São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

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A EXCEÇÃO NACIONAL

"HÁ CONCEITOS QUE NASCERAM AQUI, COM ARTISTAS E TEÓRICOS BRASILEIROS, E QUE NÃO HÁ EM NENHUM OUTRO LUGAR", DIZ FARIA

COLUNISTA DA FOLHA

Ao apresentar "Idéias Teatrais", estudo de João Roberto Faria sobre o teatro brasileiro no século 19 (ed. Perspectiva, 2001), Mariângela Alves de Lima escreveu que a obra "faz ver que as melhores peças foram, e quase todas as outras almejaram ser, mais do que cogumelos brotando espontaneamente do úmido solo tropical".
Faria revelou então um passado de riqueza que não se conhecia -e que, agora com o "Dicionário do Teatro Brasileiro", ganha contornos mais definidos. Em entrevista, ele descreve como 500 anos de idéias teatrais são descortinados no livro. E indica que o próximo passo é uma também coletiva e ambiciosa história do teatro brasileiro. (NS)
 

Folha - Vocês apresentam o livro não como um dicionário de técnicas nem como um "quem é quem", em contraposição, por exemplo, aos de Galante de Sousa e do Itaú Cultural. São temas do nosso fazer teatral, o que é um pouco vago. Como chegaram aos tópicos?
João Roberto Faria -
A concepção é do professor Jacó Guinsburg. Ele nos convocou, à Mariângela, à Sílvia Fernandes, ao Eudinyr Fraga, a mim, há mais ou menos cinco anos e expôs a idéia. Fizemos algumas reuniões em que discutimos, a partir da concepção de Jacó, qual deveria ser a natureza. O que ficou claro para nós foi a idéia de fazer um dicionário mais conceitual.
Como não podia ser um "quem é quem", pensamos em conceitos, formas dramáticas, enfim, tópicos do fazer teatral brasileiro e que nem sempre aparecem nos ensaios ou nas histórias do teatro. Percebemos, quando fomos redigir cada verbete, que muitos eram excelentes temas para dissertações de mestrado, teses de doutorado -e que cada tópico exigia mesmo uma pesquisa prévia para ser redigido. Daí se abriu o leque de colaboradores.
Pensamos também que não era o caso de conceituar aquilo que já está em obras estrangeiras, e sim ver como determinada idéia e determinada forma dramática foram apropriadas pelos artistas brasileiras.

Folha - É por isso que vocês fazem menção, logo de início, a Oswald de Andrade?
Faria -
Exato. A idéia da antropofagia. É claro que nós, no Brasil, dialogamos o tempo todo com as culturas que vêm de fora. E isso é saudável, é bom. Mas o que nós fazemos com aquilo que aprendemos? Foi esse o pensamento. Se vamos conceituar o teatro épico, não é preciso se estender sobre o que ele foi, porque está nas obras de Brecht e outras. O que nunca havia sido feito num dicionário é pensar como os procedimentos épicos foram apropriados pelos dramaturgos, pelos artistas brasileiros.

Folha - É mencionado no livro, várias vezes, Patrice Pavis. A sensação é de que ele também foi um modelo. Mas o que diferencia este dicionário? Como vocês dialogaram com Pavis?
Faria -
O dicionário de Pavis é excelente. Pode ser e é lido no mundo inteiro. Mas não tem uma preocupação específica em ver como determinado conceito é aproveitado num determinado teatro, o francês, o alemão, assim por diante. Nós utilizamos o dicionário como um dos pontos de partida, exatamente porque vimos nele alguns conceitos importantes e nos perguntamos como eles têm vida no Brasil.

Folha - Mas há muitos outros tópicos, não relacionados.
Faria -
Sim, pensamos também, por outro lado, quais os conceitos que nasceram aqui e foram desenvolvidos por artistas, teóricos e pensadores brasileiros. Então, há um campo no dicionário que você não vai encontrar em nenhum outro, no mundo. Por exemplo, o conceito de "herói humilde", desenvolvido por Anatol Rosenfeld e que você não vai achar em nenhuma outra parte, porque foi teorizado aqui, para pensar certas peças do teatro brasileiro.
Também o de "teatro de resistência" é nosso, nasceu de uma visão de determinada produção que procurou oferecer resistência quando a ditadura se instalou nos anos 60 e 70.
Da mesma forma, "teatro desagradável" é uma expressão criada por Nelson Rodrigues para qualificar algumas das suas peças. Ópera Seca é uma idéia de Gerald Thomas para o seu teatro. Poderia mencionar também o Teatro do Oprimido etc.
Todos são do nosso conhecimento, quando lemos e estudamos alguns autores, mas neste dicionário eles ganharam mais visibilidade.

