São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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Alain Touraine

Forças complementares

O Brasil está em período pré-eleitoral, e a atenção dos brasileiros se volta para as probabilidades dos diversos candidatos. O observador externo ao Brasil, mas ligado a ele por uma longa e profunda amizade, deve dizer o que lhe parece mais importante nestas eleições, que ocorrem depois de um duplo mandato de Fernando Henrique Cardoso. O que se pode dizer em poucas palavras: em plena globalização da economia e num momento em que se reforça a hegemonia política e militar dos Estados Unidos, o Brasil deve tentar conservar e adquirir a maior autonomia possível, apesar das pressões que possam exercer os investidores estrangeiros. Essa mensagem vale para todos os países do continente latino-americano e também para outros, mas em muitos casos não passa de um desejo irrealizável ou da expressão de uma grave inquietação. No Brasil, assim como no Chile, mas por outros motivos, a situação é bem diferente. Não existe nenhum motivo para desespero sobre o futuro desses países; portanto é preciso definir claramente o que está em jogo nas atuais eleições.

País sólido
No Brasil, dois grandes temas devem dominar a vida política. O primeiro é que o Brasil é hoje um país sólido, que superou rapidamente a crise de 1999, que é evidentemente atingido pela crise argentina, mas que durante todo este ano demonstrou sua potência. Esta repousa primeiramente na extensão do mercado interno, devido ao desenvolvimento de indústrias e atividades novas e também, deve-se dizer muito claramente, à ação e à personalidade de FHC, cuja imagem muito forte protegeu o Brasil. O presidente encontrou fortes oposições, em particular no meio universitário, de onde ele vem; chegou o momento de muitos desses críticos reconhecerem que o balanço de FHC é muito positivo e que seria muito perigoso adotar uma política muito diferente da dele. A vitória do presidente contra certos governadores reforçou sua capacidade de ação. Os resultados obtidos pelo ministro Paulo Renato Souza no campo da educação e por José Serra no da saúde demonstram que essa política de reforço da economia e do poder do presidente foi realmente acompanhada de reformas sociais, em particular a serviço dos deserdados. O segundo grande objetivo é complementar ao primeiro. O reforço da sociedade brasileira exige um desenvolvimento do mercado interno e, portanto, uma melhor distribuição das riquezas e também, da parte dos candidatos, uma preocupação prioritária de associar a solução dos problemas sociais ao crescimento da produção econômica. É inútil jogar com uma abstração artificial: a evolução do PT, seus apoios populares, a repetida demonstração de sua capacidade de administrar Estados e metrópoles, as declarações do próprio Lula indicam que as censuras feitas no passado a Lula e ao PT perderam muito de sua razão de ser. Essas análises parecem nos conduzir a uma conclusão incoerente, contraditória: FHC e Lula representariam não as duas faces do Brasil, mas as duas orientações necessariamente interdependentes da política do país. Essa conclusão é menos estranha ou vazia do que parece. Antes de tudo porque ela faz passar para segundo plano os problemas propriamente políticos, a recusa de qualquer esforço para constituir de elementos díspares uma coalizão majoritária. Eu teria apreciado que, no fim do segundo mandato de FHC, este tivesse conseguido lançar um grande partido de centro. A criação desse partido continua necessária, mas, como não se realizou, é preciso dar prioridade às forças que mais bem representam as necessidades prioritárias do país.

Jogo perigoso
Deve-se desejar que os brasileiros não submetam o voto ao temor de uma retirada dos investimentos estrangeiros; é preciso que eles manifestem desde o primeiro turno sua confiança em si mesmos, isto é, sua vontade de reforçar sua economia e sua sociedade. Com frequência, nos países da América Latina, se dá prioridade ao jogo político, à construção mais ou menos difícil de coalizões majoritárias. O caso da Argentina mostrou a que ponto isso é perigoso -e ameaçou o futuro do país.
É preciso que os brasileiros coloquem à frente de suas preocupações as condições fundamentais de um desenvolvimento nacional, tomando essa palavra no sentido que ela possuía no pós-guerra entre os economistas da Cepal [Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe", em cujas fileiras estavam FHC e Serra.
Tudo o que aproxima o que Cardoso representa do que Lula representa é bom. A vitória de um, assim como a do outro, seria positiva para o Brasil, e seria um erro completo acreditar que os brasileiros devem escolher entre duas políticas opostas, representadas por dois homens. Sem ignorar o que os separa, sou mais sensível ao que os aproxima, ao fato de que eles representam, um e outro, uma das duas condições fundamentais para a sobrevivência e o desenvolvimento do Brasil.
É urgente que um país tão grande, cujo próprio tamanho lhe dá importantes oportunidades de ação autônoma, dê prioridade não às estratégias políticas, mas à transformação da sociedade. O erro seria opor os objetivos sociais às necessidades econômicas. Progresso econômico e progresso social não podem ser separados. É por isso que hoje é possível a reconstrução do sistema político.
De um lado o PT, que dá prioridade aos objetivos sociais e não nega mais que todos os países estejam inseridos na economia mundial. Tarso Genro [candidato do PT ao governo gaúcho" acaba de definir claramente o que deve ser a democracia no Brasil. De outro, deve-se reconhecer que FHC deu em sua política uma grande importância aos objetivos sociais. Parece-me até que o Brasil, país sólido e ativo, está muito perto de compreender e de organizar as condições políticas de seu desenvolvimento a longo prazo.
É por isso que desejo que a eleição permita uma obra de recuperação e faço votos de que os esforços e os progressos de FHC sejam cada vez mais convergentes com os do PT e os de Lula. O futuro dos brasileiros dependerá antes de tudo de sua capacidade de combinar, ao invés de opor, essas duas forças.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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