São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Estudo pioneiro sobre a relação entre crenças e ritos, "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande", do antropólogo britânico Evans-Pritchard, ajuda a questionar a noção moderna de racionalidade

Psiques da magia

BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os azandes [na África Central] acreditam que certas pessoas são bruxas e podem lhes fazer mal em virtude de uma qualidade intrínseca. Um bruxo não pratica ritos, não profere encantações e não possui drogas mágicas. Um ato de bruxaria é um ato psíquico. Eles crêem ainda que os feiticeiros podem fazê-los adoecer por meio da execução de ritos mágicos que envolvem drogas maléficas. Os azandes distinguem claramente entre bruxos e feiticeiros. Contra ambos empregam adivinhos, oráculos e drogas mágicas. O objeto deste livro são as relações entre essas crenças e ritos."
Assim começa, direto ao ponto, "Bruxaria, Oráculos e Magia Entre os Azande", de E.E. Evans-Pritchard [1902-73], republicado em tradução revista da edição inglesa de 1976, versão abreviada da obra originalmente publicada em 1937.
Ao longo dos 13 (e talvez isto não seja um acaso) capítulos que compõem o livro, Evans-Pritchard cumpre o que prometeu. Apresenta ao leitor os conceitos azandes relativos à bruxaria, como ela explica os infortúnios, o que caracteriza os bruxos, como eles agem e como são descobertos, acusados e punidos.


As noções morais dos azandes têm muita semelhança com as nossas


Descreve os adivinhos que buscam as respostas às consultas a eles apresentadas dançando -que "dançam perguntas", como diz Evans-Pritchard-, sua iniciação e seu lugar na sociedade azande. Enumera e explica os vários tipos de oráculo empregados, sua hierarquia e contextos de aplicação, dedicando um capítulo ao mais importante deles, o oráculo de veneno.
Descreve ainda, sempre com a mesma riqueza de detalhes, a magia e as drogas utilizadas, as então novas confrarias mágicas e, finalmente, considera a questão da morte para os azandes, "fechando" analiticamente a descrição no campo em que "a crença azande na bruxaria, nos oráculos e na magia se mostra mais coerente e inteligível para nós".

Prosa elegante
As descrições são entremeadas de análises, observações sobre o trabalho de campo e comentários sobre as transformações em curso na cultura azande, em decorrência da colonização. Em relação ao trabalho de campo, vale mencionar o apêndice quarto, em que o autor tece com propriedade e humor uma das mais densas e belas reflexões acerca da prática do ofício do antropólogo.
Evans-Pritchard expressa seu profundo conhecimento do mundo azande, que partilhou ao longo de 20 meses de campo, a partir de 1927, numa prosa de excepcional elegância, ao mesmo tempo própria do autor e propriamente britânica -que uma excelente tradução transpõe para o português. Aquilo que se procurou ressaltar até aqui por si só bastaria para justificar a importância desta obra e seu interesse.
Mas sir Evans-Pritchard faz mais: desenvolve uma reflexão pioneira e fundamental acerca do pensamento racional, levando o leitor a indagar sobre a razão e a crença. O capítulo nono, "Problemas Suscitados pela Consulta ao Oráculo de Veneno", de certo modo condensa as questões, levantadas ao longo de todo o livro, relativas à aparente irracionalidade das crenças e práticas azandes e ressalta a lógica poderosa e coerente de seu sistema de idéias.
São vários os momentos em que comparações entre os azandes e nós deslocam e relativizam aquilo que pode nos parecer ilógico em suas idéias e práticas: acreditam nos adivinhos como nós nos médicos, suas noções morais têm muita semelhança com as nossas, "como nós, eles usam meios racionais de controle das condições que produzem o infortúnio, mas nós concebemos tais condições de outra forma".
Pontuam igualmente a obra afirmações do caráter lógico, inquisitivo, consistente, perspicaz do pensamento azande, como a afirmação de que, longe de terem um pensamento ilógico ou pré-lógico, "[os azandes] raciocinam de modo excelente no idioma de suas crenças" ou "a bruxaria, os oráculos e a magia formam um sistema intelectualmente coerente". A centralidade da questão fica patente na declaração que Evans-Pritchard faz no final: "Espero ter persuadido o leitor de uma coisa -da consistência intelectual das noções azandes".

O elo ausente
O sistema de idéias dos azandes acerca da bruxaria chega mesmo a fornecer explicações que vão além das nossas. A ilustração provavelmente mais citada das crenças sobre bruxaria é a explicação azande da queda de um celeiro sobre as pessoas que estavam sentadas à sua sombra. Os azandes sabem perfeitamente, observa Evans-Pritchard, que os esteios dos celeiros, em madeira, são comidos por cupins e, com o tempo, acabam por ruir.
Também é óbvio para eles que as pessoas costumam sentar-se debaixo dos celeiros para escapar do calor. Quando um celeiro cai sobre essas pessoas e as fere, nós dizemos acaso, fatalidade, azar. Não temos explicação para essa coincidência. Os azandes a têm: é a bruxaria que explica porque o celeiro, que poderia ter ruído em qualquer outro momento e sobre quaisquer outras pessoas, caiu naquele momento preciso sobre aquelas pessoas.
Seu sistema contém, portanto, uma explicação suplementar, "a filosofia azande pode acrescentar o elo que falta [para nós]".
Ao reafirmar a lógica interna do sistema de crenças azande, "em seus próprios termos ", Evans-Pritchard permite pensar a própria noção de racionalidade em termos relativos.

Sistema lógico
Esse sistema é uma "teia de crenças" de que um azande não pode sair, pois "é a textura mesma de seu pensamento -e ele não pode pensar que seu pensamento está errado". O idioma da crença fornece os termos -exclusivos- em que questões a ela relacionadas podem ser pensadas. Ou seja, não se trata de ignorância, incompetência ou incapacidade: os azandes pensam outras coisas porque crêem noutras coisas. O passo pioneiro que Evans-Pritchard dava aí, ao relativizar a própria noção de pensamento racional, sugeriu reflexões para além do campo da antropologia.
Assim, no campo da filosofia da ciência, surgiu, por exemplo, a proposta, inspirada neste livro, de encarar a ciência como uma crença que, do mesmo modo que o sistema de idéias azandes acerca da bruxaria, requer adesão, fornece o instrumental para pensar a realidade e, agindo de modo autocontido e circular, não pode ser infirmada nem mesmo por evidências contrárias: é um sistema coerente e lógico, em seus próprios termos -e apenas neles.
A edição, que já havia sido publicada no Brasil em 1978 e permaneceu esgotada durante mais de uma década, contém ainda uma introdução de Eva Gillies, que acompanha as transformações históricas sofridas pelos azandes entre a pesquisa de campo de Evans-Pritchard e a década de 1970 e situa o autor, e esta obra em particular, na reflexão antropológica. "Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande" é, como observa o tradutor na nota inicial, um clássico, pois sempre novo.
Guarda intacto o poder de encantar o leitor, envolvendo-o em descobertas e indagações.
Só se pode comemorar a iniciativa de reeditar um livro de tantas qualidades e tamanha importância.

Beatriz Perrone-Moisés é professora no departamento de antropologia da USP.

Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande
256 págs., R$ 38,00 de E.E. Evans-Pritchard. Trad. Eduardo Viveiros de Castro. Jorge Zahar (r. México, 31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).



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