São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


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Ponto de fuga

O corpo no centro

Jorge Coli
especial para a Folha

A mostra foi encerrada no museu Guggenheim, de NY. Encaminha-se agora para o de Bilbao. É uma consagração. O pintor ítalo-americano Francesco Clemente, com menos de 50 anos, vê-se coroado por essa retrospectiva digna dos maiores. Uma carreira fulminante, desde novembro de 1979, propulsada na "Transavanguardia", movimento inventado por Bonito Oliva que assinalava a crise das tradições modernas e estimulava uma volta a francas práticas picturais.
Clemente concentrou-se no corpo humano, tratado pelo contorno, sem os relevos da anatomia, em economia de linhas, num manejo seguro. Corpo expandindo-se por símbolos cabalísticos vindos do Ocidente e Oriente, até significações cósmicas. Ou concentrando-se na violência e no erotismo, que explodem, intensos, nos limites mais reduzidos do papel. Dentro dessa coerência, Clemente renova o gênero antiquíssimo do retrato, gênero de grande peso em sua obra, não muito comum entre os artistas modernos. São insistentes rostos, sobretudo de mulheres, medusas hipnóticas de imensos olhos abertos. Em quadros maiores, as relações com o feminino instalam confrontos de violenta agressão, em claro aceno ao surrealismo. Tudo ocorre na facilidade das cores, dos brilhos, das matérias, que parecem unir luxo barroco e luxo asiático. Um mundo de angústias suntuosas. Nas imagens de si próprio, lateja um narcisismo doloroso, cujo apogeu está numa obra-chave, o "Auto-Retrato em Lágrimas".

Cadáver - "The Talented Mr. Ripley" não é tão interminável e fastidioso quanto "O Paciente Inglês", ambos de Anthony Minghella. Mas aquilo que, no livro original de Patricia Highsmith, é uma busca de natureza ontológica, deslocando-se, incessante, entre a identidade e a culpa, transforma-se, aqui, numa espécie de "soap opera" em superprodução.
O filme parece destinar-se a alimentar o imaginário de uma certa classe média com pretensões fantasiosas a cultura e requinte. O pano de fundo é uma Itália turística que tenta reconstituir a época "dolce vita" por meio de clichês. Multiplicam-se os preconceitos: no filme, Ripley gosta de Bach e chora durante uma ópera, sinais indiscutíveis de um personagem gay, psicótico e sem escrúpulos, que se transforma em assassino. Todas as incertezas alucinadas do texto foram traduzidas em uma psicologia mecânica e simplificada. Mais vale voltar correndo para "Plein Soleil", de René Clement, onde Alain Delon e Maurice Ronet respiram uma atmosfera saturada de deliquescência; para "O Amigo Americano", de Wim Wenders; ou, melhor, para os romances insuperáveis de Patricia Highsmith.

Ferida - Há 15 anos que "Tristão e Isolda", de Richard Wagner, não era apresentada na Met, em NY. A recente produção adquiriu, por causa disso, proporções de um acontecimento. Dieter Dorn, diretor de teatro que criara um mágico "Navio Fantasma", em Bayreuth, onde a casa de Senta flutuava e rodava nos ares, concebeu aqui uma versão austera, no entanto sugestiva e poética. Nada muito ousado; esse pouco bastou, porém, para provocar a ira de um público conservador que vaiou a montagem no final.

Batuta - Naxos lança um álbum de dois CDs: são trechos de "Parsifal", interpretados em 1913, 1927 e 1928. Os mais antigos, dirigidos por Alfred Hertz, com a Filarmônica de Berlim, vencem os limites técnicos das gravações acústicas, demonstrando, nos metais, uma autoridade que paralisa. Os mais recentes, gravados já por processo elétrico, revelam a regência do mítico maestro Karl Muck. O desenho do fraseado é uma linha de nitidez contínua e obsessiva, à volta da qual vibra, frágil, a transparência dos sons.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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