São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ brasil 505 d.C.

Luiz Costa Lima

O sagrado como deserto

"Mameloshn - Memória em Carne Viva" põe em questão o estatuto da ficção e da realidade ao tratar do Holocausto

Mameloshn" -nome do iídiche falado na Europa Oriental, mais especialmente na Polônia- é o primeiro livro (ed. Record) publicado no Brasil por uma descendente dos que sobreviveram ao Holocausto. Já por isso o livro merece ser singularizado. Sua autora, a psicanalista Halina Grynberg, o subintitula "memória em carne viva". Assim evidencia que não se trata de ficção. Aparentemente, trata-se de seu mero arbítrio, pois o gênero "romance", em princípio não confundível com memórias, é dotado de tamanha plasticidade que, no começo do século 18, Defoe apresentava seu "Diário do Ano da Peste" como se fosse uma reportagem, que não era, e, bem próximo a nós, o primeiro romance de Clarice Lispector era considerado por um famoso crítico de então como um não-romance. Não pretendo aqui discutir a problemática do romance nem muito menos o que ele seja, mas sim, precisamente, a descontinuidade que, na visão contemporânea, separa a experiência nos campos de concentração nazistas e a forma ficcional. Para que a questão assuma um perfil bastante concreto, consideremos alguns casos conhecidos. Partamos de duas posições opostas: as que se configuram pelos filmes "A Lista de Schindler", de Steven Spielberg, e "Shoah", de Claude Lanzmann.

Obscenidade
O primeiro é, evidentemente, uma ficção, com todos os ingredientes -enredo sentimental, música de fundo melodramática, reconstituição de época, o homem de "bons sentimentos" entre uma corja de animais etc.- para atrair centenas de milhares de espectadores. O segundo é, com não menor evidência, uma recusa terminante de romancear a tragédia, por definição, de um século de tragédias. Embora a decisão de Lanzmann tenha de antemão lhe recusado a assistência de nem sequer um milionésimo dos espectadores do diretor norte-americano, filmes posteriores -"A Vida É Bela", de Roberto Benigni, e "O Pianista", de Roman Polanski- mostram que Lanzmann venceu o desafio: para a sensibilidade de agora, ficcionalizar o Holocausto equivale a uma verdadeira obscenidade. Para que a evitassem, Benigni, numa solução discutível, optou por focalizar a experiência concentracionária sob uma ótica infantil e, Polanski, pela criação de um argumento paralelo: a do próprio protagonista, cuja carreira é cortada pela raiz pelo evento que permanece em segundo plano. Em ambos os casos, pois, a invenção fílmica evita ou tratar a matéria dura pelos olhos de um adulto ou dispô-la em primeiro plano. Note-se ainda que interdição semelhante se atualizava nos relatos anteriores de Primo Levi, de Jean Améry, de Charlotte Delbo. No Primo Levi de "A Trégua", no máximo, a cena rotinizada do assassinato é serpenteada, quando a guerra termina, por uma viagem de trem, cujas voltas infinitas parecem ligar o portão moderno do inferno à nova cidade dos homens. Em sua obra memorável, contudo, "É Isso um Homem?", nem sequer aquela mínima concessão ao ficcional era concedida. Não se permite que uma gota de ficção marque o corpo do inominável.


É espantoso que, em tempos dessacralizados como os nossos, se crie uma nova prática de proibição da figura


É espantoso que, em tempos dessacralizados como os nossos, se crie uma nova prática de proibição da figura. A proibição, conhecida por culturas antigas como a hebraica e a islâmica, tinha como razão o sagrado. Interditava-se a representação do sagrado ou de toda figura que se lhe assemelhasse. Hoje, não é nenhum sagrado que formula o princípio interditor; nem muito menos há algum preceito que o exprima literalmente. A interdição (prática) de representação ficcional do Holocausto não aponta senão para o lugar vazio hoje ocupado pelo sagrado. O sagrado é a ausência que mal conseguimos perceber ou entender. Por isso mesmo seu desrespeito será exercitado em nome de um "sagrado" que se respeita sem que se lhe tenha como tal: a caixa da bilheteria, a conta bancária, as cotações da Bolsa. Fora Mamon, só atinamos com algum deus pela imagem de uma "terra devastada"; o divino é algo que só encontramos nas cinzas e na destruição. Tal sagrado negativo é a correspondência, no plano do imaginário, do que o historiador Dan Diner, a propósito do fracasso das autoridades judaicas do gueto de Varsóvia em dar alguma racionalidade à escolha das vítimas dos nazistas, chamou de "contra-racionalidade"; era ela que presidia o Holocausto. Como a contra-racionalidade aí apenas alcançou sua expressão suprema, não estranha que outras experiências, sucedidas noutros tempos e noutros continentes, sejam comparadas ao Holocausto e passem a ser designadas, em conjunto, pelo nome "literatura de testemunho". O termo "literatura" não será talvez adequado, e "testemunho" não deverá ser confundido com o documentalismo chão, decorrente da mera incompetência de romancistas, dramaturgos e cineastas, muito comum na América Latina.

Traço positivo
A interdição de ficcionalizar o Holocausto tem como ponto de partida o reconhecimento de sermos capazes de agir, sem a desculpa de alguma cólera eventual, por um cálculo que nenhuma razão respalda. Havendo sido antes capazes de conceber deuses e inclusive suas figuras, como Heródoto dizia de Homero, hoje antes reconhecemos nosso limite em só conceber o sagrado-como-deserto.
Ainda que a autora de "Mameloshn -Memória em Carne Viva" não o saiba, é a força desse interdito que paira sobre seu livro e o distingue de uma massa amorfa. Essa força tem o traço positivo de evitar a obscenidade de cenas de impacto, facilmente transformáveis em best-seller ou em peça de propaganda de um país. Traz, no entanto, o embaraço de, sob o temor de ficcionalizá-lo, não haver sistematicamente convertido em obra da linguagem o rico material de seus dois protagonistas: o pai e a mãe da narradora. Cada um tem um potencial muito raro, é certo que efetivado em alguns momentos excelentes.
A mãe, em sua mistura de feminilidade não desfeita pela dor das perdas, pela loucura causada pelo terror, pela miséria vivida em uma enxerga em Paris e o choque de sua chegada ao calor e à diferença de Madureira; o pai, estuante de lascívia e esperteza, mascateando a sobrevivência entre as putas do Mangue, abandonando depois mãe e filha, de que leva as últimas reservas de dinheiro, até, de volta à Europa, passar a perna nos alemães, de quem ganha dinheiro como contrabandista, e nos soviéticos, de que ocupa, em Varsóvia, apartamento que fora de sua polícia secreta . É o mais acabado exemplo do embusteiro simpático.
E como esquecer a própria descoberta dos trópicos? Ao passo que a mãe não aprendera a cozinhar porque escapara da morte servindo a cantina dos oficiais alemães, é a maleabilidade do pai que ensina à filha os sabores inéditos que aprende na terra nova, quente e de gente morena. Se a autora teve a sensibilidade de não os julgar por um prisma rigidamente ético, é de esperar, tendo sido este seu primeiro livro, que saiba lhes conceder outra oportunidade. Enquanto isso, cabe ao leitor distinguir "Mameloshn" dos falsos brilhantes.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral).


Texto Anterior: Et + cetera
Próximo Texto: Confissões de um pensador
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.