São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

Texto Anterior | Índice

+ Sociedade

Invasores de corpos

Sem controle, China se torna o principal fornecedor mundial de cadáveres mumificados para o mercado internacional de exposições em museus

DAVID BARBOZA

Escondido no meio da zona industrial da cidade costeira de Dalian, na China, voltada às exportações, existe um lugar que só pode ser descrito como uma fábrica moderna de mumificação.
Dentro de uma série de construções que não têm placas ou letreiros, centenas de operários chineses, alguns deles sentados em formações próprias de linhas de montagem, limpam, cortam, dissecam, preservam e modificam cadáveres humanos, preparando-os para o mercado internacional de exposições em museus.
"Tire a capa, tire", ordena um gerente chinês, enquanto uma equipe de operários começa a remover um pano que recobre a cabeça de um cadáver armazenado num recipiente de aço inoxidável repleto de formalina, um conservante químico. "Mostrem o rosto."
O mentor dessa operação é Gunther von Hagens, um cientista alemão de 61 anos cuja exposição "Mundos Corporais" já atraiu 20 milhões de pessoas em todo o mundo nos últimos dez anos e arrecadou mais de US$ 200 milhões [R$ 429,3 milhões], exibindo cadáveres humanos conservados, com a pele retirada para deixar à mostra seus músculos e tendões bem definidos.

Indústria underground
Os milhões de pessoas que já foram ver "Mundos Corporais" e exposições semelhantes provocaram o surgimento de uma nova e medonha miniindústria underground na China.
Em razão da pouca fiscalização governamental, da abundância de mão-de-obra barata saída das escolas de medicina e do acesso fácil a cadáveres e órgãos humanos, que parecem vir principalmente da China e da Europa, pelo menos dez outras fábricas de corpos foram abertas na China nos últimos anos.
Essas empresas atendem a pedidos regulares para exposições, enviando cadáveres conservados ao Japão, Coréia do Sul e EUA.
A concorrência acirrada entre os produtores de exposições de cadáveres levou a acusações de roubos de direitos autorais, concorrência injusta e tráfico de corpos humanos em um país que tem a reputação de tolerar o crescente comércio clandestino de órgãos e outras partes de corpos.
Na China, não é fácil determinar quem opera no ramo dos cadáveres e qual é a origem dos corpos utilizados. Os museus que promovem exposições de corpos na própria China alegam o repentino "esquecimento" dos nomes de quem forneceu os cadáveres, policiais mudam a toda hora suas versões sobre o fim que deram a corpos, e mesmo universidades já confirmaram e depois negaram a presença de operações de conservação de cadáveres em suas instalações.
Ativistas dos direitos humanos criticam as exposições, descrevendo-as como "freak shows" que podem empregar os cadáveres de doentes mentais e detentos executados. Em junho, a polícia de Dandong descobriu dez cadáveres no quintal de um agricultor que estariam sendo usados por uma firma financiada por estrangeiros e que tinha envolvimento ilegal no ramo da conservação de corpos.
Em julho, preocupado com o crescente comércio ilegal de cadáveres, o governo chinês lançou regulamentos novos que proíbem a compra ou a venda de corpos humanos e restringem a importação e exportação de espécimes humanos, exceto para finalidades de pesquisas. Mas não está claro como os novos regulamentos vão afetar as fábricas de corpos.
A Premier Exhibitions, uma das maiores empresas mundiais de exposições e criadora de "Bodies - The Exhibition" (Corpos - A Exposição), que está em cartaz em Nova York até julho de 2007, negou-se a comentar o assunto, dizendo que ainda não estudara os novos regulamentos.
Mas Gunther von Hagens se disse a favor das novas normas, observando que elas não vão impedi-lo de fazer negócios, já que dirige um centro de pesquisas, e suas exposições utilizam sobretudo doadores europeus, não chineses.
Entretanto os novos regulamentos podem impedir a exportação de cadáveres da China para mostras nos EUA, colocando em risco possivelmente dezenas de milhões de dólares.

