São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Ficção e reportagem tematizam de que modo a ascensão do bairro da zona sul do Rio consolidou o fim do estilo de vida representado pela Lapa

Ai de ti, Copacabana

Dario Lopez-Mills - 29.dez.1999/ Associated Press
Garoto caminha entre canhões de fogos de artifício preparados para as comemorações de Réveillon na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro


ISABEL LUSTOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como o Rio tem mudado nestes últimos tempos! Podemos quase dizer que Copacabana vai aos poucos matando o Rio. Porque Copacabana pouco ou nada tem a ver com o Rio. Copacabana é alegre, é luminosa, é turística, é cosmopolita, vitaminada, esportiva e incontestavelmente bela.
Mas não é o Rio. O Rio é a velha cidade imperial das ruas mal calçadas que aos crepúsculos se iluminavam a bico de gás. São os becos estreitos e sinuosos, com recordações coloniais apontando a cada passo."


Na década de 30, o bairro já perdera havia muito seu aspecto familiar e já tinha adquirido a feição boêmia que seria a sua marca


O trecho acima, de 1948, é citado pelo próprio autor, Luís Martins (1907-81), em "Noturno da Lapa", livro pela primeira vez publicado em 1966, reeditado em 1979, quando ainda era vivo o autor e novamente apresentado agora pela José Olympio numa embalagem que também inclui o injustamente polêmico romance "Lapa", de 1936. Martins mudara para São Paulo em 1937, movido pelos desgostos que a perseguição do governo Vargas a ele por conta do caráter subversivo e imoral que "Lapa" tinha provocado. Tornar-se-ia paulistano de coração, como ele mesmo diz: "Eu tenho orgulho de ser paulista de adoção".
O Rio de Janeiro onde nascera e vivera todas as aventuras que inspiraram o romance e que subsidiam em grande parte o "Noturno da Lapa" desaparecera. Morando em São Paulo ele ainda viveria muito do que a Lapa tivera de vida boêmia nas visitas freqüentes que faria ao Rio. Mas a Lapa que conhecera no começo da década de 1930 perdera a graça original durante a Segunda Guerra Mundial e, no pós-guerra, o próprio Rio de Janeiro já havia mudado seu eixo no sentido da zona sul. Copacabana começava a atrair a cidade e os olhares do resto do Brasil para lá.

