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Ícone da esquerda francesa, o filósofo André Gorz fala das duas obras que está lançando no Brasil
e defende que o fim do trabalho assalariado irá permitir a superação do próprio sistema capitalista
Ócio revolucionário
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
O que hoje é necessário ao
capitalismo também contém o germe da exigência
de seu ultrapassamento."
Dar atualidade inesperada a essa
afirmação da vulgata marxista é apenas uma das muitas reviravoltas surpreendentes que marcam o pensamento atual de André Gorz (1924),
de quem está saindo no Brasil "O
Imaterial" e "Misérias do Presente,
Riqueza do Possível".
Figura maior da esquerda francesa
desde que, juntamente com Sartre
[1905-80] e Simone de Beauvoir
[1908-86], co-dirigiu a revista "Les
Temps Modernes" a partir de 1941,
André Gorz chega aos 80 anos com
um conjunto de questões sobre o capitalismo pós-industrial que visa a
fornecer as bases para uma pauta renovada da esquerda. Questões que
não deixam de ser guiadas pela certeza de que as condições para a superação do capitalismo estão, mais do
que nunca, no cerne da lógica produtiva do próprio capitalismo.
Proclamar a centralidade do emprego faz parte
da estratégia de dominação do patronato
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O caminho que Gorz trilhou até
chegar a tal convicção foi tortuoso.
Ele começa em 1980 com o livro
"Adeus ao Proletariado". Nele, o intelectual orgânico dos movimentos
sindicais anunciava o esgotamento
do potencial revolucionário do operariado, mas para salientar as novas
dinâmicas que estavam sendo postas em circulação por uma espécie
de não-classe de neoproletários, ou
seja, sujeitos que não viam mais o
emprego fixo como fundamento dos
modos de socialização.
Pois a flexibilização posta pelo capitalismo pós-fordista, e a respeito
da qual Gorz nunca se enganou sobre suas reais intenções, trazia o germe da superação do capitalismo. Ela
poderia permitir a rearticulação da
relação entre valor, capital e saber a
partir do momento em que o valor
não for mais diretamente vinculado
à posse dos meios de produção, mas
ao saber "imaterial" que só pode ser
sintetizado por quem tem tempo livre para aprimorar-se em esferas
ampliadas de interação social.
Contra aqueles que identificam
uma tonalidade utópica-liberal indelével nesse discurso das benesses
da flexibilização, Gorz insiste que a
centralidade deste "imaterial" próprio ao que ele chama de "capitalismo cognitivo" será a senha para a
crise do capitalismo. Pois a centralidade do "imaterial" traz a possibilidade da criação de uma "dissidência
digital" que guardaria as expectativas emancipatórias que um dia foram depositadas no operariado.
Mas, para tanto, a esquerda deveria parar de lutar pelo pleno emprego para lutar por algo mais radical:
uma "renda de existência incondicional", uma espécie de salário incondicional não mais vinculado ao
emprego e pago diretamente pelo
Estado -única condição para que a
produção do "imaterial" possa ser
articulada em condições ideais.
Essas foram as questões abordadas
por Gorz na entrevista abaixo.
Folha - Contrariamente à maioria
dos economistas, o senhor afirma que
a destruição do Estado de Bem-Estar
Social não foi ligada aos altos custos
da seguridade social. O senhor poderia explicar melhor esse ponto?
André Gorz - De fato, a crise dos sistemas de proteção social nada tem a
ver com falta de recursos financeiros. Ela é o resultado direto de outra
crise: a que diz respeito à centralidade do trabalho assalariado. Durante
o período fordista, a proteção social
era financiada por "contribuições
obrigatórias" que tinham a forma de
cotizações sociais pagas por empregados e empregadores. Tais cotizações faziam parte do "custo salarial".
Ora, o trabalho assalariado está em
regressão e uma das maiores razões
deste recuo é o desejo do patronato
em reduzir todos os elementos do
custo salarial. Entre eles, as cotizações têm uma importância particular, já que esses recursos podem ser
dominados por fundos de pensão.
Os fundos de pensão representam
uma extraordinária pilhagem da
economia mundial. Eles participam
e, às vezes, tomam o controle de empresas muito rentáveis, exigindo delas uma rentabilidade sem precedentes. De 12%, há dez anos, tal exigência passou para 15% e, hoje, chega a 20% e até 25%.
Mas, por outro lado, sob a pressão
dos fundos de pensão, as empresas
reduzem salários e pessoal, investem
cada vez menos a longo prazo e procuram obter isenções de impostos a
qualquer custo. Ou seja, a remuneração do capital não cessa de crescer
a despeito da remuneração do trabalho, da proteção social e dos investimentos em serviço público.
