São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Ícone da esquerda francesa, o filósofo André Gorz fala das duas obras que está lançando no Brasil e defende que o fim do trabalho assalariado irá permitir a superação do próprio sistema capitalista

Ócio revolucionário

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que hoje é necessário ao capitalismo também contém o germe da exigência de seu ultrapassamento." Dar atualidade inesperada a essa afirmação da vulgata marxista é apenas uma das muitas reviravoltas surpreendentes que marcam o pensamento atual de André Gorz (1924), de quem está saindo no Brasil "O Imaterial" e "Misérias do Presente, Riqueza do Possível".
Figura maior da esquerda francesa desde que, juntamente com Sartre [1905-80] e Simone de Beauvoir [1908-86], co-dirigiu a revista "Les Temps Modernes" a partir de 1941, André Gorz chega aos 80 anos com um conjunto de questões sobre o capitalismo pós-industrial que visa a fornecer as bases para uma pauta renovada da esquerda. Questões que não deixam de ser guiadas pela certeza de que as condições para a superação do capitalismo estão, mais do que nunca, no cerne da lógica produtiva do próprio capitalismo.


Proclamar a centralidade do emprego faz parte da estratégia de dominação do patronato


O caminho que Gorz trilhou até chegar a tal convicção foi tortuoso. Ele começa em 1980 com o livro "Adeus ao Proletariado". Nele, o intelectual orgânico dos movimentos sindicais anunciava o esgotamento do potencial revolucionário do operariado, mas para salientar as novas dinâmicas que estavam sendo postas em circulação por uma espécie de não-classe de neoproletários, ou seja, sujeitos que não viam mais o emprego fixo como fundamento dos modos de socialização.
Pois a flexibilização posta pelo capitalismo pós-fordista, e a respeito da qual Gorz nunca se enganou sobre suas reais intenções, trazia o germe da superação do capitalismo. Ela poderia permitir a rearticulação da relação entre valor, capital e saber a partir do momento em que o valor não for mais diretamente vinculado à posse dos meios de produção, mas ao saber "imaterial" que só pode ser sintetizado por quem tem tempo livre para aprimorar-se em esferas ampliadas de interação social.
Contra aqueles que identificam uma tonalidade utópica-liberal indelével nesse discurso das benesses da flexibilização, Gorz insiste que a centralidade deste "imaterial" próprio ao que ele chama de "capitalismo cognitivo" será a senha para a crise do capitalismo. Pois a centralidade do "imaterial" traz a possibilidade da criação de uma "dissidência digital" que guardaria as expectativas emancipatórias que um dia foram depositadas no operariado.
Mas, para tanto, a esquerda deveria parar de lutar pelo pleno emprego para lutar por algo mais radical: uma "renda de existência incondicional", uma espécie de salário incondicional não mais vinculado ao emprego e pago diretamente pelo Estado -única condição para que a produção do "imaterial" possa ser articulada em condições ideais.
Essas foram as questões abordadas por Gorz na entrevista abaixo.
 

Folha - Contrariamente à maioria dos economistas, o senhor afirma que a destruição do Estado de Bem-Estar Social não foi ligada aos altos custos da seguridade social. O senhor poderia explicar melhor esse ponto?
André Gorz -
De fato, a crise dos sistemas de proteção social nada tem a ver com falta de recursos financeiros. Ela é o resultado direto de outra crise: a que diz respeito à centralidade do trabalho assalariado. Durante o período fordista, a proteção social era financiada por "contribuições obrigatórias" que tinham a forma de cotizações sociais pagas por empregados e empregadores. Tais cotizações faziam parte do "custo salarial".
Ora, o trabalho assalariado está em regressão e uma das maiores razões deste recuo é o desejo do patronato em reduzir todos os elementos do custo salarial. Entre eles, as cotizações têm uma importância particular, já que esses recursos podem ser dominados por fundos de pensão.
Os fundos de pensão representam uma extraordinária pilhagem da economia mundial. Eles participam e, às vezes, tomam o controle de empresas muito rentáveis, exigindo delas uma rentabilidade sem precedentes. De 12%, há dez anos, tal exigência passou para 15% e, hoje, chega a 20% e até 25%.
Mas, por outro lado, sob a pressão dos fundos de pensão, as empresas reduzem salários e pessoal, investem cada vez menos a longo prazo e procuram obter isenções de impostos a qualquer custo. Ou seja, a remuneração do capital não cessa de crescer a despeito da remuneração do trabalho, da proteção social e dos investimentos em serviço público.
A remuneração de seus dirigentes, por sua vez, nunca foi tão alta. Segundo os últimos dados disponíveis, as 500 empresas norte-americanas do índex "Standard and Poor" dispõem hoje de US$ 555 bilhões [R$ 1,5 trilhão] em reservas. A taxa de autofinanciamento delas é de 115% nos EUA, 110% na Alemanha e 130% no Japão. Isso mostra como o capitalismo sofre de uma crise de superacumulação, o que significa que ele não tem mais a possibilidade de crescer de maneira suficiente.

