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CORAÇÃO
DE POMBAGIRA
ESPÍRITO DE MULHER, ESSE EXU FEMININO CULTUADO
NA QUIMBANDA É USADO PARA SOLUCIONAR PROBLEMAS RELACIONADOS AO AMOR E À SEXUALIDADE
REGINALDO PRANDI
ESPECIAL PARA A FOLHA
De beleza exuberante e inteligência rara, Elisa se achava
uma mulher sem
sorte. Vivia infeliz:
todos que a cercavam, todos a
quem amava pareciam sofrer
com ela. Uma maldição, pensava ela. Casada, logo o marido
passou a se servir de putas, embora amasse e desejasse a mulher, que só penetrou uma vez,
na primeira noite. Apesar de
seu tremendo desejo por Elisa,
só alcançava a ereção com outras. Ela sofria pelas dores do
marido. Ele a acusava de rejeitá-lo e batia nela.
No começo, nem tudo era sofrimento. Daquela única vez
nasceu Vitória. A menina cresceu bonita e saudável até os sete anos. Depois começou a definhar. "É a maldição!", Elisa se
culpava.
O marido se enterrou de vez
nos puteiros, ia chorar sua desventura no colo das putas.
Todas as especialidades médicas foram consultadas, todas
as promessas foram pagas, todas as rezas foram rezadas.
Consultados médiuns e videntes, cartomantes e benzedeiras,
padres, pastores e profetas, nada. A saúde da menina decaía
dia a dia.
Até que Elisa foi bater à porta de mãe Júlia, famosa mãe-de-santo.
"Você nasceu com a beleza
de Oxum e a majestade de Xangô, mas seu coração é de pombagira", disse-lhe a mãe-de-santo, depois de consultar os búzios.
A vida recatada de Elisa, seu
senso de pudor, sua modéstia, a
repressão de costumes que ela
mesma se impunha, a falta de
interesse pelo sexo, tudo isso
negava os sentimentos de seu
coração, contrariava sua natureza. A cura, a redenção -dela
e dos seus-, tinha uma só receita: libertar seu coração, deixar sua pombagira viver. Foi a
sentença da mãe-de-santo.
Leve e livre
Ali mesmo, naquele dia e hora, sem saber como nem por
quê, Elisa se deixou possuir por
três homens que, no terreiro,
tocavam os atabaques. O prazer
foi imenso. Sentiu-se leve e livre pela primeira vez na vida.
Pensando na filha, voltou
correndo para casa e encontrou
a menina melhor, muito melhor: corria sorridente, pedia
comida, queria brincar.
No dia seguinte, Elisa voltou
ao terreiro. "Seu caminho é
longo ainda", mãe Júlia disse.
Depois a abençoou e se despediu. Um dos homens com quem
se deitara no dia anterior lhe
deu um endereço no centro da
cidade, um local de meretrício,
que Elisa começou a freqüentar. Passava as tardes lá, enquanto o marido trabalhava.
Voltava para casa mais feliz e
esperançosa, a menina melhorava a olhos vistos.
Para preservar a honra do
marido, Elisa se vestia de cigana, cobrindo o rosto com um
véu. O mistério tornava tudo
mais excitante. A clientela
crescia. O marido soube da nova prostituta e quis experimentar. Na cama com a Cigana, o
prazer foi surpreendente, muito maior do que sentira com
Elisa e que nunca fora superado com outra mulher. Seria escravo da Cigana se ela assim o
desejasse. Mas a Cigana nunca
mais quis recebê-lo.
A insistência dele foi inútil.
"Um dia te mato na porta do cabaré", ele a ameaçou, ressentido e enciumado. Ela se manteve irredutível.
Num entardecer de inverno,
ele esperou pela Cigana na porta do puteiro e, na penumbra,
lhe deu sete facadas. Assustado,
olhou o corpo ensangüentado
da morta estirado no chão e reconheceu, no piscar do néon do
cabaré, o rosto desvelado de
Elisa. Um enfarto o matou ali
mesmo.
Longe dali, no terreiro de
mãe Júlia, o ritmo dos tambores era arrebatador. As filhas-de-santo giravam na roda, esperando a incorporação de suas
entidades.