A remuneração de seus dirigentes,
por sua vez, nunca foi tão alta. Segundo os últimos dados disponíveis,
as 500 empresas norte-americanas
do índex "Standard and Poor" dispõem hoje de US$ 555 bilhões [R$
1,5 trilhão] em reservas. A taxa de
autofinanciamento delas é de 115%
nos EUA, 110% na Alemanha e 130%
no Japão. Isso mostra como o capitalismo sofre de uma crise de superacumulação, o que significa que ele
não tem mais a possibilidade de
crescer de maneira suficiente.
Folha - Mas, em vários de seus livros, encontramos o elogio do desaparecimento do trabalho assalariado
enquanto valor e peça central dos
processos de socialização -e isso enquanto a maioria das políticas de esquerda continua a defender a centralidade do direito ao emprego. Por que
então defender o desaparecimento
do trabalho assalariado?
Gorz - A abolição do trabalho assalariado foi uma reivindicação fundadora do movimento operário francês. Ela só foi eliminada dos estatutos da CGT [Confederação Geral do
Trabalho] há 20 anos. Tal reivindicação significa a recusa dos homens e
mulheres em serem tratados como
mercadorias, em vender sua força de
trabalho e seu tempo a terceiros.
Ora, há mais ou menos 25 anos,
em todos os países desenvolvidos, é
o capital que tende a abolir o trabalho assalariado, pois este se transformou, durante o período fordista, em
uma relação social regulamentada,
protegida por direitos sociais.
No seu lugar, o capital reintroduz
relações de trabalho e de remuneração individualizadas, precárias, que
deixam cada trabalhador diante do
poder arbitrário de seu empregador.
O capitalismo denuncia o contrato
social que era a base do regime fordista. O trabalho advém de uma atividade cada vez mais descontínua.
Os períodos de hiperatividade alternam com períodos de desemprego,
o tempo de trabalho e o nível de remuneração advêm flexíveis, imprevisíveis. Cada um é um desempregado em potencial.
Essa é uma evolução irreversível. A
revolução microeletrônica economiza quantidades anteriormente
inimagináveis de trabalho, mas ela é
administrada de maneira tal que
condena uns à inatividade enquanto
impõe outros a uma intensidade de
trabalho dificilmente suportável.
Nessas condições, insistir no direito de todos a um emprego seguro e
fixo, fazê-los esperar o retorno do
pleno emprego, não é apenas um
simples erro, mas uma mentira que
faz o jogo do patronato, já que desvia
a população de lutar por outra gestão e por outra repartição do trabalho e da riqueza. O máximo que ela
faz é jogar uns contra os outros na
batalha por empregos cada vez mais
raros. Proclamar a centralidade do
emprego faz parte da estratégia de
dominação do patronato.
Folha - A esse respeito, em "Miséria
do Presente, Riqueza do Possível", tínhamos a impressão de que a promessa de superação do capitalismo não
seria realizada pelo proletariado enquanto agente social, mas sobretudo
por aqueles que querem ter empregos "flexíveis", como, por exemplo,
os jovens da antiga geração X. O senhor ainda sustenta essa tese?
Gorz - Eu diria que o proletariado é
maior do que a classe dos operários
assalariados. Os jovens e os não tão
jovens que administram de sua maneira a descontinuidade do trabalho
assalariado surfam de um "job" a
outro, não investindo toda sua energia na procura de um emprego estável, todas essas pessoas que praticam um modo de vida mais livre,
frugal, no interior do qual o dinheiro
e a mercadoria não são os valores supremos; todas essas pessoas são parte integrante do proletariado pós-industrial, pós-fordista.
São elas que desenvolvem movimentos altermundialistas e anticapitalistas radicais, sindicatos de desempregados, movimentos de softwares livres. É por meio delas que
uma cultura da insubmissão, da derrisão, da imaginação e da palavra liberada ganha corpo.
Folha - É verdade que em seu livro o
senhor defendia a possibilidade de
romper com a sociedade do trabalho e
com a lógica do emprego por meio de
uma certa "sociedade da multiatividade", na qual os sujeitos poderiam
ter, ao mesmo tempo, estabilidade financeira e autonomia em relação aos
engajamentos de empregos fixos.
Mas, atualmente, o senhor vê alguma
possibilidade de realização dessa
"idéia reguladora"?
Gorz - Eu comecei há 20 anos a desenvolver a idéia de que devemos garantir a todos uma renda contínua
para um trabalho descontínuo. Ou
seja, que a descontinuidade do trabalho remunerado não fosse imposta às pessoas segundo a conveniência dos empregadores, mas que se
transformasse em um direito de todos e todas a variar suas atividades e
escolher, sem perder renda, períodos nos quais fariam coisas que não
têm valor do ponto de vista mercantil. Essa seria a base de uma sociedade da multiatividade.
