São Paulo, domingo, 30 de maio de 2004

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Confissões de um pensador

RECÉM-LANÇADO NA FRANÇA, "O ABECEDÁRIO DE GILLES DELEUZE" REÚNE EM DVD MAIS DE 7 HORAS DE ENTREVISTAS DADAS PELO AUTOR DE "O ANTI-ÉDIPO", EM QUE FALA DE SUA VIDA PESSOAL E DEFENDE A CRIAÇÃO COMO FORMA DE RESISTÊNCIA

Alcino Leite Neto
Editor de Domingo

Eu penso que não existe governo de esquerda. Aqui, também, não há com o que se surpreender: esse nosso governo, que deveria ser um governo de esquerda e que não é um governo de esquerda... a esquerda não é uma questão do governo..."
Quem fala é Gilles Deleuze (1925-1995), o mais importante pensador francês desde Jean-Paul Sartre (1905-1980). Estamos no final de 1988, na sala de um apartamento modesto em Paris, a casa do filósofo. Na França, o socialista François Mitterrand ocupa pela segunda vez o posto de presidente. No Brasil, o PT prepara a candidatura de Lula contra Collor. O Muro de Berlim ainda separa a Alemanha.
Deleuze, então com 64 anos, está vestido com blusa violeta, calças pretas e meias roxas. Detrás da cadeira onde está sentado há um armário baixo, com um abajur em forma de cálice, e um espelho antigo, por onde entrevemos a imagem de uma mulher bastante bonita: Claire Parnet, ex-aluna de Deleuze e, nesse momento, a sua entrevistadora.
Durante 453 minutos, ou mais de sete horas, Parnet fará ao filósofo uma centena de questões que irão constituir um documento notável: "L'Abécédaire de Gilles Deleuze" (O Abecedário de Gilles Deleuze, finalizado em 1989, 45 euros), entrevista filmada em película, para exibição em cinema e televisão, mais tarde divulgada em vídeo e agora lançada em DVD na França -um formato ideal para acompanhar essa síntese do pensamento do filósofo e passear pela série de anedotas sobre sua vida pessoal, que ele timidamente revela, entre o capítulo "A, como Animal" e o "Z, como Ziguezague" [leia trechos na pág. 6].
Deleuze, que não apreciava falar de si mesmo, na entrevista recorda sua convivência com o pai, um engenheiro com idéias de direita e sentimentos anti-semitas (em "E, como Enfance-Infância"). Expressa sua paixão pela música popular e por Edith Piaf (em "O, como Ópera"), sua "dívida" para com Scott Fitzgerald, William Faulkner e Thomas Wolfe (em "L, como Literatura"). Explica por que comer lhe causa tanto tédio e por que detesta os queijos. Descreve três vezes o seu cardápio ideal: língua, cérebro e tutano (em "M, como Maladie-Doença"). Compara, rindo, sua parceria com o psiquiatra Félix Guattari com Bouvard e Pécuchet, os personagens de Flaubert (em "F, como Fidelidade"). Entusiasma-se ao falar de seu esporte preferido, o tênis: "(Bjorn) Borg é um verdadeiro criador, de caráter crístico, pois inventou o tênis para as massas", diz (em "T, como Tênis").
Os comentários anedóticos pontuam e refrescam essa entrevista densa e complexa, que é sobretudo uma generosa introdução às idéias de Deleuze -feita por ele mesmo- e aos pensadores de sua predileção: Kant, Nietzsche, Espinosa e Leibniz, sobre o qual acabara de lançar um ensaio, "A Dobra" (1988; ed. Papirus). Professor durante toda a sua vida, Deleuze transforma a conversa com Parnet numa espécie de curso audiovisual de filosofia, apresentando seus conceitos com clareza, exemplificando cada idéia, repetindo e resumindo a sua análise sempre que julga necessário.
Ele faz mais do que isso, pois Parnet é uma provocadora. "Perfídia", diz Deleuze da moça, em determinado momento. Ela incita o filósofo a discorrer sobre a vida contemporânea e o instiga a atacar seus "inimigos" e a criticar os diluidores de suas idéias.
A psicanálise é um dos alvos preferidos de Deleuze: "Os psicanalistas falam do desejo como padres, da castração como uma maldição sobre o desejo. É pior do que o pecado original", diz ele. E continua: "O inconsciente não é um teatro: é uma usina, uma produção. Não é Édipo nem Hamlet. Não deliramos a partir das figuras do pai ou da mãe. Deliramos sobre o mundo inteiro, a geografia, a história, as raças, o deserto... O delírio é geográfico ou político. A psicanálise, que jamais compreendeu o delírio, o coloca como um simples problema familiar. Ela tem toda uma ignorância da multiplicidade (do desejo)".
Parnet interpela Deleuze, dizendo que a "esquizoanálise", concebida por ele e Guattari em "O Anti-Édipo" (1972), levou estudantes a acharem que a partir de então deveriam ser "loucos", a fim de manifestar a multiplicidade do desejo. Deleuze esclarece: "Havia os que pensavam que o desejo era o espontaneísmo e que achavam que era a hora da festa. Mas não se tratava disso. Nunca disse a um estudante para ir se drogar, porque sou muito sensível a coisas que fazem tirar a atenção, a distrair... O "Anti-Édipo" é de uma prudência extrema. Era um meio de impedir a produção da esquizofrenia... Espero que esse livro seja redescoberto". Contra a psicanálise, o filósofo evoca a psiquiatria. "Ela tem um futuro mais certo do que a psicanálise espiritualista." E defende com todas as letras o uso de medicamentos no tratamento psiquiátrico. "Sempre fui pelo uso do remédio, mesmo no domínio da psiquiatria. Sempre fui a favor da farmacologia", diz ele. O segundo inimigo de Deleuze é a mídia e o sistema de comunicação, para ele uma das bases da "sociedade de controle" (como ele define o modo de dominação contemporâneo, pós-disciplinar, sobre os sujeitos). "Ter uma idéia não é algo do campo da comunicação... A informação é um conjunto de palavras de ordem... A informação é o sistema de controle", afirma na extraordinária conferência "O Que É o Ato de Criação?", de 1987, que o DVD traz como bônus. Para Deleuze, a TV é a "domesticação em estado puro... em que todos concorrem para produzir a mesma nulidade". Em "C, como Cultura", define nosso época como um "deserto cultural", cujas causas assim diagnostica: "Primeiro, os jornalistas conquistaram a forma-livro e acham muito normal escrever em livro o que simplesmente bastaria no artigo de jornal. Segundo, espalhou-se a idéia geral de que todo mundo pode escrever, desde o momento em que a escrita se tornou o pequeno problema de cada um, de arquivos familiares, de arquivos que cada um tem na sua cabeça. Terceiro, os verdadeiros clientes mudaram: na TV não são mais os espectadores, mas os anunciantes; na edição, não são mais os leitores potenciais, mas os distribuidores".

