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A EXCEÇÃO NACIONAL
"HÁ CONCEITOS QUE NASCERAM AQUI, COM ARTISTAS E TEÓRICOS BRASILEIROS, E QUE NÃO HÁ EM NENHUM OUTRO LUGAR", DIZ FARIA
COLUNISTA DA FOLHA
Ao apresentar "Idéias Teatrais",
estudo de João Roberto Faria sobre o
teatro brasileiro no século 19 (ed.
Perspectiva, 2001), Mariângela Alves
de Lima escreveu que a obra "faz ver
que as melhores peças foram, e quase todas as outras almejaram ser,
mais do que cogumelos brotando
espontaneamente do úmido solo
tropical".
Faria revelou então um passado de
riqueza que não se conhecia -e
que, agora com o "Dicionário do
Teatro Brasileiro", ganha contornos
mais definidos. Em entrevista, ele
descreve como 500 anos de idéias
teatrais são descortinados no livro. E
indica que o próximo passo é uma
também coletiva e ambiciosa história do teatro brasileiro.
(NS)
Folha - Vocês apresentam o livro
não como um dicionário de técnicas
nem como um "quem é quem", em
contraposição, por exemplo, aos de
Galante de Sousa e do Itaú Cultural.
São temas do nosso fazer teatral, o
que é um pouco vago. Como chegaram aos tópicos?
João Roberto Faria - A concepção é
do professor Jacó Guinsburg. Ele
nos convocou, à Mariângela, à Sílvia
Fernandes, ao Eudinyr Fraga, a
mim, há mais ou menos cinco anos e
expôs a idéia. Fizemos algumas reuniões em que discutimos, a partir da
concepção de Jacó, qual deveria ser a
natureza. O que ficou claro para nós
foi a idéia de fazer um dicionário
mais conceitual.
Como não podia ser um "quem é
quem", pensamos em conceitos, formas dramáticas, enfim, tópicos do
fazer teatral brasileiro e que nem
sempre aparecem nos ensaios ou
nas histórias do teatro. Percebemos,
quando fomos redigir cada verbete,
que muitos eram excelentes temas
para dissertações de mestrado, teses
de doutorado -e que cada tópico
exigia mesmo uma pesquisa prévia
para ser redigido. Daí se abriu o leque de colaboradores.
Pensamos também que não era o
caso de conceituar aquilo que já está
em obras estrangeiras, e sim ver como determinada idéia e determinada forma dramática foram apropriadas pelos artistas brasileiras.
Folha - É por isso que vocês fazem
menção, logo de início, a Oswald de
Andrade?
Faria - Exato. A idéia da antropofagia. É claro que nós, no Brasil, dialogamos o tempo todo com as culturas
que vêm de fora. E isso é saudável, é
bom. Mas o que nós fazemos com
aquilo que aprendemos? Foi esse o
pensamento. Se vamos conceituar o
teatro épico, não é preciso se estender sobre o que ele foi, porque está
nas obras de Brecht e outras. O que
nunca havia sido feito num dicionário é pensar como os procedimentos
épicos foram apropriados pelos dramaturgos, pelos artistas brasileiros.
Folha - É mencionado no livro, várias vezes, Patrice Pavis. A sensação é
de que ele também foi um modelo.
Mas o que diferencia este dicionário?
Como vocês dialogaram com Pavis?
Faria - O dicionário de Pavis é excelente. Pode ser e é lido no mundo inteiro. Mas não tem uma preocupação específica em ver como determinado conceito é aproveitado num
determinado teatro, o francês, o alemão, assim por diante. Nós utilizamos o dicionário como um dos pontos de partida, exatamente porque
vimos nele alguns conceitos importantes e nos perguntamos como eles
têm vida no Brasil.
Folha - Mas há muitos outros tópicos, não relacionados.
Faria - Sim, pensamos também,
por outro lado, quais os conceitos
que nasceram aqui e foram desenvolvidos por artistas, teóricos e pensadores brasileiros. Então, há um
campo no dicionário que você não
vai encontrar em nenhum outro, no
mundo. Por exemplo, o conceito de
"herói humilde", desenvolvido por
Anatol Rosenfeld e que você não vai
achar em nenhuma outra parte, porque foi teorizado aqui, para pensar
certas peças do teatro brasileiro.
Também o de "teatro de resistência" é nosso, nasceu de uma visão de
determinada produção que procurou oferecer resistência quando a ditadura se instalou nos anos 60 e 70.
