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Chico X Caetano
Rios profundos
JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dada a diversidade,
criatividade, importância social e
cultural da música
popular brasileira,
ela sempre esteve, de variadas
maneiras, envolvida com movimentações de natureza política. Num claro contraponto ao
seu radicalismo político nacionalista, populista e trabalhista,
Getúlio Vargas, por exemplo,
ao implantar o Estado Novo
nos anos 1930, não hesitou um
segundo em cooptar grande
parte da intelectualidade da
época, oferecendo-lhe confortáveis cargos públicos.
Criou, sem pudores, verdadeiros "pelegos" culturais semelhantes aos sindicais que
havia criado e deu maciço
apoio técnico e financeiro à Rádio Nacional, espécie de praça
da alegria do regime, cujo alarido festivo encobria os murmúrios de algumas poucas vozes
discordantes, devidamente
abafadas pelos censores do Departamento de Imprensa e
Propaganda ou pelos cassetetes de sua "SS" particular, comandada por Felinto Müller.
A geração de músicos que
nasceu no final dos anos 50 e
no delírio dos 60, ainda em atividade, teve uma postura diametralmente oposta, aliás, sem
exceções. Não só, com grande
coragem, bateu de frente com
os algozes da ditadura de 64 como criou uma música de qualidade, inspirada, arraigada em
nossa cultura, a qual, mais por
meio da linguagem que da língua, tirava o sono dos milicos.
Noel e eletronismos
Nascida nos sofisticados redutos da zona sul carioca, a bossa nova, por ser um movimento
jovem, não tardou em desenvolver um viés político, muito
adequado aos shows de universitários. Se uma linha mais "lírica" foi mantida, liderada pelo
gênio maior do movimento,
Tom Jobim, as correntes não se
conflitavam.
E essa linha mais "pensante"
e comprometida com nossa
realidade da MPB desenvolveu-se ainda mais com a chegada do tropicalismo.
Ou seja, Chico e Caetano estavam do mesmo lado, ainda
que suas músicas tivessem características diversas. Chico,
por meio de uma coloquialidade a la Noel Rosa, por meio de
uma fina poética, abordava destinos e fatos aparentemente suburbanos que, na verdade, traziam subtextos repletos de informações que aqueciam a atmosfera política do momento.
Caetano, no outro extremo,
fazia uma música de pretensões universalistas, apoiada
nos eletronismos de linguagens
atuais assim como no repertório de vanguarda da música
erudita. O talento de ambos,
porém, fazia com que suas contribuições se espalhassem e
confortassem corações e mentes ansiosas, tornando inesquecíveis aqueles momentos de
nossa cultura popular.
Os tempos mudaram, ambos
aí estão, mas, desta vez, em caminhos opostos profissional e
politicamente. Chico parece ter
se desencantado com a criação
musical após a liberação geral
das possibilidades de expressão, interessando-se por outras
formas de expressão.
Caetano, irrequieto, segue
atuando sempre com novos
projetos, a cada ano mantendo
o pique da fase tropicalista.
Por sua presença no dia-a-dia da movimentação cultural e
social do país, Caetano resolve
adotar uma posição crítica ao
atual governo, envolvido em intrincadas teias. Chico, como
num ato de nostalgia, resolve
apoiar Lula, talvez o imaginando ainda a figura heróica dos
tempos de chumbo, era em que
o próprio Chico também fora
vítima da repressão.
Numa terceira via, porém,
corre a atual música popular
brasileira produzida pela indústria da comunicação eletrônica, destituída de talentos como os de Chico e Caetano.
Seja qual for o vencedor da
eleição, dificilmente vamos ter
momentos como aqueles representados por ambos. Despoluir um rio é fácil. Recuperar
a criatividade popular espontânea que havia neste país parece
impossível, seja qual for o novo
salvador da pátria.
JÚLIO MEDAGLIA é maestro e crítico musical,
autor de "Música Impopular" (ed. Global).
CD - Caetano Veloso acaba de lançar "Cê" (Universal). Já Chico lançou "Carioca" (Biscoito Fino).
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