São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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Chico X Caetano

Rios profundos

JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dada a diversidade, criatividade, importância social e cultural da música popular brasileira, ela sempre esteve, de variadas maneiras, envolvida com movimentações de natureza política. Num claro contraponto ao seu radicalismo político nacionalista, populista e trabalhista, Getúlio Vargas, por exemplo, ao implantar o Estado Novo nos anos 1930, não hesitou um segundo em cooptar grande parte da intelectualidade da época, oferecendo-lhe confortáveis cargos públicos.
Criou, sem pudores, verdadeiros "pelegos" culturais semelhantes aos sindicais que havia criado e deu maciço apoio técnico e financeiro à Rádio Nacional, espécie de praça da alegria do regime, cujo alarido festivo encobria os murmúrios de algumas poucas vozes discordantes, devidamente abafadas pelos censores do Departamento de Imprensa e Propaganda ou pelos cassetetes de sua "SS" particular, comandada por Felinto Müller.
A geração de músicos que nasceu no final dos anos 50 e no delírio dos 60, ainda em atividade, teve uma postura diametralmente oposta, aliás, sem exceções. Não só, com grande coragem, bateu de frente com os algozes da ditadura de 64 como criou uma música de qualidade, inspirada, arraigada em nossa cultura, a qual, mais por meio da linguagem que da língua, tirava o sono dos milicos.
Noel e eletronismos
Nascida nos sofisticados redutos da zona sul carioca, a bossa nova, por ser um movimento jovem, não tardou em desenvolver um viés político, muito adequado aos shows de universitários. Se uma linha mais "lírica" foi mantida, liderada pelo gênio maior do movimento, Tom Jobim, as correntes não se conflitavam.
E essa linha mais "pensante" e comprometida com nossa realidade da MPB desenvolveu-se ainda mais com a chegada do tropicalismo. Ou seja, Chico e Caetano estavam do mesmo lado, ainda que suas músicas tivessem características diversas. Chico, por meio de uma coloquialidade a la Noel Rosa, por meio de uma fina poética, abordava destinos e fatos aparentemente suburbanos que, na verdade, traziam subtextos repletos de informações que aqueciam a atmosfera política do momento.
Caetano, no outro extremo, fazia uma música de pretensões universalistas, apoiada nos eletronismos de linguagens atuais assim como no repertório de vanguarda da música erudita. O talento de ambos, porém, fazia com que suas contribuições se espalhassem e confortassem corações e mentes ansiosas, tornando inesquecíveis aqueles momentos de nossa cultura popular.
Os tempos mudaram, ambos aí estão, mas, desta vez, em caminhos opostos profissional e politicamente. Chico parece ter se desencantado com a criação musical após a liberação geral das possibilidades de expressão, interessando-se por outras formas de expressão.
Caetano, irrequieto, segue atuando sempre com novos projetos, a cada ano mantendo o pique da fase tropicalista.
Por sua presença no dia-a-dia da movimentação cultural e social do país, Caetano resolve adotar uma posição crítica ao atual governo, envolvido em intrincadas teias. Chico, como num ato de nostalgia, resolve apoiar Lula, talvez o imaginando ainda a figura heróica dos tempos de chumbo, era em que o próprio Chico também fora vítima da repressão.
Numa terceira via, porém, corre a atual música popular brasileira produzida pela indústria da comunicação eletrônica, destituída de talentos como os de Chico e Caetano.
Seja qual for o vencedor da eleição, dificilmente vamos ter momentos como aqueles representados por ambos. Despoluir um rio é fácil. Recuperar a criatividade popular espontânea que havia neste país parece impossível, seja qual for o novo salvador da pátria.


JÚLIO MEDAGLIA é maestro e crítico musical, autor de "Música Impopular" (ed. Global).
CD - Caetano Veloso acaba de lançar "Cê" (Universal). Já Chico lançou "Carioca" (Biscoito Fino).



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