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A mensagem na garrafa
Em "Por um Novo Machado de Assis", o crítico inglês John Gledson busca decifrar o sentido último das ficções do autor
de "Dom Casmurro"
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Poucos críticos literários praticam seu ofício com tanta retidão
quanto John Gledson, que está lançando "Por Um Novo Machado de
Assis", uma coletânea de ensaios sobre o autor de "Dom
Casmurro", tema principal de
seus estudos há muitos anos.
Isso fica claro quando se
constata como ele valoriza e
defende outros críticos de sua
própria linhagem, sem, no entanto, deixar de fazer restrições ou apresentar discordâncias -e o exemplo maior aqui é
Roberto Schwarz.
Mas, principalmente, isso fica ainda mais claro pelo modo
como discute os autores com os
quais não se alinha. Ele os nomeia e aceita com prazer e
abertura o debate, sem em nenhum momento tentar desqualificar qualquer "oponente". Gledson não vê, inclusive,
nenhum problema em afirmar
que mesmo posições e pressupostos teóricos bastante incompatíveis com os dele podem até levar a conclusões próximas -e o exemplo evidente
aqui é Abel Barros Baptista.
Intenção do autor
Nos 14 textos reunidos no volume, o autor analisa contos,
crônicas, a personagem Capitu,
as relações entre literatura e
história, leituras femininas e
até faz "especulações sobre sexo e sexualidade" em Machado
de Assis e Graciliano Ramos:
cada abordagem reforça a percepção de que se trata de um
pesquisador com profundo domínio de seu assunto.
Em vez, contudo, de discutir
um ou mais ensaios, o que seria
difícil por conta dos limites de
espaço, gostaria de brevemente
comentar uma idéia sempre
defendida por John Gledson e
que é aqui mais uma vez retomada -a questão da intenção
do autor: "Como afirmei então
[em "Impostura e Realismo'],
eu era (e continuo sendo) um
"intencionista declarado" no
sentido (restrito) que "acredito
ser uma parte essencial do papel do crítico revelar os significados que o escritor pretendia
comunicar".".
Corajosa e contestável, tal
posição, ainda que na prática
seja assumida por muitas pessoas, raramente nos dias de hoje é defendida de modo público,
uma vez que se aproxima da
idéia do senso comum a respeito do texto artístico (qualquer
professor se lembrará com facilidade das inúmeras vezes em
que, depois de analisar em sala
de aula um conto ou poema, ouviu, com variações, a pergunta:
"Mas o autor quis realmente dizer isso?"). Questão rica e polêmica na história dos estudos literários, atualmente ela é pouco debatida.
Como amostra do problema,
pode-se tomar um exemplo extraído de "O Espelho". O protagonista da narrativa, a certa altura do enredo, recebe da tia o
"privilégio" de ter em seu quarto um espelho, assim descrito:
"Obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples...
Era um espelho que lhe dera a
madrinha, e que esta herdara
da mãe, que o comprara a uma
das fidalgas vindas em 1808
com a corte de d. João 6º".
Gledson se pergunta as razões de o escritor ter inserido o
"pedigree" da peça no conto e
conclui: "O Brasil de fato tornou-se um império independente sob a regência de d. Pedro 1º, filho de d. João, em 1822,
mas esta era a primeira etapa
do processo. Valendo-me da
metáfora de Machado: pela primeira vez o país se viu no espelho (...). Não consigo imaginar
nenhum outro motivo para a
menção do pedigree".
Assim como o objeto refletia
um borrão quando Jacobina
nele se olhava, ele refletiria, figuradamente, o problema da
"existência do Brasil como nação". Pode-se, é claro, argumentar assim.
Será, contudo, que isso não
implica forçar um pouco a interpretação? Será que o "pedigree" não está ali, de modo mais
simplório, só para, por contraste, reforçar a boçalidade desse
narrador (Jacobina pouco antes assumira a narração) que se
julga tão importante?
Ir além dos significados
Pensando em termos mais
genéricos, quando se fala em
intenção, é legítimo especular
qual é ela? Ou qual o seu propósito? Para dizer de outro jeito,
incorporando a premissa: qual
teria sido a intenção de Machado de Assis ao intencionalmente cifrar sua obra, em transformar seus contos e romances em
uma espécie de mensagem na
garrafa para críticos futuros?
Isso não seria mais ou menos
o mesmo que diagnosticar uma
doença grave, potencialmente
fatal, escrever um relatório sobre ela e guardá-lo em uma gaveta trancada para ser lido décadas depois, quando o doente
já há muito morreu e virou pó?
Ninguém duvida de que existe, em certa medida, uma intenção autoral; talvez existam
também "diagnósticos" e "relatórios", mas a obra de qualquer
grande escritor necessariamente transcende a sua própria capacidade de compreendê-la, e a tarefa do crítico é ir
além "dos significados que pretendia comunicar", como, certamente fazem, a despeito de
suas "intenções", estes ensaios,
cheios de percepções agudas e
relevantes, de John Gledson.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O
Ano da Morte de Ricardo Reis'" (Globo).
POR UM NOVO MACHADO DE ASSIS
Autor: John Gledson
Editora: Companhia das Letras (tel.
0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: preço indefinido, 440 págs.
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