Outra cidade
Era outro Rio, esse Rio que conhecemos hoje, cuja história está magistralmente levantada nas páginas de "Chega de Saudade" (Cia. das Letras) e em outros livros do prefaciador dessa edição de Luís Martins, Ruy Castro. O Rio que seria o Rio de Ruy Castro, Paulo Francis e da turma do "Pasquim" começava a nascer com a morte da velha Lapa. Por isso, quando perguntavam a Luís Martins se, morando em São Paulo não tinha saudades do Rio, respondia: "Tenho muitas saudades do Rio quando estou no Rio".
O Rio de Martins e dos seus contemporâneos era ainda o Rio de Janeiro do século 19. Era ainda o Rio de Janeiro das velhas casas da rua de Matacavalos (atual rua do Riachuelo, na Lapa), tão freqüentadas pelos mais respeitáveis personagens de Machado. Na década de 30, o bairro já perdera havia muito seu aspecto familiar, era ocupado por muitos cabarés, bares, hotéis suspeitos e pensões de mulheres. Já tinha adquirido a feição boêmia que seria a sua marca. O velho casario era o mesmo, mas os seus usos eram bem outros.
Os dois livros de Martins tratam a Lapa de maneira bem diferente. O "Noturno" é francamente boêmio, masculino, recheado de personagens conhecidos, escritores, jornalistas, pintores, poetas... Anedotas, farras homéricas, pequenas molecagens típicas da boemia de todos os tempos fazem dele uma leitura deliciosa. "Lapa", por sua vez, é todo um lamento pelas vidas desperdiçadas das mulheres da Lapa. Do ponto de vista literário, "Lapa" não é um grande livro, e o autor se apressa a informar ao leitor que sabe disso.
Quis fazer uma reportagem. Mas o livro não é uma reportagem, pois trata muito de perto os dramas individuais e tem como protagonista um personagem vivendo seu próprio drama íntimo, sua própria experiência autodestrutiva. Martins nega que tudo o que narra tenha se passado com ele, mas em "Noturno" revela aspectos de sua biografia que coincidem com a do personagem.
Não há nos livros de Martins nenhuma referência a uma "malandragem da Lapa". Aqui e ali aparecem um leão-de-chácara ou um cafetão mais espaçoso, mas a figura do malandro clássico popularizada pela música popular, com seu terno branco, chapéu e navalha, não é personagem de nenhum dos dois livros.
Talvez porque Martins freqüentasse um circuito mais intelectualizado, sendo ele mesmo um jovem boêmio de classe média, talvez porque haja um tanto de ficção romântica na construção desse suposto malandro que, ao vivo, possivelmente não tivesse tanto glamour.
O Rio de Janeiro é o tema de outro livro que se reedita neste momento: "Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro", de Joaquim Manuel de Macedo. A uni-lo aos de Luís Martins, a consciência deste último de que o verdadeiro Rio de Janeiro não conhecia a zona sul. Se Martins e Macedo estavam separados por quase um século, o Rio de Janeiro que contemplam, pelo menos em sua paisagem física, tem muito em comum.
Macedo passeia por alguns recantos (bem poucos, aliás) da cidade, proporcionando uma descrição detalhada dos ambientes que resulta em material muito útil para os que trabalham com a recuperação do patrimônio. O autor defendia a preservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro, e seu relato tem claramente o objetivo de identificá-lo e de chamar a atenção da sociedade e do Estado para a sua importância e para a necessidade de preservá-lo.
Macedo (1820-82) recupera a história daqueles lugares, fatos e personagens pitorescos a eles ligados. E o que o seu livro tem de mais interessante para o leitor de hoje são as ótimas histórias sobre mestre Valentim, padre José Maurício, frei Sampaio e outros personagens importantes para a vida política e cultural brasileira do começo do século 19.
O texto é coloquial, amável, bem no estilo dos cronistas que lhe sucederam (Machado, inclusive) e revela muito sobre o próprio Macedo, suas opiniões, sua idiossincrasias, suas simpatias. O passeio é curto, pois o autor prefere se deter no detalhe. Ficamos conhecendo assim a história do Paço Imperial, do convento das carmelitas de Santa Tereza, do convento de Santo Antônio e da igreja de São Pedro. E, com elas, as histórias das pessoas ligadas a esses lugares e o lugar desses lugares na história da cidade.

Best-seller no século 19
Autor que vem sendo redescoberto pela moderna crítica literária, Macedo foi o primeiro escritor brasileiro a conquistar grande popularidade em seu tempo. Até a publicação de "O Guarani", em 1857, "A Moreninha" fora o livro brasileiro mais vendido. José de Alencar, aliás, reconhecia a grande influência de Macedo sobre a sua geração e recordaria em suas memórias a presença e a boa verve do escritor nas reuniões da casa de seu pai, o senador Alencar.
Nascido em 1820, no Rio, Macedo foi professor de história e geografia no colégio Pedro 2º, deputado pela Província do Rio de Janeiro e sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Para além do escritor que escrevia romances adocicados para mocinhas, Joaquim Manuel de Macedo destacou-se pela sua atividade na imprensa, e muitos de seus artigos provocaram polêmicas.
Tema sempre apaixonante, o Rio de Janeiro, antiga capital do Brasil, é, como disse uma vez Luís Severo (pai da atriz Marieta Severo) em discurso no Sabadoyle [reuniões literárias que aconteciam aos sábados na casa do bibliófilo Plínio Doyle a partir da década de 60], do qual era assíduo freqüentador: "A outra terra natal de nós que não tivemos a felicidade de aqui nascer". Daí que publicações como essas sempre encontrem (e mereçam) boa receptividade junto do público leitor brasileiro.

Isabel Lustosa é pesquisadora da Casa de Rui Barbosa (RJ) e autora de "Insultos Impressos" (Companhia das Letras).

Lapa/Noturno da Lapa
172 e 286 págs., R$ 55,00 (a caixa) de Luís Martins. Ed. Biblioteca Nacional/José Olympio (r. Argentina, 171, 1º andar, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2060).
Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro
336 págs., R$ 43,00 de Joaquim Manuel de Macedo. Ed. Planeta (al. Ministro Rocha Azevedo, 346, 8º andar, CEP 01410-000, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 3088-2588).



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