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Um truque aborrecido
Em "Grandes Símios", a mistura de paródia e transgressão de Will Self sofre de envelhecimento precoce
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Virar o mundo ao
avesso para mostrar de maneira risível a farsa em que
vivemos foi, desde
as origens, o motor da sátira,
desde as "Fábulas", de Esopo,
até a "Revolução dos Bichos",
de George Orwell.
Os maiores praticantes do
gênero brotaram na Inglaterra,
tingindo com o esporte nacional do sarcasmo um universo
em que regras sociais e uma
moral restrita eram mais que
suficientes para a explosão do
absurdo.
Entre os mestres do gênero,
é inevitável a referência com
reverência aos nomes de Jonathan Swift (1687-1745) e Samuel Butler (1835-1902). O primeiro, com "Viagens de Gulliver", ridicularizou os políticos
de sua época com uma verve
ainda mais válida em nossos
tempos. Com "Erewhon" (anagrama de "nowhere", lugar nenhum), Butler caricaturou a
Inglaterra vitoriana. Com a
ambição de integrar essa nobre
linhagem, o também britânico
Will Self retoma o gênero em
"Os Grandes Símios".
Exercícios cínicos
O autor vem construindo,
desde seus primeiros romances, painéis cuja marca mais fácil de identificar é a ironia ao
individualismo, ao narcisismo
e ao consumismo de seus contemporâneos. Seu fascínio assumido pela obra de J.G. Ballard se reflete nessa obsessão
por tais sintomas, potencializados por meio de parábolas de
excessos, que se afirmam como
exercícios cínicos e críticos dos
costumes e manias.
Outro fantasma que paira
nos escritos de Self é o de William Burroughs e sua elegia às
drogas. Movidos a doses cavalares de substâncias lícitas e ilícitas, os personagens de Will Self
são particularmente reconhecíveis como alter egos do autor,
cuja fama de adicto fez a alegria
dos tablóides locais quando,
durante a cobertura das eleições britânicas de 1997 como
jornalista para o "Observer", foi
supostamente flagrado cheirando heroína no banheiro do
avião de John Major, então primeiro-ministro.
Há uma década, essa mistura
de transgressão, sobretudo sexual, e auto-referências paródicas pôde parecer, se não inovadora, pelo menos saborosa.
Mas sua atenção "jornalística"
à própria época sofre daquilo
que se chama envelhecimento
precoce, ainda mais quando as
traduções chegam com atraso
ao público brasileiro, como no
caso deste "Os Grandes Símios", cujo original é de 1997.
Aqui, a sátira é a ambição,
mas os resultados indicam a fadiga do modelo literário do autor. O romance narra as desventuras de Simon Dykes, pintor londrino paparicado pelos
críticos de arte, por amigos de
ocasião e por outros bizarros
indivíduos da espécie "artista".
Às vésperas de abrir uma exposição com obras de impacto,
Simon acorda nos braços da namorada, depois de uma noite
movimentada de álcool, ecstasy, cocaína e sexo, transformado em chimpanzé.
À sua volta, o mundo caiu numa versão prosaica de "Planeta
dos Macacos", com uma inversão completa dos papéis: os humanos são atrações de zoológico, enquanto os símios ocupam
seu lugar, desempenhando as
mesmas tarefas de sempre,
apesar de mais interessados em
catação e em cópulas intermitentes com parceiras no cio.
Simulações invertidas
Num primeiro momento, o
alvo da intenção paródica é o
universo das artes, com sua tipologia idiossincrática e sua visão do mundo como uma eterna festa movida a aditivos.
Quando se esgota esse truque
repetido de trabalhos anteriores, Self desloca sua mira para
os homens da ciência, psiquiatras e antropólogos à frente,
com um longo cortejo de simulações invertidas das falas dos
intérpretes da neurose do protagonista que o leva a se imaginar um humano perdido numa
Londres simiesca.
"No passado, meu trabalho
foi muito atacado por sua aparente falta de compaixão. Crítico após crítico assinalou que
trato meus protagonistas com
diabólica desconsideração,
borrifando infelicidade e feiúra
de caráter em seus pelames.
Em "Grandes Símios" construí,
por mera coincidência, a única
reação possível a essas idiotas
objeções, fruto de uma crônica
incompreensão do sentido e do
propósito da sátira -fiz meu
protagonista humano!", defende-se o autor no prefácio.
Mas sua metamorfose símia
(com a qual insere Kafka dentro do seu indigesto coquetel literário, depois de citá-lo em
epígrafe, para não deixar dúvidas), narrada ao longo de mais
de 400 entediantes páginas,
não passa de mais uma piada
sem graça.
GRANDES SÍMIOS
Autor: Will Self
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Alfaguara (tel. 0/xx/21/2556-7824)
Quanto: R$ 59,90 (406 págs.)
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