São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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Populismo X Tecnocracia

Conhecimento é poder

ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Existe nas palavras uma bruxaria e um fascínio que lhes dão tremenda força, a qual supera toda explicação" (South). Cuidado com os vocábulos, sobretudo quando ordenados em par e submetidos ao mesmerizante "ismo"! A cautela deve imperar sempre que são esmiuçados problemas sociais, econômicos, políticos. Sainte-Beuve recomenda prudência no uso do sufixo, pois ele só fornece boa consciência aos que atacam fantasmas.
"Se fosse possível discernir e separar o que pertence ao puro escritor vivamente inspirado e à caneta divertida que se empenha, o quanto não se deveria descontar do absolutismo de Joseph de Maistre, do ceticismo de Montaigne, do serafismo de Francisco de Sales e do jansenismo de Agostinho!" ("Port-Royal").
Polemistas de má-fé (uma quase tautologia) pespegam nos adversários um "ismo" qualquer. A grafia assim envenenada cumpre o papel da "embreagem" proposta por Benveniste. Sem conceitos para enunciar um complexo objetivo ou subjetivo, o locutor move a embreagem dos sufixos e dá a causa por vencida.
É o caso do "populismo" e do "tecnocratismo". Na recente história política e cultural, muitas atitudes nomeadas como "populismo" uniram-se a todo um aparato tecnocrático.
Demagogos podem servir como face humana de burocracias movidas por frios cálculos. O poder nazista e o seu primo soviético usaram a liderança de massas e a conjugaram a sofisticadas engenharias geopolíticas, econômicas, psicológicas, propagandísticas e repressivas.

Sem ismos
O "ismo" amplia certas maneiras de pensar e agir. Ele é caricatura com traços de verdades originais. O "populismo" exagera a soberania popular, algo essencial no Estado de Direito. Tal atitude deixa na sombra outros requisitos do Estado, como a institucionalização jurídica, os mecanismos de comando e planejamento. As pretensões tecnocráticas tendem a ignorar a soberania dos cidadãos, em prol da mecânica jurídica, econômica, científica, estratégica.
Quem estuda etnólogos como André-Leroi Gourhan sabe que o nosso corpo e a inteligência resultam de milênios nos quais a humanidade tateou a natureza e produziu técnicas para expandir a ordem biológica na qual nascemos. A nossa estrutura corporal resulta da politecnia que ordenou a nossa ordem geográfica e histórica.
Ideólogos -na trilha de Heidegger- acusam o imperativo técnico com o "ismo" e toldam as maiores esperanças do coletivo humano. O Estado é um mecanismo complexo. Ele garante as ordens políticas e científicas que ampliam a vida.
Mas, sem o poder do povo, o elemento técnico é desregulado ou serve apenas para a dominação oligárquica e mesmo totalitária. Sejam esquecidos os "ismos" e asseguremos, em nosso país, o elo entre saberes técnicos e ordem democrática.
Mesmo para o Brasil vale o enunciado de Bacon: "Knowledge and power meet in one" ["Conhecimento é poder"]. Nações que não têm o Estado democrático de Direito e não podem contar com saberes avançados recebem papel subalterno na ordem mundial.
No Brasil, ciência e técnicas ainda são assuntos exclusivos do governo. É preciso abandonar o feitiço das antinomias falsas. Precisamos de poder soberano democrático. Urge produzir o maior número possível de novas técnicas.
O resto é apenas o "ismo" da pura má-fé, disfarçada por máscaras ideológicas.


ROBERTO ROMANO é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp.


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