São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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O turista acidental

Coletânea de textos de Italo Calvino traça uma autobiografia intelectual a partir de reflexões sobre Paris, Turim e os EUA

MARIA BETÂNIA AMOROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Italo Calvino é para seu grande público internacional o autor de estilo límpido e lapidado de "As Cidades Invisíveis" e de "Se um Viajante numa Noite de Inverno". O fato de ser italiano assume uma importância muito pequena, já que o que prende os leitores a Calvino é a boa literatura que foi sempre capaz de produzir.
Com a publicação de "Eremita em Paris" começa a se descortinar para nós o escritor na sua autobiografia intelectual, nas suas vestes também de homem público, protagonista no debate cultural italiano desde muito cedo.
Encerradas as atividades diretamente ligadas à Segunda Guerra, Calvino tanto começa a escrever e publicar pequenos contos como colabora em jornais, principalmente junto ao "L'Unità", órgão do Partido Comunista Italiano ao qual o escritor se filia, passando a atuar como militante político e do qual se destacará somente em 1957. No mesmo período dá também os primeiros passos como editor, ao lado de outros grandes nomes da literatura moderna italiana, como Elio Vittorini, Cesare Pavese e Natalia Ginszburg na não menos importante editora Einaudi.
Os anos 60 e 70 são de distanciamento da política e de reflexão sobre a história, sobre a geração do pós-guerra. Os cenários não são mais a originária San Remo, a Turim da Einaudi nem Roma, mas Nova York e Paris, escolhidas como ponto de passagem e de observação.
O novo livro foi organizado originalmente pela mulher do escritor, Esther Calvino, em 1994, período em que começou a ser publicada em papel-bíblia a reunião das obras editadas e inéditas de Calvino nos volumes azuis, de capa dura, da Mondadori.

O intelectual
A partir desse conjunto de textos, é impossível não notar a importância do Calvino intelectual, sempre por ele mesmo deixado à sombra, muito mais interessado em construir uma imagem de autor capaz de orientar seus leitores nas novas leituras do que lhes fornecer uma autobiografia confessional. O escritor ganhou o mundo; o intelectual e o ensaísta ficaram para os da casa ou para especialistas.
Os EUA que visitou em 1959-1960, graças a uma bolsa de estudos de seis meses da Fundação Ford para jovens escritores estrangeiros, por exemplo, são retratados do ponto de vista de um editor que teve por cicerones escritores, artistas, professores universitários e que transmite o que viu, sentiu e concluiu para seu grupo de amigos e colaboradores.
O contraponto ideal -mas que não consta deste novo livro- para a dimensão pública de Calvino seriam as anotações feitas por ocasião de uma outra viagem, anterior a essa, à então União Soviética, em 1952.
As comparações entre as duas viagens, entre os dois "sistemas", despontam em vários momentos da viagem americana, e Calvino vai se preparando nesses textos para assumir uma outra figura, esta também pública, a do observador que olha à distância o mundo desencantado na sua fragmentação e caoticidade.
Obedecendo a um desenho cronológico, "Eremita em Paris" inicia com "Forasteiro em Turim", texto publicado em 1953, memória comovida da cidade no seu significado amplo de política, amizade e literatura, e se encerra com uma entrevista de 1985, ano da morte do escritor, intercalando-se, entre um e outro, textos autobiográficos e outras entrevistas.

Cidade poética
O relato da vivência americana ocupa cerca de cem páginas e sugere um auto-retrato fresco e espontâneo do escritor. O texto que dá título à coletânea é de 1974, e nele Paris surge de uma forma poética, espécie de reelaboração de temas e com traços estilísticos já presentes em "As Cidades Invisíveis", publicado em 1972.
Sabe-se lá como seria a organização de um livro autobiográfico se totalmente organizado pelo autor; este não o foi, mas a leitura do volume leva a pensar em algo entre um retrato para a posteridade -da ciosa Esther- e o auto-retrato, temeroso em se imobilizar ao se definir em excesso, mas ambos são uma demonstração das eternas contas prestadas por Calvino com a sua história pessoal enquanto intelectual e escritor italiano.


MARIA BETÂNIA AMOROSO é professora de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (SP) e autora de "A Paixão pelo Real - Pasolini e a Crítica Literária" (Edusp).

EREMITA EM PARIS
Autor: Italo Calvino
Tradução: Roberta Barni
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 39,50 (264 págs.)



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