São Paulo, domingo, 29 de novembro de 2009

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O lugar Perfeito

Em "O Quadrado Amarelo", Alberto da Costa e Silva explora as relações entre épocas e estilos artísticos

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Sei que não é muito usual começar uma resenha deste jeito, mas... Que livro bonito! A capa, o formato, as ilustrações e o estilo de Alberto da Costa e Silva fazem de cada ensaio de "O Quadrado Amarelo" um exemplo de sensibilidade, gosto e precisão.
Verdade que alguns textos trazem a marca do trabalho encomendado: orelhas ou prefácios de livros (para a "Antologia Efêmera", de E.M. de Melo e Castro, ou para "Bolor", de Augusto Abelaira) ou pequenas introduções a catálogos de mostras de artes plásticas (as tapeçarias de Concessa Colaço, os quadros de Carlos Bracher).
Mesmo nessas páginas curtas, entretanto, estão presentes as inclinações e os interesses do autor. Especialista na história das relações entre África e Brasil, poeta e diplomata, Alberto da Costa e Silva é mestre no jogo das aproximações, dos diálogos, das continuidades.
É assim que, num estudo detalhado dos santos e anjos de madeira feitos por Mestre Dezinho [como é conhecido o artesão José Alves de Oliveira, 1916-61] para uma igreja em Teresina [PI], Alberto da Costa e Silva evoca a imagem de um Cristo em marfim que está no Museu Arqueológico de León, na Espanha. Ao texto não faltam fotografias para que acompanhemos sua argumentação.

Arte elaborada
Também riquíssimo em ilustrações, o ensaio mais longo de "O Quadrado Amarelo" é dedicado à escultura africana. O autor só menciona de passagem as conhecidas análises que vinculam a arte de Picasso às máscaras "primitivas" das tribos isoladas.
A escultura africana, ensina, tinha também sua vertente clássica, muito elaborada, na obra dos artistas a serviço das cortes e civilizações urbanas. Os altos-relevos em latão do Benin ou um saleiro de Serra Leoa, já com influências portuguesas, são testemunhos de uma experiência artesanal elaboradíssima.
Não tinham muito como interessar o projeto estético dos expressionistas e cubistas. Por isso mesmo, não são tão conhecidos e surgem como uma revelação deslumbrante para quem, lendo o livro de Alberto da Costa e Silva, poderá dimensionar a própria ignorância no que diz respeito aos assuntos africanos.
Ignorância que o autor assinala, num ensaio dos mais curiosos, na maior parte dos escritores brasileiros até recentemente. Em muitos de seus versos, Castro Alves (afinal de contas, "o poeta dos escravos") imaginava-os trazidos das areias do Egito, às voltas com caravanas e beduínos... Sem dúvida, a própria tradição artística africana, pelo menos na escultura, não se fixou por aqui.
Talvez, sugere o autor, porque o trabalho dos artesãos fosse muito valorizado em sua terra natal, justificando que não fossem entregues ao tráfico.

Influências e lembranças
Maior mistério estaria no parentesco entre a escultura popular brasileira e os modelos da arte românica da Espanha e de Portugal. O jogo das influências ocultas, dos caminhos subterrâneos que ligam culturas e autores distantes, claramente fascina o ensaísta, a meio caminho entre a pesquisa histórica e a crítica de arte.
A investigação de influências reaparece num ensaio sobre a poesia de Augusto dos Anjos [1884-1914]. A persuasiva defesa da qualidade literária de um autor tantas vezes considerado ridículo se soma à identificação de algumas vozes ocultas em sua obra: Antero de Quental, Olavo Bilac, Cesário Verde.
Ferreira Gullar e Jules Renard, Fernando Pessoa/Ricardo Reis e Leconte de Lisle: não são poucas nem arbitrárias as relações de que é capaz o ensaísta, sem dúvida privilegiado por uma memória excepcional. Tanto é assim que não gosta de tirar fotografias nem de manter diários de viagem. Escrevendo sobre suas impressões de Lagos, na Nigéria (cidade que conheceu em 1960), Alberto da Costa e Silva explica: "Para mim, é na memória que tudo deixa de ser instável e assume a sua permanência: o real é como o avesso de um tapete persa, e a lembrança possui a nitidez de contornos e de cores da face em que lhe pomos os pés e os olhos".
Por que o livro se chama "O Quadrado Amarelo"? Mais uma vez, o autor faz uma aproximação surpreendente, entre o fundo dourado de um retrato renascentista e uma tela abstrata de Waldemar da Costa [pintor, 1904-82]. Aqui, retângulos azuis e pretos se equilibram com quadriláteros vermelhos -e um pequeno quadrado amarelo aparece, suspenso no vazio, "desfazendo e refazendo o que poderia, de outro modo, ser apenas uma bela, puríssima e acabada lição de perspectiva".
O ensaísta conclui: "Qualquer que seja o assunto, a extensão e a textura de uma prosa, é preciso nela descobrir o lugar perfeito para um quadrado amarelo". Há nisso, sem dúvida, uma arte da surpresa e do equilíbrio, da despretensão e da nitidez -qualidades que este livro, a despeito de sua grande erudição, preserva admiravelmente.


O QUADRADO AMARELO
Autor: Alberto da Costa e Silva
Editora: Imprensa Oficial (tel. 0/ xx/11/ 5013-5108)
Quanto: R$ 60 (248 págs.)


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