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+ Sociedade
Invasores de corpos
Sem controle, China se torna o principal fornecedor mundial de cadáveres mumificados para o mercado internacional de exposições em museus
DAVID BARBOZA
Escondido no meio da
zona industrial da cidade costeira de Dalian, na China, voltada
às exportações, existe
um lugar que só pode ser descrito como uma fábrica moderna de mumificação.
Dentro de uma série de construções que não têm placas ou
letreiros, centenas de operários chineses, alguns deles sentados em formações próprias
de linhas de montagem, limpam, cortam, dissecam, preservam e modificam cadáveres
humanos, preparando-os para
o mercado internacional de exposições em museus.
"Tire a capa, tire", ordena um
gerente chinês, enquanto uma
equipe de operários começa a
remover um pano que recobre
a cabeça de um cadáver armazenado num recipiente de aço
inoxidável repleto de formalina, um conservante químico.
"Mostrem o rosto."
O mentor dessa operação é
Gunther von Hagens, um cientista alemão de 61 anos cuja exposição "Mundos Corporais" já
atraiu 20 milhões de pessoas
em todo o mundo nos últimos
dez anos e arrecadou mais de
US$ 200 milhões [R$ 429,3 milhões], exibindo cadáveres humanos conservados, com a pele
retirada para deixar à mostra
seus músculos e tendões bem
definidos.
Indústria underground
Os milhões de pessoas que já
foram ver "Mundos Corporais"
e exposições semelhantes provocaram o surgimento de uma
nova e medonha miniindústria
underground na China.
Em razão da pouca fiscalização governamental, da abundância de mão-de-obra barata
saída das escolas de medicina e
do acesso fácil a cadáveres e órgãos humanos, que parecem vir
principalmente da China e da
Europa, pelo menos dez outras
fábricas de corpos foram abertas na China nos últimos anos.
Essas empresas atendem a
pedidos regulares para exposições, enviando cadáveres conservados ao Japão, Coréia do
Sul e EUA.
A concorrência acirrada entre os produtores de exposições
de cadáveres levou a acusações
de roubos de direitos autorais,
concorrência injusta e tráfico
de corpos humanos em um país
que tem a reputação de tolerar
o crescente comércio clandestino de órgãos e outras partes
de corpos.
Na China, não é fácil determinar quem opera no ramo dos
cadáveres e qual é a origem dos
corpos utilizados. Os museus
que promovem exposições de
corpos na própria China alegam o repentino "esquecimento" dos nomes de quem forneceu os cadáveres, policiais mudam a toda hora suas versões
sobre o fim que deram a corpos,
e mesmo universidades já confirmaram e depois negaram a
presença de operações de conservação de cadáveres em suas
instalações.
Ativistas dos direitos humanos criticam as exposições, descrevendo-as como "freak
shows" que podem empregar
os cadáveres de doentes mentais e detentos executados. Em
junho, a polícia de Dandong
descobriu dez cadáveres no
quintal de um agricultor que
estariam sendo usados por uma
firma financiada por estrangeiros e que tinha envolvimento
ilegal no ramo da conservação
de corpos.
Em julho, preocupado com o
crescente comércio ilegal de
cadáveres, o governo chinês
lançou regulamentos novos
que proíbem a compra ou a
venda de corpos humanos e
restringem a importação e exportação de espécimes humanos, exceto para finalidades de
pesquisas. Mas não está claro
como os novos regulamentos
vão afetar as fábricas de corpos.
A Premier Exhibitions, uma
das maiores empresas mundiais de exposições e criadora
de "Bodies - The Exhibition"
(Corpos - A Exposição), que está em cartaz em Nova York até
julho de 2007, negou-se a comentar o assunto, dizendo que
ainda não estudara os novos regulamentos.
Mas Gunther von Hagens se
disse a favor das novas normas,
observando que elas não vão
impedi-lo de fazer negócios, já
que dirige um centro de pesquisas, e suas exposições utilizam
sobretudo doadores europeus,
não chineses.
Entretanto os novos regulamentos podem impedir a exportação de cadáveres da China
para mostras nos EUA, colocando em risco possivelmente
dezenas de milhões de dólares.
Sucesso de público
A Premier Exhibitions, empresa de capital aberto com sede em Atlanta, concordou recentemente em pagar US$ 25
milhões [R$ 53,7 milhões] para
garantir o fornecimento regular de cadáveres conservados
da China. Especialistas dizem
que as exposições com cadáveres em conserva estão hoje entre as atrações mais procuradas
dos museus americanos de
ciências e de história natural.
"São exposições que fazem
um sucesso enorme", disse Robert West, que acompanha o
setor das mostras em museus
para a consultoria Informal
Learning Experiences, de Washington. "Não temos visto nada
assim desde a chegada dos dinossauros robóticos, na década
de 1980." O setor é acossado
por dúvidas em relação à origem dos cadáveres expostos.
A Premier diz que sua exposição é feita com corpos chineses que a polícia cedeu a escolas
de medicina e que não foram
reivindicados por parentes dos
mortos. A empresa afirma que
nenhum dos cadáveres que utiliza é de presos executados ou
de pessoas que morreram de
causas não-naturais.
Mas funcionários da alfândega, em Dalian, e da Universidade Médica de Dalian disseram
que não têm registros que indiquem que o fornecedor da Premier tenha adquirido cadáveres e os transportado para exposições no exterior. "Não sei
de onde vieram os cadáveres",
disse um porta-voz da universidade, Meng Xianzhi.