Folha - O dicionário também faz a relação entre os conceitos, que se comunicam entre si.
Faria -
Cada verbete, ao final, tem uma remissão para outros e uma bibliografia indicada, que vão levar o leitor a ampliar seu conhecimento. Por exemplo, quando ler sobre Teatro do Oprimido, ele vai poder completar as informações indo ao Teatro Invisível, ao Teatro de Arena. Essa conversa entre os tópicos é muito frutífera, nós pensamos muito nisso.

Folha - O projeto não era de um dicionário histórico, mas ele é muito rico historicamente. Como aconteceu com "Idéias Teatrais", é uma revelação do teatro de eras passadas, como o século 16, com Mariângela Alves de Lima, e os imigrantes, com Jacó Guinsburg ou Maria Thereza Vargas. Você vê o retrato da riqueza histórica como um resultado do livro?
Faria -
Inicialmente, não queríamos fazer um dicionário histórico. No entanto muitos conceitos só podem ser bem compreendidos na sua historicidade. O recurso se fez necessário para acompanhar a evolução, a transformação, o desenvolvimento de um determinado conceito. Sobre comédia de costumes, para dar um exemplo, é inevitável que você acompanhe o conceito ao longo do tempo. Se nasceu no Brasil com Martins Pena, nos anos de 1830, não morreu ali. Ao contrário, teve continuidade e foi sofrendo adaptações, de acordo com o momento, até o teatro que se faz hoje.
E, alguns temas, é preciso ler combinados, para que contem a história. Por exemplo, quando se pensa no "velho teatro", dos anos de 1910, 20, 30 -como ele se fazia? Quem colocava as peças em cena? Então, há um verbete sobre o "ensaiador", com as informações sobre quem era o responsável pelo espetáculo. Quando termina, tem ali uma indicação -"ver "encenador'". O leitor percebe que a história continua.

Folha - É assim também com as companhias e depois o teatro de grupo.
Faria -
A idéia da organização em companhia perdura 100, 150 anos no Brasil. Se formos ao passado, a primeira foi criada por João Caetano, em 1833. Então, quando se termina de ler o verbete, que vai até mais ou menos 1950, 60, com as grandes companhias que foram criadas aqui, como o TBC, encontra uma indicação para ler sobre "grupos teatrais".
Pois o conceito de grupo substitui, nos anos 70, o de companhia, favorecendo outro tipo de produção, com a criação coletiva. E de lá se vai a "criação coletiva" e a "processo colaborativo", que é uma versão atual do que foi a criação coletiva.

Folha - Décio de Almeida Prado está pelo livro todo, mas, curiosamente, este não incorpora a visão definida que o crítico e historiador tinha para alguns nós dramáticos do teatro brasileiro, como a ruptura moderna. Vários tópicos, sobre modernismo, moderno, vanguarda, dão versões diversas sobre o mesmo momento.
Faria -
Essa é uma questão, acredito, em aberto. E nós quisemos deixar assim, porque são 39 colaboradores e é impossível unificar o pensamento de todos. De modo que pode haver, digamos assim, alguma tensão ou até contradição.
Quando começa o teatro moderno no Brasil? Você pode ver em Oswald a figura que escreveu as primeiras peças modernas. Ou você pode voltar às experiências do Renato Vianna, Flávio de Carvalho, que foram de fato modernas. Você também pode jogar para Os Comediantes, que é uma tendência mais forte da historiografia -a modernização teria na encenação de "Vestido de Noiva" seu ponto de início.
Como você pode acreditar que foi o TBC, com os diretores italianos, que efetivamente modernizou o teatro. Ou ainda uma outra idéia, também dentro do dicionário: a de que Maria Della Costa, com o Teatro Popular de Arte, com Ruggero Jacobbi, teria sido a primeira companhia moderna.

