São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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Um truque aborrecido

Em "Grandes Símios", a mistura de paródia e transgressão de Will Self sofre de envelhecimento precoce

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Virar o mundo ao avesso para mostrar de maneira risível a farsa em que vivemos foi, desde as origens, o motor da sátira, desde as "Fábulas", de Esopo, até a "Revolução dos Bichos", de George Orwell.
Os maiores praticantes do gênero brotaram na Inglaterra, tingindo com o esporte nacional do sarcasmo um universo em que regras sociais e uma moral restrita eram mais que suficientes para a explosão do absurdo.
Entre os mestres do gênero, é inevitável a referência com reverência aos nomes de Jonathan Swift (1687-1745) e Samuel Butler (1835-1902). O primeiro, com "Viagens de Gulliver", ridicularizou os políticos de sua época com uma verve ainda mais válida em nossos tempos. Com "Erewhon" (anagrama de "nowhere", lugar nenhum), Butler caricaturou a Inglaterra vitoriana. Com a ambição de integrar essa nobre linhagem, o também britânico Will Self retoma o gênero em "Os Grandes Símios".

Exercícios cínicos
O autor vem construindo, desde seus primeiros romances, painéis cuja marca mais fácil de identificar é a ironia ao individualismo, ao narcisismo e ao consumismo de seus contemporâneos. Seu fascínio assumido pela obra de J.G. Ballard se reflete nessa obsessão por tais sintomas, potencializados por meio de parábolas de excessos, que se afirmam como exercícios cínicos e críticos dos costumes e manias.
Outro fantasma que paira nos escritos de Self é o de William Burroughs e sua elegia às drogas. Movidos a doses cavalares de substâncias lícitas e ilícitas, os personagens de Will Self são particularmente reconhecíveis como alter egos do autor, cuja fama de adicto fez a alegria dos tablóides locais quando, durante a cobertura das eleições britânicas de 1997 como jornalista para o "Observer", foi supostamente flagrado cheirando heroína no banheiro do avião de John Major, então primeiro-ministro.
Há uma década, essa mistura de transgressão, sobretudo sexual, e auto-referências paródicas pôde parecer, se não inovadora, pelo menos saborosa. Mas sua atenção "jornalística" à própria época sofre daquilo que se chama envelhecimento precoce, ainda mais quando as traduções chegam com atraso ao público brasileiro, como no caso deste "Os Grandes Símios", cujo original é de 1997.
Aqui, a sátira é a ambição, mas os resultados indicam a fadiga do modelo literário do autor. O romance narra as desventuras de Simon Dykes, pintor londrino paparicado pelos críticos de arte, por amigos de ocasião e por outros bizarros indivíduos da espécie "artista".
Às vésperas de abrir uma exposição com obras de impacto, Simon acorda nos braços da namorada, depois de uma noite movimentada de álcool, ecstasy, cocaína e sexo, transformado em chimpanzé. À sua volta, o mundo caiu numa versão prosaica de "Planeta dos Macacos", com uma inversão completa dos papéis: os humanos são atrações de zoológico, enquanto os símios ocupam seu lugar, desempenhando as mesmas tarefas de sempre, apesar de mais interessados em catação e em cópulas intermitentes com parceiras no cio.

Simulações invertidas
Num primeiro momento, o alvo da intenção paródica é o universo das artes, com sua tipologia idiossincrática e sua visão do mundo como uma eterna festa movida a aditivos.
Quando se esgota esse truque repetido de trabalhos anteriores, Self desloca sua mira para os homens da ciência, psiquiatras e antropólogos à frente, com um longo cortejo de simulações invertidas das falas dos intérpretes da neurose do protagonista que o leva a se imaginar um humano perdido numa Londres simiesca.
"No passado, meu trabalho foi muito atacado por sua aparente falta de compaixão. Crítico após crítico assinalou que trato meus protagonistas com diabólica desconsideração, borrifando infelicidade e feiúra de caráter em seus pelames.
Em "Grandes Símios" construí, por mera coincidência, a única reação possível a essas idiotas objeções, fruto de uma crônica incompreensão do sentido e do propósito da sátira -fiz meu protagonista humano!", defende-se o autor no prefácio.
Mas sua metamorfose símia (com a qual insere Kafka dentro do seu indigesto coquetel literário, depois de citá-lo em epígrafe, para não deixar dúvidas), narrada ao longo de mais de 400 entediantes páginas, não passa de mais uma piada sem graça.


GRANDES SÍMIOS
Autor: Will Self Tradução: José Rubens Siqueira Editora: Alfaguara (tel. 0/xx/21/2556-7824) Quanto: R$ 59,90 (406 págs.)



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