São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005 |
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+ livros Estudo pioneiro sobre a relação entre crenças e ritos, "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande", do antropólogo britânico Evans-Pritchard, ajuda a questionar a noção moderna de racionalidade Psiques da magia
BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
Descreve os adivinhos que buscam as respostas às consultas a eles apresentadas dançando -que "dançam perguntas", como diz Evans-Pritchard-, sua iniciação e seu lugar na sociedade azande. Enumera e explica os vários tipos de oráculo empregados, sua hierarquia e contextos de aplicação, dedicando um capítulo ao mais importante deles, o oráculo de veneno. Descreve ainda, sempre com a mesma riqueza de detalhes, a magia e as drogas utilizadas, as então novas confrarias mágicas e, finalmente, considera a questão da morte para os azandes, "fechando" analiticamente a descrição no campo em que "a crença azande na bruxaria, nos oráculos e na magia se mostra mais coerente e inteligível para nós". Prosa elegante As descrições são entremeadas de análises, observações sobre o trabalho de campo e comentários sobre as transformações em curso na cultura azande, em decorrência da colonização. Em relação ao trabalho de campo, vale mencionar o apêndice quarto, em que o autor tece com propriedade e humor uma das mais densas e belas reflexões acerca da prática do ofício do antropólogo. Evans-Pritchard expressa seu profundo conhecimento do mundo azande, que partilhou ao longo de 20 meses de campo, a partir de 1927, numa prosa de excepcional elegância, ao mesmo tempo própria do autor e propriamente britânica -que uma excelente tradução transpõe para o português. Aquilo que se procurou ressaltar até aqui por si só bastaria para justificar a importância desta obra e seu interesse. Mas sir Evans-Pritchard faz mais: desenvolve uma reflexão pioneira e fundamental acerca do pensamento racional, levando o leitor a indagar sobre a razão e a crença. O capítulo nono, "Problemas Suscitados pela Consulta ao Oráculo de Veneno", de certo modo condensa as questões, levantadas ao longo de todo o livro, relativas à aparente irracionalidade das crenças e práticas azandes e ressalta a lógica poderosa e coerente de seu sistema de idéias. São vários os momentos em que comparações entre os azandes e nós deslocam e relativizam aquilo que pode nos parecer ilógico em suas idéias e práticas: acreditam nos adivinhos como nós nos médicos, suas noções morais têm muita semelhança com as nossas, "como nós, eles usam meios racionais de controle das condições que produzem o infortúnio, mas nós concebemos tais condições de outra forma". Pontuam igualmente a obra afirmações do caráter lógico, inquisitivo, consistente, perspicaz do pensamento azande, como a afirmação de que, longe de terem um pensamento ilógico ou pré-lógico, "[os azandes] raciocinam de modo excelente no idioma de suas crenças" ou "a bruxaria, os oráculos e a magia formam um sistema intelectualmente coerente". A centralidade da questão fica patente na declaração que Evans-Pritchard faz no final: "Espero ter persuadido o leitor de uma coisa -da consistência intelectual das noções azandes". O elo ausente O sistema de idéias dos azandes acerca da bruxaria chega mesmo a fornecer explicações que vão além das nossas. A ilustração provavelmente mais citada das crenças sobre bruxaria é a explicação azande da queda de um celeiro sobre as pessoas que estavam sentadas à sua sombra. Os azandes sabem perfeitamente, observa Evans-Pritchard, que os esteios dos celeiros, em madeira, são comidos por cupins e, com o tempo, acabam por ruir. Também é óbvio para eles que as pessoas costumam sentar-se debaixo dos celeiros para escapar do calor. Quando um celeiro cai sobre essas pessoas e as fere, nós dizemos acaso, fatalidade, azar. Não temos explicação para essa coincidência. Os azandes a têm: é a bruxaria que explica porque o celeiro, que poderia ter ruído em qualquer outro momento e sobre quaisquer outras pessoas, caiu naquele momento preciso sobre aquelas pessoas. Seu sistema contém, portanto, uma explicação suplementar, "a filosofia azande pode acrescentar o elo que falta [para nós]". Ao reafirmar a lógica interna do sistema de crenças azande, "em seus próprios termos ", Evans-Pritchard permite pensar a própria noção de racionalidade em termos relativos. Sistema lógico Esse sistema é uma "teia de crenças" de que um azande não pode sair, pois "é a textura mesma de seu pensamento -e ele não pode pensar que seu pensamento está errado". O idioma da crença fornece os termos -exclusivos- em que questões a ela relacionadas podem ser pensadas. Ou seja, não se trata de ignorância, incompetência ou incapacidade: os azandes pensam outras coisas porque crêem noutras coisas. O passo pioneiro que Evans-Pritchard dava aí, ao relativizar a própria noção de pensamento racional, sugeriu reflexões para além do campo da antropologia. Assim, no campo da filosofia da ciência, surgiu, por exemplo, a proposta, inspirada neste livro, de encarar a ciência como uma crença que, do mesmo modo que o sistema de idéias azandes acerca da bruxaria, requer adesão, fornece o instrumental para pensar a realidade e, agindo de modo autocontido e circular, não pode ser infirmada nem mesmo por evidências contrárias: é um sistema coerente e lógico, em seus próprios termos -e apenas neles. A edição, que já havia sido publicada no Brasil em 1978 e permaneceu esgotada durante mais de uma década, contém ainda uma introdução de Eva Gillies, que acompanha as transformações históricas sofridas pelos azandes entre a pesquisa de campo de Evans-Pritchard e a década de 1970 e situa o autor, e esta obra em particular, na reflexão antropológica. "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande" é, como observa o tradutor na nota inicial, um clássico, pois sempre novo. Guarda intacto o poder de encantar o leitor, envolvendo-o em descobertas e indagações. Só se pode comemorar a iniciativa de reeditar um livro de tantas qualidades e tamanha importância. Beatriz Perrone-Moisés é professora no departamento de antropologia da USP. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande 256 págs., R$ 38,00 de E.E. Evans-Pritchard. Trad. Eduardo Viveiros de Castro. Jorge Zahar (r. México, 31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226). 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