Da mesma forma, "teatro desagradável" é uma expressão criada por
Nelson Rodrigues para qualificar algumas das suas peças. Ópera Seca é
uma idéia de Gerald Thomas para o
seu teatro. Poderia mencionar também o Teatro do Oprimido etc.
Todos são do nosso conhecimento, quando lemos e estudamos alguns autores, mas neste dicionário
eles ganharam mais visibilidade.
Folha - O dicionário também faz a
relação entre os conceitos, que se comunicam entre si.
Faria - Cada verbete, ao final, tem
uma remissão para outros e uma bibliografia indicada, que vão levar o
leitor a ampliar seu conhecimento.
Por exemplo, quando ler sobre Teatro do Oprimido, ele vai poder completar as informações indo ao Teatro
Invisível, ao Teatro de Arena. Essa
conversa entre os tópicos é muito
frutífera, nós pensamos muito nisso.
Folha - O projeto não era de um dicionário histórico, mas ele é muito rico historicamente. Como aconteceu
com "Idéias Teatrais", é uma revelação do teatro de eras passadas, como
o século 16, com Mariângela Alves de
Lima, e os imigrantes, com Jacó
Guinsburg ou Maria Thereza Vargas.
Você vê o retrato da riqueza histórica
como um resultado do livro?
Faria - Inicialmente, não queríamos fazer um dicionário histórico.
No entanto muitos conceitos só podem ser bem compreendidos na sua
historicidade. O recurso se fez necessário para acompanhar a evolução, a transformação, o desenvolvimento de um determinado conceito. Sobre comédia de costumes,
para dar um exemplo, é inevitável
que você acompanhe o conceito ao
longo do tempo. Se nasceu no Brasil
com Martins Pena, nos anos de 1830,
não morreu ali. Ao contrário, teve
continuidade e foi sofrendo adaptações, de acordo com o momento, até
o teatro que se faz hoje.
E, alguns temas, é preciso ler combinados, para que contem a história.
Por exemplo, quando se pensa no
"velho teatro", dos anos de 1910, 20,
30 -como ele se fazia? Quem colocava as peças em cena? Então, há um
verbete sobre o "ensaiador", com as
informações sobre quem era o responsável pelo espetáculo. Quando
termina, tem ali uma indicação
-"ver "encenador'". O leitor percebe que a história continua.
Folha - É assim também com as companhias e depois o teatro de grupo.
Faria - A idéia da organização em
companhia perdura 100, 150 anos no
Brasil. Se formos ao passado, a primeira foi criada por João Caetano,
em 1833. Então, quando se termina
de ler o verbete, que vai até mais ou
menos 1950, 60, com as grandes
companhias que foram criadas aqui,
como o TBC, encontra uma indicação para ler sobre "grupos teatrais".
Pois o conceito de grupo substitui,
nos anos 70, o de companhia, favorecendo outro tipo de produção,
com a criação coletiva. E de lá se vai a
"criação coletiva" e a "processo colaborativo", que é uma versão atual do
que foi a criação coletiva.
Folha - Décio de Almeida Prado está
pelo livro todo, mas, curiosamente,
este não incorpora a visão definida
que o crítico e historiador tinha para
alguns nós dramáticos do teatro brasileiro, como a ruptura moderna. Vários tópicos, sobre modernismo, moderno, vanguarda, dão versões diversas sobre o mesmo momento.
Faria - Essa é uma questão, acredito, em aberto. E nós quisemos deixar
assim, porque são 39 colaboradores
e é impossível unificar o pensamento de todos. De modo que pode haver, digamos assim, alguma tensão
ou até contradição.
Quando começa o teatro moderno
no Brasil? Você pode ver em Oswald
a figura que escreveu as primeiras
peças modernas. Ou você pode voltar às experiências do Renato Vianna, Flávio de Carvalho, que foram de
fato modernas. Você também pode
jogar para Os Comediantes, que é
uma tendência mais forte da historiografia -a modernização teria na
encenação de "Vestido de Noiva"
seu ponto de início.
Como você pode acreditar que foi
o TBC, com os diretores italianos,
que efetivamente modernizou o teatro. Ou ainda uma outra idéia, também dentro do dicionário: a de que
Maria Della Costa, com o Teatro Popular de Arte, com Ruggero Jacobbi,
teria sido a primeira companhia
moderna.
Folha - Como você vê a questão?
Faria - Eu acho que o mais correto é
ver como um processo. Em vez de
tentar encontrar o primeiro, observar como um "work in progress". A
modernização do teatro não se fez
da noite para o dia. Ela de fato contou com a colaboração de todos
aqueles de que falei, até se consolidar
nos anos 50.
