São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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Brasil X Índia

O sonhado Primeiro Mundo

Ajay Verma - 25.ago.2006/Reuters
Estudantes protestam em Chandigarh contra medida do governo indiano que reserva vagas para pessoas de castas mais baixas nas escolas do país


GILSON SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os ideais de cooperação Sul-Sul parecem um tanto arranhados ao final do primeiro governo Lula: do lado de cá, Bolívia e Venezuela e às vezes até Argentina andaram dando de ombros para a mobilização brasileira em favor da formação de um bloco regional.
Do lado de lá, China, Índia e Rússia pareciam num dado momento oferecer outra perspectiva de integração, resumida na sigla "Bric", mas nos últimos meses esse ícone também perdeu prestígio e o Brasil foi um dos primeiros a ser colocado de lado.

Bricabraque
Aparentemente, voltou a imperar um clima de todos contra todos na luta muitas vezes ombro a ombro das economias em desenvolvimento ou "emergentes" para chegar primeiro ao Primeiro Mundo. A Índia, que no passado serviu até de referência para a parte pobre do Brasil (o economista Edmar Bacha cunhou a célebre "Belíndia"), agora parece muito mais preparada e adiantada na corrida por espaços na globalização.
Há uma diferença crucial no contraponto entre Brasil e Índia mas também diante de China e Rússia: só eles têm bombas atômicas e freqüentam os círculos mais avançados das mais avançadas tecnologias. Índia, China e Rússia representam ainda a passagem de mais um ciclo numa história já milenar de projetos imperiais.
O Brasil é pós-colonial, uma criança, muito mais ignorante e despreparada, militar e tecnologicamente. No entanto há um certo exagero retórico tanto no agrupamento dessas economias grandes e emergentes quanto na sua contraposição excessivamente caricatural.
O cenário de inserção dessas economias no ciclo mundial de crescimento econômico, apesar das vantagens competitivas às vezes extremas de China ou Índia, depende na maior parte do tempo do desempenho das economias centrais.
No ciclo mais recente, houve uma relativa estabilização, especialmente depois das crises financeiras asiática e russa do final dos anos 90 do século passado. Desde então, a reciclagem financeira, monetária e cambial ocorreu tanto na Ásia quanto na América Latina.
Em 2006, pelo terceiro ano seguido, todas as 32 grandes economias emergentes monitoradas pela revista "Economist" tiveram crescimento do PIB. O Brasil cresceu menos e investiu menos mas também recebeu investimento direto estrangeiro e estatal em setores considerados estratégicos.
Mas é cedo para dizer qual o modelo vitorioso, o capitalismo asiático ou a liberalização macunaímica.

Espírito cordial
As estratégias imperiais e milenares dos asiáticos são mantidas a ferro e fogo, com níveis de violência do Estado, repressão de minorias e intolerância étnica interna numa ordem de grandeza incomparável ao "homem cordial" brasileiro (mesmo levando em conta o crescimento recente do crime organizado e de certas máfias paraestatais e semipúblicas).
O espírito mais pragmático ou flexível e até a hospitalidade brasileira têm sido cada vez mais elevados à condição de fatores de competitividade e confiabilidade. Aos trancos e barrancos, o sistema jurídico e a transparência nas políticas públicas apenas aumentaram desde os já remotos anos 80, em que o FMI praticamente obrigou o governo militar a colocar as finanças públicas em ordem e prestar contas dos vários orçamentos.
Apesar dos pesares, o sistema administrativo e político brasileiro está léguas à frente, em governança, transparência, regulação e democratização, em relação aos similares ou arremedos chinês, russo e mesmo indiano.
A miséria extrema ou a simples existência de populações gigantescas ainda condena boa parte da competitividade dessas economias a uma convivência com baixa qualidade de vida. O PIB pode crescer mais rapidamente que o brasileiro, mas nada garante que o PIB seja o melhor indicador de sucesso, felicidade ou sustentabilidade política.
Brasil e Índia, América e Ásia, Ocidente e Oriente: essas oposições insistem em reaparecer sem que se possa dizer com clareza, neste momento, quem de fato está chegando mais rapidamente ao Primeiro Mundo.
Afinal, Wall Street e a City londrina estão presentes com vigor tanto em Mumbai quanto em Pequim ou São Paulo. Para todos os efeitos, partes estratégicas de todos os países emergentes já estão interligadas na rede financeira que atravessa o capitalismo global.


GILSON SCHWARTZ leciona economia na Escola de Comunicações e Artes da USP e é coordenador do projeto Cidade do Conhecimento.


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