Gunther von Hagens, que
abriu a primeira fábrica de preservação de cadáveres em grande escala em Dalian, em 1999,
disse que cumpre os regulamentos que regem o setor.
A rivalidade acirrada entre a
Premier e a empresa de Von
Hagens, o Instituto de Plastinação, já chegou aos tribunais, onde estão sendo discutidos desde reivindicações de copyright
até direitos sobre o título
"Mundos Corporais". Cada lado já declarou implicitamente,
em público, que o outro lado
pratica conduta antiética na
aquisição de corpos da China.
Parte da tensão se deve ao fato de que o único fornecedor de
corpos para a Premier é o dr.
Sui Hongjin, ex-gerente-geral
da operação de Von Hagen em
Dalian. Von Hagen afirma que,
ao mesmo tempo em que era
seu gerente-geral, Sui mantinha em segredo uma operação
clandestina própria de cadáveres em Dalian. Von Hagen disse
que despediu Sui ao tomar conhecimento do fato.
Sui, que dirige sua própria fábrica de cadáveres em Dalian,
se negou a conceder entrevista.
Von Hagens disse que começou a rastrear seus concorrentes na China, porque, como
aconteceu com outras empresas estrangeiras que operam fábricas na China, sua firma caiu
vítima de empreendedores chineses desonestos, que criaram
exposições "de imitação" e ingressaram no mercado com cadáveres que não foram bem
conservados.
Para fundamentar seu argumento, Von Hagens convidou
dois jornalistas a ir a Dalian para conhecer sua fábrica, que ele
afirmou ser o primeiro centro
de conservação de corpos criado na China.
Ele também contou como
acabou ingressando nesse ramo de atividade. Tendo crescido na Alemanha Oriental, foi
preso por tentar abandonar o
país quando tinha 20 e poucos
anos. Mais tarde, mudou-se para a Alemanha Ocidental, onde
se formou em medicina.
Von Hagens contou que, na
década de 1970, criou um processo que lhe permitia conservar cadáveres, mediante a remoção dos fluidos e sua substituição por polímeros químicos
ou plástico, num processo de
conservação ao qual deu o nome de plastinação.
Ele começou a percorrer o
mundo com seus "corpos plastinados", tendo feito sua primeira exposição no Japão, em
1995. A exposição foi visitada
por 3 milhões de pessoas.
Inicialmente, disse Von Hagens, teve dificuldade em exibir
seus espécimes humanos na
Europa, onde começou a ser
apelidado de Dr. Morte ou Dr.
Frankenstein. A imprensa européia chegou a compará-lo ao
médico de campos de extermínio nazistas Josef Mengele.
Valor educativo
Então ele foi à China, onde
encontrou mão-de-obra barata, estudantes interessados,
poucas restrições governamentais e acesso fácil a cadáveres
chineses, que ele afirma utilizar
principalmente para experimentos e para finalidades de
pesquisa médica, não para suas
exposições.
"Quando vim para cá, ele disse que não teríamos problemas
com os cadáveres chineses",
disse Von Hagens, falando de
seu ex-gerente-geral, Sui. "Falou que poderíamos usar cadáveres que não tinham sido procurados por ninguém. Hoje em
dia isso é difícil, mas naquela
época não havia problemas."
Von Hagens insiste em que
boa parte do mundo já aceita o
valor educativo e científico da
produção de cadáveres conservados. Em sua grande fábrica
em Dalian, Gunther von Hagens, que é professor visitante
da Faculdade de Odontologia
da Universidade de Nova York,
produz também vídeos animados, livros, DVDs e animais empalhados de brinquedo com capas que podem ser levantadas
para revelar órgãos internos facilmente removíveis. Sua empresa está diversificando sua
produção para incluir animais
plastinados, que já foram incluídos em várias exposições.
Na visita à sua fábrica, Von
Hagens apontou para um grande recipiente no pátio que, afirmou, continha um cadáver de
elefante que acabara de chegar
de um zoológico alemão.
Então, entrou num depósito
e mandou alguns operários tirarem de um tanque de álcool o
corpo de um grande urso, seguido por vários cadáveres humanos que ele disse já estarem
prontos para ser dissecados e
plastinados.
"Cada espécime é um tesouro anatômico", falou o médico.
Cerca de 260 operários em
Dalian processam aproximadamente 30 cadáveres por ano. Os
funcionários, que recebem entre US$ 200 [R$ 429,3] e US$
400 [R$ 858,6] por mês, primeiro dissecam os corpos e retiram a pele e a gordura, depois
os inserem em máquinas que
substituem os fluidos humanos
por polímeros químicos.
Posturas polêmicas
Numa grande oficina conhecida como a sala de posicionamento, cerca de 50 formandos
de escolas de medicina trabalham com os mortos: retirando
gordura de cadáveres, colocando os corpos em posições sentadas ou em pé ou fazendo os
cadáveres assumirem posições
naturais em vida, como por
exemplo posturas de balé ou
segurando um violão.
Von Hagens admite que essas posturas são polêmicas.
"Mesmo meu ex-gerente perguntou: "Será que é apropriado
colocar um homem morto sobre um cavalo morto?'", disse
Von Hagens. "Mas eu decidi
que isso é qualidade real."
Este texto foi publicado no "New York Times".
Tradução de Clara Allain.
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