Sentimento da vida
E a esquerda no governo? Para Deleuze, o máximo que se pode esperar é que um governo seja favorável a certas exigências da esquerda. "Mas um governo de esquerda, isso não existe", conclui em "G, como Gauche-Esquerda". "Ser de esquerda é não deixar de ser minoritário. Isso quer dizer que a esquerda jamais é majoritária enquanto esquerda."
A maioria é um padrão "vazio", fundado na predominância estatística -homem, adulto e urbano- e que determina o voto. Governos são eleitos para corresponder a esse padrão abstrato. "A esquerda não é questão de governo... É o conjunto dos processos do devir minoritário", uma forma de resistência e reivindicação de minorias concretas e cuja função é "lutar pela jurisprudência, criar direitos".
"R, como Resistência" é uma das partes mais comoventes do "Abecedário de Gilles Deleuze". "Se não se experimenta a vergonha de ser homem, não há necessidade de fazer arte", diz o filósofo, evocando Primo Levi.
Mas a palavra "resistência" não aparece só nesse capítulo. Ela percorre a conversa inteira, ao lado da idéia de "criação" -e toda a entrevista é uma defesa da criação como forma de resistência aos poderes que submetem as potências da vida. "A confusão entre poder e potência é ruinosa, porque o poder sempre tem por objetivo separar as pessoas submetidas daquilo que elas podem... A potência é o prazer da conquista, não a conquista que leva à submissão das pessoas, mas aquela que tem o mesmo sentido de quando se diz que um pintor conquistou uma cor."
Doente, com um câncer incurável, o filósofo se suicidaria em 1995, aos 70 anos, pulando da janela de seu apartamento. "Para mim, a doença não é algo que dá o sentimento da morte, é alguma coisa que reforça o sentimento da vida. A doença é uma espécie de visão da vida em toda a sua potência e beleza... O que há em comum entre a grande filosofia e a grande literatura é que elas testemunham pela vida", diz Deleuze, com sua voz rouca, a respiração apertada, os olhos fulgurantes, enquanto Claire Parnet, uma silhueta no espelho, acende seu centésimo cigarro.


Onde encomendar
A caixa com 3 DVDs "L'Abécédaire de Gilles Deleuze", lançado pelas Editions Montparnasse (www.editionsmontparnasse.fr), pode ser encomendado, SP, na FNAC (0/xx/11/4501-3000).



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