Creio que essa idéia está mais atual
que nunca. Pois a produtividade da
força de trabalho pós-fordista não
depende mais da celeridade com a
qual sujeitos executam tarefas prescritas ou do número de horas trabalhadas. Ela depende de um conjunto
de faculdades "cognitivas", de saberes intuitivos, da capacidade de julgar e de reagir ao imprevisto: coisas
que não se ensinam, mas que fazem
parte de uma cultura comum e só
são adquiridas por meio do desabrochar das pessoas enquanto tais.
Por isso, comparo o trabalhador
pós-fordista a um ator ou a um músico cujo trabalho diretamente produtivo e mensurável supõe um trabalho invisível e não mensurável de
desenvolvimento de si. Esse trabalho
invisível tende a tomar mais tempo
que o trabalho visível, além de permitir às pessoas tomarem distância
de suas tarefas, já que estas nunca esgotam suas capacidades pessoais.
Assim, tanto do ponto de vista da
produtividade quanto do ponto de
vista da pessoa, temos cada vez mais
necessidade de tempo para o desenvolvimento humano e para atividades nas quais as faculdades pessoais
possam se desenvolver. Pagar apenas o tempo de trabalho imediato é
um absurdo. Trata-se de uma forma
de exploração, porque o capital pretende, dessa maneira, apropriar-se
gratuitamente das capacidades e dos
saberes que as pessoas desenvolvem
fora de seu tempo de trabalho.
Esse é, ao meu ver, o conflito decisivo. Um capitalismo que pretende
dominar as pessoas limitando suas
capacidades às exigências mais imediatas do processo produtivo é incapaz de tirar proveito da revolução
aberta pela microeletrônica.
Por outro lado, para realmente tirar proveito dela, o capital deve permitir às pessoas desenvolverem-se
para além do que o trabalho imediato exige.
Então, cedo ou tarde, ele irá se confrontar com pessoas que terão tendência em contestar a lógica do capital. O que hoje é necessário ao capitalismo também contém o germe da
exigência de seu ultrapassamento.
Folha - Em vários momentos de seu
livro, temos a impressão de que a "riqueza do possível" estaria no desenvolvimento do cooperativismo. Mas o
cooperativismo pode realmente se
transformar em contrapeso à força do
grande capital?
Gorz - O trabalho não é mais feito
para firmas estrangeiras, não é mais
uma mercadoria ou produção de
mercadorias, mas produção em comum a serviço de necessidades comuns. A produção do necessário é
combinada com a criação de riquezas intrínsecas, não mensuráveis em
dinheiro ou intercambiáveis com
outras coisas. Tais riquezas são vínculos sociais de cooperação. Em suma, as redes cooperativas constroem
um espaço público culturalmente e
praticamente crítico em relação ao
sistema capitalista. O dinheiro deixa
de ser a medida da riqueza e a auto-organização libera os indivíduos da
impotência e da dependência.
Encontramos aí a inspiração original do movimento operário.
Parece-me que o Brasil desempenha um papel de vanguarda nesse
sentido. Suas cooperativas procuram combater o desemprego não
mais por meio da criação de empregos assalariados, mas dando aos desempregados os meios de produzir
coletivamente para necessidades comuns. O trabalho é então compreendido como algo que se faz, e não algo
que se tem. O trabalho liberado da tirania do emprego é um poder que
você toma para si, enquanto o emprego é uma dependência.
Encontramos também nas comunas rurais da Índia o exemplo de
cooperativas de autoprodução comunal. Mas, no Brasil, parece-me
que o novo cooperativismo carrega a
concepção de um novo modelo de
desenvolvimento; uma definição de
riqueza que converge com aquela
sugerida por Amartya Sen [economista indiano que ganhou o Prêmio
Nobel em 1998]. Creio que há no
Brasil, mais do que em outros lugares, o melhor e o pior, mas se trata
também de um país no qual a parte
do melhor e a resistência ao pior não
cessam de ganhar terreno na consciência popular.
Vladimir Safatle é professor no departamento de filosofia da USP.
O Imaterial
106 págs., R$ 25,00
de André Gorz. Trad. Celso Azzan Júnior. Ed.
Annablume (r. Padre Carvalho, 275, CEP
05427-100, SP, tel. 0/ xx/11/ 212-6764).
Misérias do Presente,
Riqueza do Possível
162 págs., R$ 30,00
de André Gorz. Tradução de Ana Montoia.
Editora Annablume.
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