Folha - Como você vê a questão?
Faria -
Eu acho que o mais correto é ver como um processo. Em vez de tentar encontrar o primeiro, observar como um "work in progress". A modernização do teatro não se fez da noite para o dia. Ela de fato contou com a colaboração de todos aqueles de que falei, até se consolidar nos anos 50.
O que é curioso no processo é que a modernização teve pontos altos no Rio, mas foi em São Paulo que as coisas realmente se consolidaram. Porque a resistência ao teatro moderno foi muito grande no Rio.
Há uma tese inédita de Tânia Brandão sobre o Teatro Popular de Arte, em que ela aponta como a resistência foi forte.
Só depois que se consolidou em São Paulo, com a volta de artistas como Fernanda Montenegro e Gianni Ratto, é que o Rio de Janeiro passou a aceitar o teatro moderno. Então, a questão é tão complexa, envolve tanta gente que é melhor ver como processo do que tentar estabelecer quem foi o primeiro.

Folha - Sobre a origem ou a formação do teatro, existe outra questão, que opõe os jesuítas a 1808 e a chegada de d. João 6º, que você menciona de passagem num verbete. Também aqui o dicionário não se define entre Anchieta ou João Caetano.
Faria -
Sim, também. É questão para uma obra historiográfica. Uma história do teatro brasileiro vai ter que se deter sobre esses problemas, vai ter que discutir critérios e estabelecer uma idéia em relação ao surgimento ou à criação.
De fato, a editora está pensando em uma história do teatro brasileiro abrangente, para também aproveitar esse conhecimento grande que há por aí, para incorporar esse saber disperso em dissertações e teses nos últimos 25, 30 anos.

Folha - Outros campos são muito estimulantes, no dicionário. Por exemplo, na oposição que evidencia entre o "nacional popular", como idéia saída de um partido, e o "popular", naquele mesmo momento, com Ariano Suassuna e outros que retomavam uma vertente. Você pode comentar?
Faria -
Sim, isso é muito importante porque, exatamente naquele final dos anos 50 e início dos 60, surge uma discussão feroz. Você vai ter uma posição que começa com o Teatro do Estudante de Pernambuco, depois o grupo de Hermilo Borba Filho, ao qual era ligado Ariano [Suassuna], e que repudia todo teatro com conotação política. Propõe um popular feito com a elaboração do cancioneiro, da literatura de cordel, que está representado até hoje.
E naquele momento o Arena já apareceu, "Black-Tie" já foi encenada, e você tem esses grupos ligados ao Partido Comunista, com um conceito ligado à instrumentalização do teatro. O "nacional popular" atravessa a ditadura e vai até Geisel [1974-79] com autores ainda tributários dos anos 50.

Folha - O livro é pontuado de revelações paralelas, como nos textos sobre multimídia e performance.
Faria -
Sim, você tem um campo semântico, dentro do dicionário, do pós-modernismo, digamos assim. Vários verbetes dão conta de uma realidade muito presente em grupos experimentais que existem hoje em São Paulo e no Rio. Sobre "teatro físico", outro sobre "performance", sobre "interculturalismo", "etnocenologia". Eles procuram dar conta de realizações contemporâneas que não têm visibilidade muito grande, porque muito distanciadas de um teatro comercial.

Folha - Mas no dicionário há também uma certa desproporção em relação ao que acontece de uma década e meia para cá, por conta da carga histórica. Faz-se menção aqui e ali, mas não uma tentativa de mergulho. Ainda não é possível um distanciamento?
Faria -
É claro que, quando há distanciamento, é mais fácil comentar o fenômeno estético e as opções feitas pelos artistas. Por outro lado, buscamos um dicionário temático, conceitual, sem entradas com nomes de grupos teatrais, artistas. Se tivéssemos, haveria descrição maior da prática teatral hoje, mas de certa forma todos estão no dicionário, ainda que com uma presença que poderia ser mais acentuada.
A produção contemporânea ainda está sendo objeto de estudos, teorias. Se você não tem um artista envolvido com a própria reflexão teórica sobre o que faz, não existe entrada no dicionário. Denise Stoklos escreveu um livro sobre a sua técnica e como ela entende o teatro, então há o verbete "teatro essencial".
E veja como, por exemplo, há muito dos anos 60. Foram anos riquíssimos, então há "teatro da crueldade", "contracultura", as idéias do Boal. Muita coisa foi conceituada, pensada, nos anos 60. Foi uma época de muita reflexão, que acaba sendo até um pouco privilegiada.


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