cresce após a abdicação de d. Pedro em 1831 e a ascensão de líderes liberais. Torna-se ministro da Justiça em julho e cria a Guarda Nacional. A regência una é instituída em 1834, e Feijó é eleito para o cargo no ano seguinte, governando até 1837, quando renuncia. Morre em 1843.


Texto Anterior: Conto faz parte de série de obras literárias
Próximo Texto: + autores: Forças complementares
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.