Folha - Mas, em vários de seus livros, encontramos o elogio do desaparecimento do trabalho assalariado enquanto valor e peça central dos processos de socialização -e isso enquanto a maioria das políticas de esquerda continua a defender a centralidade do direito ao emprego. Por que então defender o desaparecimento do trabalho assalariado?
Gorz -
A abolição do trabalho assalariado foi uma reivindicação fundadora do movimento operário francês. Ela só foi eliminada dos estatutos da CGT [Confederação Geral do Trabalho] há 20 anos. Tal reivindicação significa a recusa dos homens e mulheres em serem tratados como mercadorias, em vender sua força de trabalho e seu tempo a terceiros.
Ora, há mais ou menos 25 anos, em todos os países desenvolvidos, é o capital que tende a abolir o trabalho assalariado, pois este se transformou, durante o período fordista, em uma relação social regulamentada, protegida por direitos sociais.
No seu lugar, o capital reintroduz relações de trabalho e de remuneração individualizadas, precárias, que deixam cada trabalhador diante do poder arbitrário de seu empregador. O capitalismo denuncia o contrato social que era a base do regime fordista. O trabalho advém de uma atividade cada vez mais descontínua. Os períodos de hiperatividade alternam com períodos de desemprego, o tempo de trabalho e o nível de remuneração advêm flexíveis, imprevisíveis. Cada um é um desempregado em potencial.
Essa é uma evolução irreversível. A revolução microeletrônica economiza quantidades anteriormente inimagináveis de trabalho, mas ela é administrada de maneira tal que condena uns à inatividade enquanto impõe outros a uma intensidade de trabalho dificilmente suportável.
Nessas condições, insistir no direito de todos a um emprego seguro e fixo, fazê-los esperar o retorno do pleno emprego, não é apenas um simples erro, mas uma mentira que faz o jogo do patronato, já que desvia a população de lutar por outra gestão e por outra repartição do trabalho e da riqueza. O máximo que ela faz é jogar uns contra os outros na batalha por empregos cada vez mais raros. Proclamar a centralidade do emprego faz parte da estratégia de dominação do patronato.

Folha - A esse respeito, em "Miséria do Presente, Riqueza do Possível", tínhamos a impressão de que a promessa de superação do capitalismo não seria realizada pelo proletariado enquanto agente social, mas sobretudo por aqueles que querem ter empregos "flexíveis", como, por exemplo, os jovens da antiga geração X. O senhor ainda sustenta essa tese?
Gorz -
Eu diria que o proletariado é maior do que a classe dos operários assalariados. Os jovens e os não tão jovens que administram de sua maneira a descontinuidade do trabalho assalariado surfam de um "job" a outro, não investindo toda sua energia na procura de um emprego estável, todas essas pessoas que praticam um modo de vida mais livre, frugal, no interior do qual o dinheiro e a mercadoria não são os valores supremos; todas essas pessoas são parte integrante do proletariado pós-industrial, pós-fordista.
São elas que desenvolvem movimentos altermundialistas e anticapitalistas radicais, sindicatos de desempregados, movimentos de softwares livres. É por meio delas que uma cultura da insubmissão, da derrisão, da imaginação e da palavra liberada ganha corpo.