O que é curioso no processo é que
a modernização teve pontos altos no
Rio, mas foi em São Paulo que as coisas realmente se consolidaram. Porque a resistência ao teatro moderno
foi muito grande no Rio.
Há uma tese inédita de Tânia
Brandão sobre o Teatro Popular de
Arte, em que ela aponta como a resistência foi forte.
Só depois que se consolidou em
São Paulo, com a volta de artistas como Fernanda Montenegro e Gianni
Ratto, é que o Rio de Janeiro passou
a aceitar o teatro moderno. Então, a
questão é tão complexa, envolve tanta gente que é melhor ver como processo do que tentar estabelecer
quem foi o primeiro.
Folha - Sobre a origem ou a formação do teatro, existe outra questão,
que opõe os jesuítas a 1808 e a chegada de d. João 6º, que você menciona
de passagem num verbete. Também
aqui o dicionário não se define entre
Anchieta ou João Caetano.
Faria - Sim, também. É questão para uma obra historiográfica. Uma
história do teatro brasileiro vai ter
que se deter sobre esses problemas,
vai ter que discutir critérios e estabelecer uma idéia em relação ao surgimento ou à criação.
De fato, a editora está pensando
em uma história do teatro brasileiro
abrangente, para também aproveitar esse conhecimento grande que
há por aí, para incorporar esse saber
disperso em dissertações e teses nos
últimos 25, 30 anos.
Folha - Outros campos são muito estimulantes, no dicionário. Por exemplo, na oposição que evidencia entre o
"nacional popular", como idéia saída
de um partido, e o "popular", naquele
mesmo momento, com Ariano Suassuna e outros que retomavam uma
vertente. Você pode comentar?
Faria - Sim, isso é muito importante porque, exatamente naquele final
dos anos 50 e início dos 60, surge
uma discussão feroz. Você vai ter
uma posição que começa com o
Teatro do Estudante de Pernambuco, depois o grupo de Hermilo Borba Filho, ao qual era ligado Ariano
[Suassuna], e que repudia todo teatro com conotação política. Propõe
um popular feito com a elaboração
do cancioneiro, da literatura de cordel, que está representado até hoje.
E naquele momento o Arena já
apareceu, "Black-Tie" já foi encenada, e você tem esses grupos ligados
ao Partido Comunista, com um conceito ligado à instrumentalização do
teatro. O "nacional popular" atravessa a ditadura e vai até Geisel
[1974-79] com autores ainda tributários dos anos 50.
Folha - O livro é pontuado de revelações paralelas, como nos textos sobre
multimídia e performance.
Faria - Sim, você tem um campo semântico, dentro do dicionário, do
pós-modernismo, digamos assim.
Vários verbetes dão conta de uma
realidade muito presente em grupos
experimentais que existem hoje em
São Paulo e no Rio. Sobre "teatro físico", outro sobre "performance",
sobre "interculturalismo", "etnocenologia". Eles procuram dar conta
de realizações contemporâneas que
não têm visibilidade muito grande,
porque muito distanciadas de um
teatro comercial.
Folha - Mas no dicionário há também uma certa desproporção em relação ao que acontece de uma década e
meia para cá, por conta da carga histórica. Faz-se menção aqui e ali, mas
não uma tentativa de mergulho. Ainda não é possível um distanciamento?
Faria - É claro que, quando há distanciamento, é mais fácil comentar o
fenômeno estético e as opções feitas
pelos artistas. Por outro lado, buscamos um dicionário temático, conceitual, sem entradas com nomes de
grupos teatrais, artistas. Se tivéssemos, haveria descrição maior da
prática teatral hoje, mas de certa forma todos estão no dicionário, ainda
que com uma presença que poderia
ser mais acentuada.
A produção contemporânea ainda
está sendo objeto de estudos, teorias.
Se você não tem um artista envolvido com a própria reflexão teórica sobre o que faz, não existe entrada no
dicionário. Denise Stoklos escreveu
um livro sobre a sua técnica e como
ela entende o teatro, então há o verbete "teatro essencial".
E veja como, por exemplo, há muito dos anos 60. Foram anos riquíssimos, então há "teatro da crueldade",
"contracultura", as idéias do Boal.
Muita coisa foi conceituada, pensada, nos anos 60. Foi uma época de
muita reflexão, que acaba sendo até
um pouco privilegiada.
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