Sucesso de público
A Premier Exhibitions, empresa de capital aberto com sede em Atlanta, concordou recentemente em pagar US$ 25 milhões [R$ 53,7 milhões] para garantir o fornecimento regular de cadáveres conservados da China. Especialistas dizem que as exposições com cadáveres em conserva estão hoje entre as atrações mais procuradas dos museus americanos de ciências e de história natural.
"São exposições que fazem um sucesso enorme", disse Robert West, que acompanha o setor das mostras em museus para a consultoria Informal Learning Experiences, de Washington. "Não temos visto nada assim desde a chegada dos dinossauros robóticos, na década de 1980." O setor é acossado por dúvidas em relação à origem dos cadáveres expostos.
A Premier diz que sua exposição é feita com corpos chineses que a polícia cedeu a escolas de medicina e que não foram reivindicados por parentes dos mortos. A empresa afirma que nenhum dos cadáveres que utiliza é de presos executados ou de pessoas que morreram de causas não-naturais.
Mas funcionários da alfândega, em Dalian, e da Universidade Médica de Dalian disseram que não têm registros que indiquem que o fornecedor da Premier tenha adquirido cadáveres e os transportado para exposições no exterior. "Não sei de onde vieram os cadáveres", disse um porta-voz da universidade, Meng Xianzhi.
Gunther von Hagens, que abriu a primeira fábrica de preservação de cadáveres em grande escala em Dalian, em 1999, disse que cumpre os regulamentos que regem o setor.
A rivalidade acirrada entre a Premier e a empresa de Von Hagens, o Instituto de Plastinação, já chegou aos tribunais, onde estão sendo discutidos desde reivindicações de copyright até direitos sobre o título "Mundos Corporais". Cada lado já declarou implicitamente, em público, que o outro lado pratica conduta antiética na aquisição de corpos da China.
Parte da tensão se deve ao fato de que o único fornecedor de corpos para a Premier é o dr. Sui Hongjin, ex-gerente-geral da operação de Von Hagen em Dalian. Von Hagen afirma que, ao mesmo tempo em que era seu gerente-geral, Sui mantinha em segredo uma operação clandestina própria de cadáveres em Dalian. Von Hagen disse que despediu Sui ao tomar conhecimento do fato.
Sui, que dirige sua própria fábrica de cadáveres em Dalian, se negou a conceder entrevista.
Von Hagens disse que começou a rastrear seus concorrentes na China, porque, como aconteceu com outras empresas estrangeiras que operam fábricas na China, sua firma caiu vítima de empreendedores chineses desonestos, que criaram exposições "de imitação" e ingressaram no mercado com cadáveres que não foram bem conservados.
Para fundamentar seu argumento, Von Hagens convidou dois jornalistas a ir a Dalian para conhecer sua fábrica, que ele afirmou ser o primeiro centro de conservação de corpos criado na China.
Ele também contou como acabou ingressando nesse ramo de atividade. Tendo crescido na Alemanha Oriental, foi preso por tentar abandonar o país quando tinha 20 e poucos anos. Mais tarde, mudou-se para a Alemanha Ocidental, onde se formou em medicina.
Von Hagens contou que, na década de 1970, criou um processo que lhe permitia conservar cadáveres, mediante a remoção dos fluidos e sua substituição por polímeros químicos ou plástico, num processo de conservação ao qual deu o nome de plastinação.
Ele começou a percorrer o mundo com seus "corpos plastinados", tendo feito sua primeira exposição no Japão, em 1995. A exposição foi visitada por 3 milhões de pessoas.
Inicialmente, disse Von Hagens, teve dificuldade em exibir seus espécimes humanos na Europa, onde começou a ser apelidado de Dr. Morte ou Dr. Frankenstein. A imprensa européia chegou a compará-lo ao médico de campos de extermínio nazistas Josef Mengele.

Valor educativo
Então ele foi à China, onde encontrou mão-de-obra barata, estudantes interessados, poucas restrições governamentais e acesso fácil a cadáveres chineses, que ele afirma utilizar principalmente para experimentos e para finalidades de pesquisa médica, não para suas exposições.
"Quando vim para cá, ele disse que não teríamos problemas com os cadáveres chineses", disse Von Hagens, falando de seu ex-gerente-geral, Sui. "Falou que poderíamos usar cadáveres que não tinham sido procurados por ninguém. Hoje em dia isso é difícil, mas naquela época não havia problemas."
Von Hagens insiste em que boa parte do mundo já aceita o valor educativo e científico da produção de cadáveres conservados. Em sua grande fábrica em Dalian, Gunther von Hagens, que é professor visitante da Faculdade de Odontologia da Universidade de Nova York, produz também vídeos animados, livros, DVDs e animais empalhados de brinquedo com capas que podem ser levantadas para revelar órgãos internos facilmente removíveis. Sua empresa está diversificando sua produção para incluir animais plastinados, que já foram incluídos em várias exposições.
Na visita à sua fábrica, Von Hagens apontou para um grande recipiente no pátio que, afirmou, continha um cadáver de elefante que acabara de chegar de um zoológico alemão.
Então, entrou num depósito e mandou alguns operários tirarem de um tanque de álcool o corpo de um grande urso, seguido por vários cadáveres humanos que ele disse já estarem prontos para ser dissecados e plastinados.
"Cada espécime é um tesouro anatômico", falou o médico.
Cerca de 260 operários em Dalian processam aproximadamente 30 cadáveres por ano. Os funcionários, que recebem entre US$ 200 [R$ 429,3] e US$ 400 [R$ 858,6] por mês, primeiro dissecam os corpos e retiram a pele e a gordura, depois os inserem em máquinas que substituem os fluidos humanos por polímeros químicos.

Posturas polêmicas
Numa grande oficina conhecida como a sala de posicionamento, cerca de 50 formandos de escolas de medicina trabalham com os mortos: retirando gordura de cadáveres, colocando os corpos em posições sentadas ou em pé ou fazendo os cadáveres assumirem posições naturais em vida, como por exemplo posturas de balé ou segurando um violão.
Von Hagens admite que essas posturas são polêmicas. "Mesmo meu ex-gerente perguntou: "Será que é apropriado colocar um homem morto sobre um cavalo morto?'", disse Von Hagens. "Mas eu decidi que isso é qualidade real."


Este texto foi publicado no "New York Times".
Tradução de Clara Allain.



Texto Anterior: Madame Bovary somos nós
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.