Na gira de quimbanda, exus e
pombagiras eram chamados.
Os clientes, que lotavam a platéia, esperavam sua vez de falar
de seus problemas e resolver
suas causas. As entidades foram chegando, e o ambiente se
encheu de gargalhadas e gestos
obscenos. O ar cheirava a suor,
perfume barato, fumaça de tabaco, cachaça e cerveja. A força
invisível da magia ia se tornando mais espessa, quase podia
ser tocada.
Cada entidade manifestada
no transe se identificava cantando seu ponto. De repente,
uma filha-de-santo iniciante, e
que nunca entrara em transe,
incorporou uma pombagira.
Com atrevimento ela se aproximou dos atabaques e cantou o
seu ponto, que até então ninguém ali ouvira:
"Você disse que me matava/na porta do cabaré/ Me deu sete facadas/ mas nenhuma me
acertou/ Sou Pombagira Cigana/ aquela que você amou/ Cigana das Sete Facadas/ aquela
que te matou".
Mãe Júlia correu para receber a pombagira, abraçou-a e
lhe ofereceu uma taça de champanhe. "Seja bem-vinda, minha
senhora. Seu coração foi libertado", disse a mãe-de-santo, se
curvando.
Pombagira Cigana das Sete
Facadas retribuiu o cumprimento e, gargalhando, se pôs a
dançar no centro do salão.
Biografias míticas
Essa é uma história de ficção,
mas poderia não ser. É baseada
em relatos que ouvi e li em anos
de pesquisa sobre umbanda e
candomblé. Pombagiras são espíritos de mulheres, cada uma
com sua biografia mítica: histórias de sexo, dor, desventura,
infidelidade, transgressão social, crime.
Pombagira é um exu, um exu
feminino. Na concepção umbandista, o termo exu nomeia
dezenas de espíritos de homens
e mulheres que em vida tiveram uma biografia socialmente
marginal.
O culto dessas entidades é
reunido na quimbanda, uma
das divisões da umbanda, hoje
em dia também encontrada em
muitos terreiros de candomblé.
A quimbanda cuida das situações de vida que a moralidade
dos caboclos e pretos-velhos,
que compõem a outra divisão
da umbanda, rejeita e reprime.
Pombagira tem múltiplas
identidades, cada uma com nome, aparência, preferências,
símbolos, mito e cantigas próprios. Entre dezenas há: Pombagira Rainha, Maria Padilha,
Sete Saias, Maria Molambo,
Pombagira das Almas, Dama da
Noite, Sete Encruzilhadas.
Apela-se especificamente às
pombagiras para a solução de
problemas relacionados a fracassos e desejos da vida amorosa e da sexualidade. Pombagira
junta e separa casais, protege as
mulheres, propicia qualquer tipo de união amorosa ou erótica, hétero ou homossexual.
Aspirações e frustrações
Para a pombagira e seus companheiros exus, qualquer desejo pode ser atendido. Por meio
dos pedidos feitos às pombagiras, podemos entender algo das
aspirações e frustrações de parcelas da população que estão de
certo modo distantes de um código de ética e moralidade embasado em valores da tradição
ocidental cristã.
O culto dá acesso às dimensões mais próximas do mundo
da natureza, dos instintos, das
pulsões sexuais, das aspirações
e desejos inconfessos.
Revela esse lado "menos nobre" da concepção de mundo e
de agir no mundo. Umbanda e
candomblé são religiões que
aceitam o mundo como ele é e
ensinam que cada um deve lutar para realizar seus desejos.
Por isso, com freqüência são
vistas como liberadoras. Não se
crê no pecado nem em premiação ou punição após a morte. A
vida é boa e deve ser levada com
prazer e alegria.
Nessa busca da realização
dos anseios humanos mais íntimos, exus e pombagiras reforçam sem dúvida uma importante valorização da intimidade, às vezes obscura, de cada
um de nós, pois para os exus e
pombagiras não há desejo ilegítimo nem aspiração inalcançável nem fantasia reprovável.
REGINALDO PRANDI é professor de sociologia
na USP e autor de "Mitologias dos Orixás" e "Segredos Guardados" (Cia. das Letras).
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