Folha - É verdade que em seu livro o senhor defendia a possibilidade de romper com a sociedade do trabalho e com a lógica do emprego por meio de uma certa "sociedade da multiatividade", na qual os sujeitos poderiam ter, ao mesmo tempo, estabilidade financeira e autonomia em relação aos engajamentos de empregos fixos. Mas, atualmente, o senhor vê alguma possibilidade de realização dessa "idéia reguladora"?
Gorz -
Eu comecei há 20 anos a desenvolver a idéia de que devemos garantir a todos uma renda contínua para um trabalho descontínuo. Ou seja, que a descontinuidade do trabalho remunerado não fosse imposta às pessoas segundo a conveniência dos empregadores, mas que se transformasse em um direito de todos e todas a variar suas atividades e escolher, sem perder renda, períodos nos quais fariam coisas que não têm valor do ponto de vista mercantil. Essa seria a base de uma sociedade da multiatividade.
Creio que essa idéia está mais atual que nunca. Pois a produtividade da força de trabalho pós-fordista não depende mais da celeridade com a qual sujeitos executam tarefas prescritas ou do número de horas trabalhadas. Ela depende de um conjunto de faculdades "cognitivas", de saberes intuitivos, da capacidade de julgar e de reagir ao imprevisto: coisas que não se ensinam, mas que fazem parte de uma cultura comum e só são adquiridas por meio do desabrochar das pessoas enquanto tais.
Por isso, comparo o trabalhador pós-fordista a um ator ou a um músico cujo trabalho diretamente produtivo e mensurável supõe um trabalho invisível e não mensurável de desenvolvimento de si. Esse trabalho invisível tende a tomar mais tempo que o trabalho visível, além de permitir às pessoas tomarem distância de suas tarefas, já que estas nunca esgotam suas capacidades pessoais.
Assim, tanto do ponto de vista da produtividade quanto do ponto de vista da pessoa, temos cada vez mais necessidade de tempo para o desenvolvimento humano e para atividades nas quais as faculdades pessoais possam se desenvolver. Pagar apenas o tempo de trabalho imediato é um absurdo. Trata-se de uma forma de exploração, porque o capital pretende, dessa maneira, apropriar-se gratuitamente das capacidades e dos saberes que as pessoas desenvolvem fora de seu tempo de trabalho.
Esse é, ao meu ver, o conflito decisivo. Um capitalismo que pretende dominar as pessoas limitando suas capacidades às exigências mais imediatas do processo produtivo é incapaz de tirar proveito da revolução aberta pela microeletrônica.
Por outro lado, para realmente tirar proveito dela, o capital deve permitir às pessoas desenvolverem-se para além do que o trabalho imediato exige.
Então, cedo ou tarde, ele irá se confrontar com pessoas que terão tendência em contestar a lógica do capital. O que hoje é necessário ao capitalismo também contém o germe da exigência de seu ultrapassamento.

Folha - Em vários momentos de seu livro, temos a impressão de que a "riqueza do possível" estaria no desenvolvimento do cooperativismo. Mas o cooperativismo pode realmente se transformar em contrapeso à força do grande capital?
Gorz -
O trabalho não é mais feito para firmas estrangeiras, não é mais uma mercadoria ou produção de mercadorias, mas produção em comum a serviço de necessidades comuns. A produção do necessário é combinada com a criação de riquezas intrínsecas, não mensuráveis em dinheiro ou intercambiáveis com outras coisas. Tais riquezas são vínculos sociais de cooperação. Em suma, as redes cooperativas constroem um espaço público culturalmente e praticamente crítico em relação ao sistema capitalista. O dinheiro deixa de ser a medida da riqueza e a auto-organização libera os indivíduos da impotência e da dependência.
Encontramos aí a inspiração original do movimento operário.
Parece-me que o Brasil desempenha um papel de vanguarda nesse sentido. Suas cooperativas procuram combater o desemprego não mais por meio da criação de empregos assalariados, mas dando aos desempregados os meios de produzir coletivamente para necessidades comuns. O trabalho é então compreendido como algo que se faz, e não algo que se tem. O trabalho liberado da tirania do emprego é um poder que você toma para si, enquanto o emprego é uma dependência.
Encontramos também nas comunas rurais da Índia o exemplo de cooperativas de autoprodução comunal. Mas, no Brasil, parece-me que o novo cooperativismo carrega a concepção de um novo modelo de desenvolvimento; uma definição de riqueza que converge com aquela sugerida por Amartya Sen [economista indiano que ganhou o Prêmio Nobel em 1998]. Creio que há no Brasil, mais do que em outros lugares, o melhor e o pior, mas se trata também de um país no qual a parte do melhor e a resistência ao pior não cessam de ganhar terreno na consciência popular.


Vladimir Safatle é professor no departamento de filosofia da USP.

O Imaterial
106 págs., R$ 25,00 de André Gorz. Trad. Celso Azzan Júnior. Ed. Annablume (r. Padre Carvalho, 275, CEP 05427-100, SP, tel. 0/ xx/11/ 212-6764).
Misérias do Presente, Riqueza do Possível
162 págs., R$ 30,00 de André Gorz. Tradução de Ana Montoia. Editora Annablume.



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